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Superproteção Parental e o Melhor Interesse da Criança nas Ações de Guarda
Laís Mello Haffers[1]
O exercício da parentalidade deve se orientar pelo equilíbrio, pela corresponsabilidade e, sobretudo, pela promoção da autonomia e do bem-estar das crianças. No entanto, é comum, especialmente em contextos de disputas judiciais de guarda, depararmo-nos com comportamentos marcadamente controladores, travestidos de zelo, que inviabilizam a convivência equilibrada com ambos os genitores e restringem o desenvolvimento saudável dos filhos.
Essas condutas, comumente associadas ao fenômeno da superproteção parental, não devem ser encaradas como meras divergências de estilo educativo. Quando analisadas sob o prisma jurídico, sobretudo nas ações de guarda, exigem atenção especial do Judiciário, pois violam diretamente o princípio constitucional do melhor interesse da criança e comprometem o seu pleno desenvolvimento emocional, social e psicológico.
É preciso reconhecer que, em muitos casos, a superproteção parental surge como extensão de um modelo centralizador e excludente de parentalidade, no qual um dos genitores assume o controle quase absoluto sobre a vida dos filhos, frequentemente com o intuito de afastá-los da convivência com o outro responsável.
Esse comportamento ultrapassa os limites do cuidado legítimo. Trata-se de uma tentativa de monopólio afetivo, pautada por uma lógica de vigilância, imposição de regras arbitrárias, monitoramento excessivo e cerceamento de experiências fundamentais ao crescimento infantil. Embora muitas vezes mascarado por um discurso de zelo, esse padrão de conduta acaba por inviabilizar a coparentalidade, ferir o direito da criança à convivência familiar e instaurar uma dinâmica prejudicial à sua formação integral.
A superproteção parental impede que as crianças desenvolvam habilidades essenciais para sua formação. Dificuldades para lidar com frustrações, tomar decisões, resolver conflitos, estabelecer laços sociais e enfrentar os desafios da vida cotidiana são apenas alguns dos reflexos de uma criação baseada no excesso de controle. Diversos estudos associam esse modelo a quadros de ansiedade, transtornos de pânico[2], depressão, insegurança, baixa autoestima e até maior risco de envolvimento com substâncias psicoativas[3].
A superproteção afeta também a capacidade da criança de desenvolver vínculos afetivos autênticos com o outro genitor, criando uma dependência disfuncional e dificultando a construção de uma identidade emocional estável.
Os impactos igualmente se estendem ao desempenho escolar e à vida social. Crianças excessivamente protegidas tendem a apresentar timidez extrema, retraimento, resistência ao convívio em grupo e dificuldades de aprendizagem[4]. Em longo prazo, os efeitos podem ser ainda mais graves: há evidências científicas que indicam que “filhos de pais superprotetores tendem a ter uma expectativa de vida reduzida, com maior risco de morte prematura, chegando a 22% para mulheres e 12% para homens que receberam esse excesso de proteção na infância”[5].
Em ações de guarda, é imprescindível que o Judiciário esteja atento à identificação de posturas superprotetoras e à sua real motivação. Quando exercida de forma a excluir o outro genitor, dificultar o regime de convivência ou subjugar a autonomia dos filhos, a superproteção deixa de ser expressão de cuidado e passa a configurar instrumento de poder, que instrumentaliza as crianças e ignora sua condição de sujeitos de direitos.
Não se pode admitir que o modelo de criação baseado no controle absoluto seja naturalizado ou relativizado em nome de uma suposta sensibilidade parental. Ao contrário, tal conduta deve ser rechaçada pelas instâncias decisórias, com adoção de medidas que resguardem o direito da criança a uma convivência plural, equilibrada e emocionalmente segura com ambos os genitores.
A proteção da infância exige mais do que presença física: exige preparo emocional, respeito à autonomia, estímulo ao crescimento e compromisso com o afeto compartilhado. A superproteção parental, especialmente quando utilizada como forma velada de afastamento do outro genitor, representa grave ameaça à formação saudável da criança e deve ser expressamente considerada nos processos judiciais que envolvem guarda e convivência.
Proteger não é isolar, vigiar ou impedir. Proteger é educar com afeto, estimular a independência e garantir o direito de a criança construir relações livres, seguras e equilibradas com ambos os pais. O melhor interesse da criança — princípio orientador do Direito de Família — só se concretiza quando se reconhece que o cuidado, para ser legítimo, precisa ser compartilhado e respeitoso da sua subjetividade.
[1] Aluna especial no programa de doutorado em Direito da USP. Mestra em Direito Civil pela PUC-SP. Especialista em Direito de Família e Sucessões pela PUC-SP. Professora da PUC- Campinas. Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro da Comissão de Direito de Família e Sucessões da OAB Campinas. Advogada de Direito de Família e Sucessões no Vaiano Advogados.
[2] BRANDÃO, Diéferson Artur. Transtorno de Pânico e Relações com a Superproteção Parental. Pretextos - Revista da Graduação em Psicologia da PUC Minas. Vol.: 4, n. 8, jul./dez. 2019. Disponível em: < https://periodicos.pucminas.br/pretextos/article/view/18669 >.
[3] ANDRADE, Andriele Souto de. Papel da Família no Processo de Ensino Aprendizagem: Quando o Excesso de Superproteção se Torna um Problema? Universidade Federal do Tocantis. Monografia (Graduação). Miracema do Tocantins, 2022. Disponível em: < https://repositorio.uft.edu.br/handle/11612/5136 >, p. 14.
[4] UNIMED. Superproteção: os efeitos na autonomia da criança. Viver Bem, 25 maio 2022. Disponível em: < https://viverbem.unimed.coop.br/familia-em-foco/infancia-e-adolescencia/superprotecao-e-autonomia-da-crianca/ >.
PSICÓLOGO.COM.BR. Pais superprotetores: consequências para a vida dos filhos. 24 maio 2021. Disponível em: < https://www.psicologo.com.br/blog/pais-superprotetores/ >.
[5] PAIVA, Ana Beatriz. Pais superprotetores: sinais, consequências e como evitar. Quero Bolsa, [S. l.], 16 out. 2024. Disponível em: < https://querobolsa.com.br/revista/pais-superprotetores/ >.
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