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Incompetência estratégica (weaponized incompetence) nas relações familiares: como o direito pode enfrentar esse comportamento abusivo
Incompetência estratégica (weaponized incompetence) nas relações familiares: como o direito pode enfrentar esse comportamento abusivo[1]
Por Eduardo Cambi[2] e Stéfane Prigol Cimi[3]
A incompetência estratégica (weaponized incompetence) é a conduta deliberada de fingir ou exagerar a incapacidade para realizar determinada tarefa, com o objetivo de evitar responsabilidades e manipular outras pessoas para que as realizem. Embora o termo tenha ganhado destaque nas redes sociais e na literatura sobre gestão e trabalho, a prática é antiga e amplamente difundida nas relações familiares, e apresenta consequências que vão muito além da mera desarmonia doméstica.
O impacto no cotidiano das famílias
No ambiente doméstico, a incompetência estratégica mina a boa-fé e desequilibra as relações familiares. Ela ocorre quando um cônjuge ou convivente se recusa a executar tarefas do lar ou de cuidado, sob o pretexto de não saber ou não conseguir fazê-las adequadamente, levando o outro a assumir a carga física e mental de forma desproporcional.
Um exemplo ilustrativo: Pedro e Marina vivem em união estável, ambos com jornadas formais de oito horas diárias. Ao chegar em casa, Pedro se acomoda no sofá, enquanto Marina inicia a “segunda jornada”: limpar, cozinhar e lavar roupas. Ao pedir que Pedro vá ao mercado, ela recebe telefonemas sucessivos: “O que é alvejante?”, “Qual marca comprar?”, “É feijão preto ou carioca?”.
Ao perceber que delegar dá mais trabalho do que fazer, Marina retoma sozinha a tarefa. Essa dinâmica, que não é rara, cristaliza um padrão de desigualdade: enquanto o homem encontra no lar um espaço de descanso, a mulher enfrenta jornadas duplas ou triplas de trabalho.
O IBGE (2024) confirma: mulheres dedicam, em média, 21,6 horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerado, quase o dobro dos homens (11 horas). Desde 2016, essa sobrecarga permanece estável, apesar do avanço das mulheres no mercado de trabalho.
Mais do que aumentar o trabalho físico, a incompetência estratégica amplia a carga mental: o esforço de planejar, organizar e antecipar necessidades da família. Estudos sobre saúde mental indicam que essa sobrecarga está associada a altos índices de ansiedade, depressão e burnout entre mulheres, agravados por estereótipos de gênero que naturalizam a “mulher multitarefa” e a “mãe-cuidadora”.
A repercussão no campo jurídico
No Direito das Famílias, a incompetência estratégica se manifesta de diferentes formas. Pode ocorrer, por exemplo, quando o genitor alega incapacidade financeira ou utiliza o número de filhos como justificativa para reduzir o valor da pensão alimentícia, transferindo para a mãe e para os próprios filhos o ônus de um planejamento familiar inadequado de sua parte.
A tática de manipulação também se verifica quando o pai afirma não ter habilidade para cuidar dos filhos, procurando restringir seu papel ao pagamento da pensão alimentícia e sobrecarregar a mãe com todas as responsabilidades cotidianas.
Outra situação comum é aquela em que o genitor sustenta que, por o filho estar sob a guarda materna, cabe exclusivamente à mãe garantir tratamentos médicos ou apoio escolar, eximindo-se de qualquer corresponsabilidade.
Essa prática viola a boa-fé objetiva e reforça a “cultura do privilégio”, mantendo mulheres como principais responsáveis pelo cuidado e trabalho doméstico não remunerado.
Exemplos da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná
O Tribunal de Justiça do Paraná tem enfrentado o tema de forma expressa.
No Agravo de Instrumento nº 0116396-05.2024.8.16.0000, o pai, residente e empregado na França, alegou dificuldades financeiras e a existência de oito outros filhos para reduzir pensão alimentícia devida ao filho no Brasil. Em primeira instância, o valor foi reduzido para 30% do salário mínimo nacional. Ao analisar o recurso, o TJPR majorou para 60% do salário mínimo, reconhecendo que o alimentante utilizou a incompetência estratégica como justificativa abusiva para minimizar sua obrigação, em afronta à boa-fé objetiva, já que não planejou o crescimento de sua prole e tentou impor aos demais filhos (e às suas mães) o ônus financeiro de arcar com os alimentos do irmão.
Já na Apelação Cível nº 0006526-48.2021.8.16.0188 o pai tentou se eximir de responsabilidade pelo tratamento psicológico do filho adolescente, atribuindo à mãe, detentora da guarda de fato, o dever exclusivo. O Tribunal rejeitou a tese, destacando que o cuidado com a saúde mental do filho é obrigação conjunta e que a tentativa do genitor reforçava estereótipos de gênero e a cultura da irresponsabilidade paterna. Foi aplicado, ainda, o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ.
Esses precedentes mostram que reconhecer a incompetência estratégica em decisões judiciais é fundamental para evitar abusos processuais e assegurar que obrigações parentais sejam devidamente compartilhadas.
Normas e diretrizes para o enfrentamento
O enfrentamento da incompetência estratégica conta com sólido respaldo normativo. O Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), orienta magistradas e magistrados a identificar estereótipos e desigualdades estruturais, coibindo narrativas abusivas que perpetuam a sobrecarga feminina no cuidado e no trabalho doméstico.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), da ONU, juntamente com a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, reforça a igualdade de direitos e responsabilidades entre homens e mulheres no casamento e nas relações familiares, estabelecendo parâmetros internacionais para a promoção da equidade de gênero nessas esferas.
A Lei Modelo Interamericana de Cuidados, da Organização dos Estados Americanos, reconhece o cuidado como um direito humano e defende sua redistribuição equitativa entre homens e mulheres, enfatizando a corresponsabilidade e a valorização do trabalho de cuidado como elemento essencial para sociedades justas e inclusivas.
A Lei nº 15.069/2024, que institui a Política Nacional de Cuidados, determina a corresponsabilidade entre homens e mulheres e busca promover uma mudança cultural sobre a divisão sexual do trabalho, reconhecendo, reduzindo e redistribuindo o trabalho não remunerado, historicamente realizado de forma predominante por mulheres.
Por fim, a Opinião Consultiva OC-31/25, recentemente emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, estabelece que os Estados têm a obrigação de adotar medidas legislativas, administrativas e judiciais para reconhecer o cuidado como direito humano e dever compartilhado. O documento reforça que a divisão desigual do trabalho de cuidado está enraizada em padrões culturais discriminatórios e compromete a igualdade substantiva entre homens e mulheres, devendo ser combatida por políticas públicas e interpretações jurídicas que promovam a corresponsabilidade. A Corte ainda destaca que a ausência de medidas eficazes perpetua a desigualdade estrutural de gênero e viola compromissos internacionais assumidos pelos países-membros do Sistema Interamericano.
Todos esses instrumentos apontam para a mesma direção: reconhecer, reduzir e redistribuir o trabalho de cuidado e impedir que a incompetência estratégica perpetue desigualdades históricas.
Por que o combate da incompetência estratégica é essencial?
A corresponsabilidade parental é mais que um princípio jurídico. É uma condição para relações familiares equilibradas e para o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes. Quando um genitor se exime de suas responsabilidades por meio da incompetência estratégica, sobrecarrega injustamente o outro, reforça estereótipos e prejudica vínculos afetivos.
O Poder Judiciário, ao aplicar a perspectiva de gênero e identificar padrões manipulativos, cumpre um papel central na promoção da igualdade em sentido substancial. E a sociedade, ao reconhecer e questionar esse tipo de comportamento, contribui para romper o ciclo de desigualdade que atravessa gerações por meio da manutenção de privilégios construídos historicamente pelo patriarcado.
Coibir a incompetência estratégica é, portanto, uma medida de justiça e equidade de gênero, promoção de direitos humanos, proteção à infância e à adolescência, além de uma forma de fortalecimento da própria função social da família.
Referências
BRASIL. Lei nº 15.069, de 23 de dezembro de 2024. Institui a Política Nacional de Cuidados.
CAMBI, Eduardo Augusto Salomão. Direito das famílias com perspectiva de gênero: aplicação do protocolo de julgamento do Conselho Nacional de Justiça (Recomendação 128/2022 e Resolução 192/2023). 2ª ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2025.
CEPAL. Estratégia de Montevidéu para a Implementação da Agenda Regional de Gênero. Santiago: CEPAL, 2017.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva OC-31/25 de 12 de junho de 2025. El contenido y el alcance del derecho al cuidado y su interrelación con otros derechos. San José, Costa Rica: Corte IDH, 2025. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_31_es.pdf. Acesso em: 11 ago. 2025.
CNJ. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Recomendação nº 128/2022 e Resolução nº 492/2023.
FERREIRA, Julia Arcanjo et al. O Análise Epidemiológica da Síndrome de Burnout em mulheres de 20 a 49 anos entre 2018 a 2022 no Brasil. Revista Multidisciplinar em Saúde, v. 5, n. 3, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.51161/integrar/rems/4318.
IBGE. Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil. 3ª ed. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv102066_informativo.pdf. Acesso em: 27 fev. 2025.
ONU. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Nova Iorque: Organização das Nações Unidas, 1979.
ONU. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher. Pequim: Organização das Nações Unidas, 1995.
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Agravo de Instrumento nº 0116396-05.2024.8.16.0000. 12ª Câmara Cível. Relator: Eduardo Augusto Salomão Cambi. Julgado em: 28 fev. 2025.
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR). Apelação Cível nº 0006526-48.2021.8.16.0188. 12ª Câmara Cível. Relator: Desembargador Eduardo Augusto Salomão Cambi. Julgado em: 11 jul. 2023.
[1] Nota: Este texto é baseado no artigo “Impactos da incompetência estratégica (weaponized incompetence) na equidade de gênero e na aplicação do Direito das Famílias”, de autoria de Eduardo Cambi e Stéfane Prigol Cimi e publicado na edição n.º 69 da Revista IBDFAM: Família e Sucessões. O texto foi condensado para fins de publicação no site do IBDFAM.
[2] Pós-Doutor pela Univesità degli Studi Di Pavia. Doutror e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor Associado da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e da Faculdade Assis Guargaz (FAG). Desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). Membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. E-mail:eduardo.cambi@tjpr.jus.br
[3] Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso – FESMP/MT. Bacharel em Direito pela Universidade de Cuiabá – UNIC. Assessora Jurídica do Tribunal de Justiça do Paraná. E-mail: stefane.cimi@tjpr.jus.br
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