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O que a Psicanálise faz aqui nos Tribunais?
1 - Á guisa de introdução
Há algum tempo veiculava na TV uma propaganda onde um casal na sua 2a ou 3a união confundia os filhos dos primeiros casamentos com o filho da união estável atual. Expressão cotidiana que reflete esse fato "... os seus , os meus , os nossos filhos"... O slogan da propaganda de uma grande marca de carro era: "Você precisa rever seus conceitos". Uma boa lembrança para nós que lidamos com o Direito.
O Direito de Família está em transição, em conseqüência das transformações que a realidade favorece. As mudanças são avassaladoras e inexoráveis. Elas clamam, sinalizam a necessidade de rever algumas posturas cristalizadas articuladas às ciências.
Verifica-se, então a possibilidade de interação entre o conhecimento do Direito de Família e sua execução, articulados à possibilidade de uma intervenção da Psicanálise, com o intuito de ouvir o discurso das partes que litigam na justiça através de ações que são tratadas no âmbito do Direito de Família.
Coltro em artigo para revista jurídica diz:
De forma inevitável e na mesma esteira de tudo o que o século passado assistiu alterar-se (sob o influxo de pressões sociais, psicológicas e antropológicas, com evidentes conseqüências no plano jurídico) também a família submeteu-se a uma visceral mudança. (COLTRO, 2002:pg.16)
Há que se cuidar de ouvir o que as partes litigantes em um processo têm a falar: Nazareth diz:
Nas questões que chegam do Direito de Família, os profissionais, tanto do Direito quanto da Saúde Mental, são convocados a dar respostas e a desempenhar papéis que, muitas vezes, transcendem as suas atribuições, funções,limites e possibilidades,pois a demanda que chega ao profissional , comumente ao advogado em primeiro lugar, é distorcida ou travestida de outras que, somente um trabalho de investigação mais detalhado é capaz de evidenciar.(NAZARETH, 2002:pg. 20)
2 - A "Verdade" que atravessa as audiências
Partindo do trabalho realizado nas Centrais de Conciliação das Varas e Família onde são realizadas as audiências de tentativa de conciliação, observo que as partes envolvidas em ações do tipo: (Separação Judicial Consensual ou Litigiosa, Divórcio Consensual ou Litigioso, Dissolução de Sociedade de Fato, Regulamentação de Visitas, Alimentos, Revisional e Exoneração de Alimentos), precisam falar de suas supostas razões e argumentos no intuito de provar suas verdades. Verdades repletas de falas passionais que parecem confundir aquele que a princípio ouve.
Existem possibilidades de interação entre áreas de conhecimento que possam favorecer essa escuta diferenciada e que podem convidar os sujeitos envolvidos em conflitos, a uma implicação e responsabilidade sobre os mesmos.
As constantes mudanças no meio social refletem na constituição familiar e conseqüentemente no seu desenlace. O caráter de tantas conseqüências é dinâmico, porque outras famílias são formadas a partir daqueles cônjuges ora separados.
A desconstrução de uma família passa também por questões inconscientes: onde existia o par parental também existia a fantasia, o ideal. Neste sentido é inútil buscar a dita "verdade" daquele casal litigante, pois cada sujeito é roubado até mesmo de sua verdade, uma vez que nem um deles tem acesso total ao inconsciente.
3 - Alguns conceitos psicanalíticos
Psicanálise na definição de Elizabeth Roudinesco, é um termo criado por Sigmund Freud, em 1896 para nomear um método pautado na exploração do inconscientecom a ajuda da associação livre, por parte do paciente e da interpretação por parte do psicanalista. A possibilidade de trabalhar a Psicanálise articulada ao Direito já é uma realidade e tem provocado construções interessantes e passives de verificação nos fóruns.
Inconsciente, para Elizabete Roudinesco, é o conjunto dos processos mentais que não são conscientemente pensados.
Portanto, o tão mencionado inconsciente é o lugar onde se localizam estes conteúdos psíquicos que fazem aparições inesperadas através dos atos falhos, lapsos, sonhos e até mesmo dos significantes.
Inconsciente, em Psicanálise, é um lugar desconhecido pela consciente: "uma outra cena".
O conceito de inconsciente também é presente no trabalho realizado nas Varas de Família, quando as partes são convidadas a falar.
Repetição, compulsão à, por Roudinesco:
Processo inconsciente e, como tal, impossível de dominar, que obriga o sujeito a reproduzir seqüências (atos, idéias, pensamentos ou sonhos) que, em sua origem, foram geradoras de sofrimento, e que conservaram esse caráter doloroso.(ROUDINESCO, 1998:pa.656).
Para entender esse conceito, recorro a música Retrato em branco e preto, de Chico Buarque e Tom Jobim: "...Já conheço os passos desta estrada, sei que não vai dar em nada, seus segredos sei de cor, já conheço as pedras do caminho... lá vou eu de novo, feito um tolo procurar o desconsolo que eu cansei de conhecer..."
A "compulsão à repetição" pode ser inclusive articulada ao Direito quando recorremos às estatísticas e percebemos a reincidência processual, ou seja , se não bem trabalhada uma ação judicial , ela pode ser arquivada e pode ser desarquivada.
Retificação Subjetiva, termo citado por Lacan, diz respeito à responsabilidade que cada sujeito deverá ter sobre suas escolhas ou seja sua implicação diante da realidade.
Este é o ponto principal a ser alcançado em uma audiência de tentativa de conciliação. As partes são chamadas a pensar e decidir sobre sua vida.
Transferência é definida como um processo em que a pessoa de forma inconsciente transfere sentimentos idéias a um terceiro.
Nas audiências , num primeiro instante, as partes elegem o conciliador como único responsável por decisões que caberiam a elas. Sendo assim, podemos pensar que elas transferem, como tantas outras vezes, os citados: "sentimentos e idéias" a um terceiro.
Recalque: operação pela qual o sujeito procura repelir ou manter no inconsciente, representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão.
Observamos que quando as partes relatam suas apaixonadas versões sobre os fatos , algo do recalcado pode retornar, marcando assim a surpresa de um ato falho, de um choro não premeditado, por exemplo.
4 - A Compulsão à repetição e a Reincidência Processual
A reincidência processual, ou seja , o pedido de desarquivamento de processos e seus apensos, sinalizam para algo que não foi elaborado pelas partes eu audiência anterior e esse fato pode indicar também uma questão relacionada à compulsão à repetição. Há que se perguntar: O que é desarquivado junto com o processo? Não seria a necessidade de falar do conflito e assim concluí-lo? O trabalho na Central de Conciliação parece apontar para essa questão: o processo volta para as varas de família porque a parte entende de forma inconsciente que a questão não foi bem elaborada, que ainda existe algo nas entrelinhas do processo que podemos chamar de afeto/desafeto.
Assim , quanto menos escutado o discurso do sujeito que demanda da justiça uma solução para um processo, mais litigiosa será a ação.
5 - A Proposta da escuta
A Lei não trata da subjetividade envolvida em cada uma dessas ações. As ações trazem questões que deveriam tratar afetos e desafetos. Em função disso, o Direito necessita interagir com a Psicanálise com a intenção de dirimir ou administrar conflitos de forma mais assertiva.
O trabalho visa contribuir com a realização efetiva do Direito de Família, porém, articulado à escuta psicanalítica, propiciando às partes envolvidas em processos judiciais algum tipo de reflexão ou até mesmo à possibilidade de uma implicação maior daqueles sujeitos com suas questões e responsabilidades, favorecendo a cada uma saber ou se perguntar pelo seu desejo.
As partes, muitas vezes elegem o processo como um sintoma, reflexo daquilo que não vai bem com elas. Daí a necessidade de uma desconstrução dessa suposta verdade, através de um trabalho de parceria entre a Psicanálise e o Direito, propiciando chamar àqueles sujeitos a uma "retificação subjetiva" que é a própria mudança de posição do sujeito, de vítima à agente de sua história, ou seja: a possibilidade que cada um terá de se haver com seu desejo.
Efetivamente a possibilidade de um discurso bem escutado das partes conflitantes se dá a partir da formação daqueles que vão, a princípio, ouvir essas partes. A inclusão da Psicanálise na formação daqueles que lidam como o Direito de Família deveria ser mais um instrumento dos inúmeros recursos que o Direito de Família já dispõe. Esta forma de trabalho, diferente de uma proposta clínica, não tem a pretensão de atender a todas as demandas, até porque assim seria reforçada a repetição, visto que demandar é repetir algo de outra ordem e a ética da Psicanálise não é moral, a ética da Psicanálise é a ética do desejo.
No trabalho desenvolvido nas Centrais de Conciliação das Varas de Família podem ser ouvidos discursos e relatos repletos de significantes que devem ser escutados sob o prisma da Psicanálise.
Estes relatos sempre trazem indícios que não podem ser ignorados pelos conciliadores, tais como: atos falhos, lapsos, e significantes que emergem através da fala aparentemente repetitiva das partes em seu desesperado discurso cheio de razão e "verdade" e dentro deste contexto podem ser entendidos como manifestações inconscientes e passíveis de serem escutadas.
As partes poderão ser convidadas então a falar de suas questões, com o cuidado do sigilo que envolve sua identificação, em função das questões familiares se caracterizarem como "segredo de justiça", o que já revela o cuidado e a particularidade do Direito de Família.
O que se observa na Central de Conciliação das Varas de Família é que as partes envolvidas em um processo nomeiam advogados para escreverem petições, porem, o que aparece na fala dessas partes são demandas. Muitas vezes um acordo, uma conciliação, não é tão difícil de ser feito no tocante aos pontos de ordem prática, mas o acordo não acontece porque algo de outra ordem, da ordem do inconsciente, não foi dito ou até mesmo foi dito e não foi devidamente escutado.
Assim como houve um percurso da própria Psicanálise, já existe um percurso do trabalho que articula o Direito de Família com outros conhecimentos. Ainda assim, todo trabalho é passível de mudanças, adaptações, releitura, mas nem por isso tal proposta que a prática necessita pode ser adiada. O trabalho é ousado e desafiador e por isso mesmo fascinante. Não se trata de um atendimento clínico, mas sim de começar um espaço onde as pessoas/partes possam ser ouvidas e terem seu discurso legitimado por alguém que ocupa o lugar do "suposto saber", o lugar da Transferência. E para tanto, basta lembrar da música do Caetano Velozo: Sou seu sabiá: ..."é só ter alma de ouvir e coração de escutar..."
REFERÊNCIAS:
BARROS. Fernanda Otoni de, Contando "causo"... Psicanálise e direito: a clínica em extensão. Belo Horizonte: Del Rey, 2001
BRAGHIROLLI. Elaine Maria et.tal. Psicologia Geral. 9a. ed. Ver. E atual. Porto Alegre: Ed. Vozes, 1990.
COLTRO. Antonio Carlos Mathias. Um valor imprescindível. Revista Jurídica Del rey. Número 8 - Ano IV- Maio/2002 , pg.16.
FREUD. Sigmund, Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição Standard brasileira; com comentários e notas de James Strachey; em colaboração com Anna Freud; assistido por Alix Strachey e Ala Tyson; traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. 2o ed. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
LACAN. Jacques, O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques Alain-Miller; tradução de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
NAZARETH. Eliana Riberti. Psicanálise e Direito: um intercâmbio possível. Revista Jurídica Del Rey. Número 8 - Ano IV- Maio/2002 , pg.20.
PEREIRA. Rodrigo da Cunha. A Sexualidade vista pelos Tribunais. 2o ed. Ver. E atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
PEREIRA. Rodrigo da Cunha. Direito de família:uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, _____.
ROUDINESCO, Elisabeth, PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Neide Heliodória é psicanalista e supervisora da Central de Conciliação das Varas de Família de Contagem/MG. |
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