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O que ocorre com os adolescentes institucionalizados e não adotados ao completarem 18 anos?
Dimas Messias de Carvalho[1]
O Estatuto da Criança e do Adolescente garante aos menores todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando todas as oportunidades e facilidades para proporcionar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade[2], colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração violência, crueldade e opressão (art. 227, CF[3]).
Os direitos fundamentais são assegurados à criança e ao adolescente sem qualquer discriminação, tratando-se de dever da família, da comunidade, da sociedade em geral, do Poder Público, devendo serem efetivados, com absoluta prioridade, direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 4º, ECA[4]).
O direito fundamental à convivência familiar garante à criança e ao adolescente o direito de ser criado e educado no seio de sua família, em ambiente saudável que permita seu pleno desenvolvimento (art. 19, ECA[5]). Diante da impossibilidade de manutenção na família natural, O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê o acolhimento do menor em família substituta, que pode ocorrer mediante guarda, tutela e adoção. A adoção é medida excepcional e somente será permitida na impossibilidade de manutenção na família natural ou extensa (art. 39, §1º, ECA[6]).
Nas hipóteses de impossibilidade de manutenção da criança e do adolescente na família natural ou extensa e excepcionalmente sob guarda, deve ser aplicada medida protetiva de acolhimento institucional ou familiar (art. 101, VII e VIII, ECA). para retirar o menor do ambiente de violação de seus direitos fundamentais. Impossibilitado o retorno para a família de origem (natural ou extensa), deve ser enviado relatório fundamentado ao Ministério Público para ajuizamento de ação de destituição do poder familiar, possibilitando inserir a criança ou o adolescente nos cadastros de adoção (art. 101, §§9º e 10[7]).
O acolhimento institucional em regra deve ser temporário, no prazo máximo de dezoito meses, mas pode ser prorrogado por necessidade e por interesse do menor (§2º, do art. 19, ECA[8]). O acolhimento ocorre principalmente nos ”Abrigos”, que são instituições mantidas pelo poder público para receber crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social, em espaço físico comunitário, “onde eles moram e são cuidados por agentes, que exercem a função de educadores sociais, sendo responsáveis por suprir as necessidades básicas de alimentação, higiene, educação, afeto e organização da rotina diária”[9]
Além dos abrigos as crianças e adolescentes são acolhidas nas chamadas “Casa-Lar” que é um serviço de acolhimento prestado em unidades residenciais, nas quais uma pessoa ou casal em uma casa que não é a sua trabalha como educador/cuidador residente, prestando os cuidados a um grupo menor para estimular o desenvolvimento de relações mais próximas ao ambiente familiar, promovendo hábitos e atitudes de autonomia e de interação social com as pessoas da comunidade.
Por fim, admite-se ainda o acolhimento familiar da criança e do adolescente nas residências de “Famílias Acolhedoras”, previamente cadastradas, em ambiente familiar, proporcionado por casal ou por apenas uma pessoa, com número reduzido de acolhidos, recebendo subsídios do poder público para proporcionar os cuidados de alimentação, educação, saúde, lazer e uma relação afetiva como ocorre em ambiente familiar. Pouco difundido no Brasil, esse serviço é consolidado na Europa e Estados Unidos.
O adolescente que não foi reinserido na família de origem ou adotado acaba por ficar em acolhimento institucional e protegido até completar a idade de dezoito anos. Atingida a maioridade, entretanto, precisam deixar o abrigo, o que é extremamente angustiante se não possuírem apoio em momento de transição, um local para residirem e condições de sobrevivência.
O Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA expediram em conjunto, no dia 18 de junho de 2009, a RESOLUÇÃO CONJUNTA n. 01/2009, que “Aprova o documento Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes”. O documento elaborado com contribuições de organizações sociais, gestores dos Conselhos de Assistência Social e Conselhos dos Direitos das Crianças e Adolescentes estaduais e municipais busca implementar a nível nacional um sistema uniformizado para nortear os diversos serviços de acolhimento, que não se confundem com a internação para cumprimento de medidas sócio-educativas.
O documento inova no item 4.4 ao prever a criação de “Repúblicas” para os jovens entre dezoito e vinte anos em processo de desligamento do serviço de acolhimento, em situação de vulnerabilidade com vínculos familiares rompidos ou extremamente fragilizados e sem meios de auto-sustento. A República possui a estrutura de uma residência, com supervisão técnica, organizada separadamente em unidade feminina e masculina, com no máximo seis jovens, oferecendo atendimento durante o processo de construção de autonomia pessoal e possibilitando o desenvolvimento de auto-gestão, auto-sustentação e independência.
Lamentavelmente poucos municípios no Brasil oferecem o acolhimento aos jovens desligados dos serviços de acolhimento. Notícia no jornal “O Globo” em 21.07.2024, com o título “A angústia dos 18 anos: jovens acolhidos em abrigos não têm para onde ir após alcançarem a maioridade”, informa a situação de três adolescentes que estão prestes a completar 18 anos e terão que sair do abrigo sem ter para onde ir, mesmo existindo uma ação proposta pela Defensoria Pública transitada em julgado em São João do Meriti, obrigando o município a criar uma república masculina e uma feminina. É flagrante a invisibilidade desses jovens pelo poder público e o dia do aniversário que deveria ser comemoração se torna dia de angústia e desespero.
É inequívoco que a ausência de apoio do poder público nesse momento de transição para aqueles que desligados não possuem meios de sustento, acaba por incentivar envolvimento na criminalidade e prostituição. Nos locais onde existem repúblicas surgem boas experiências. A “Agência Brasil” apresenta notícia, com o título “O desafio para jovens não adotados que completam 18 anos” (07.03.2021), de moços e moças que vivem em repúblicas em São Paulo e que estão trabalhando e estudando, para que, como declarou uma jovem, os “serviços como esses são importantes para que os jovens tenham autonomia e sejam protagonistas de sua história”.
O programa “Profissão Repórter” exibiu matéria em 07.08.2024 sobre “o que acontece com os jovens que não são adotados até os 18 anos. Entenda. Pela lei, o adolescente que não é adotado precisa deixar o abrigo quando atinge a maioridade” A foi gravada em São Paulo, onde existem repúblicas. Adolescentes com 17 anos foram entrevistados, mas apesar da apreensão em sair do abrigo, estão seguros com o futuro. Uma adolescente declarou que “a cabeça está a milhão, porque quando eu sair daqui vai ser eu e eu né? Agora é focar nos estudos mesmo. Tipo trabalhar, fazer faculdade”. Outro diz: “Então muito provavelmente eu vou para uma república, né? O que aqui em São Paulo para nós é meu que garantido”.
O ECA e o Estatuto da Juventude são omissos quanto às repúblicas para os jovens desacolhidos, entretanto tramita no Congresso Nacional o PLS 507/2018, alterado na Câmara Federal para PL 1.118/2022, que dispõe sobre políticas públicas de apoio destinadas ao atendimento de jovens desligados ou em processo de desligamento de instituições de acolhimento destinadas a crianças e adolescentes. O projeto prevê a criação de repúblicas organizadas em unidades femininas e masculinas, com supervisão técnica, disponibilizando alimentação, destinada a jovens com idade entre dezoito e vinte e um anos egressos de instituições de acolhimento.
Dispõe o art. 3º do Projeto:
Art. 3º O serviço de apoio organizará moradias, denominadas repúblicas, com a estrutura de uma residência privada.
§ 1º A república receberá supervisão técnica e será localizada em áreas residenciais, seguindo o padrão socioeconômico da comunidade onde estiver inserida.
§ 2º A república oferecerá atendimento durante o processo de construção de autonomia pessoal do jovem e possibilitará o desenvolvimento de autogestão, autossustentação e independência.
§ 3º A permanência na república terá prazo limitado, podendo ser reavaliado e prorrogado em função da necessidade específica de cada jovem, atestada por profissional participante do serviço de apoio.
O PLS 507/2018 foi aprovado no Senado e na Câmara Federal recebeu o nº PL 1.118/2022 e tramita no regime de prioridade, aguardando parecer da Comissão de Trabalho e sujeito à apreciação do plenário. O projeto determina prioridade aos jovens oriundos das instituições de acolhimento na seleção para o serviço militar e, no processo de transição para as repúblicas, acesso a programas culturais, aceleração da aprendizagem e de cursos profissionalizantes, que será mantido na república, devendo o poder público, ainda, promover a inserção dos jovens no mercado de trabalho por intermédio das parcerias público-privadas ou de empresas vinculadas aos programas governamentais.
A aprovação da lei criando as repúblicas e promovendo ações efetivas para inserção dos jovens oriundos de programas de acolhimento no mercado de trabalho e preparando para a escolha de nova moradia, vai suprir a invisibilidade desses jovens pelo poder público, possibilitando sua inserção na sociedade. Ao completar vinte e um anos o jovem será desligado da república, mas existe ainda a possibilidade de permanecer pelo prazo máximo e inadiável de seis meses.
[1] Promotor de Justiça aposentado. Advogado especializado em Direito de Família e Sucessões e sócio do escritório Carvalho & Dimas Carvalho – email carvalhodimascarvalho@gmail.com. Mestre em Direito Constitucional. Professor.
[2] Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
[3] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[4] Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária
[5]Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.
[6] Art. 39. A adoção de criança e de adolescente reger-se-á segundo o disposto nesta Lei.
§ 1 o A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei
[7] Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:
(...)
VII - acolhimento institucional;
VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar;
[8] § 2 o A permanência da criança e do adolescente em programa de acolhimento institucional não se prolongará por mais de 18 (dezoito meses), salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária
[9] BRAGA, Cinara Viana Dutra. Acolhimento Institucional e adoção: evolução prática e o direito fundamental à convivência familiar e comunitária. In A invisibilidade da criança e do adolescente - Ausência de direitos fundamentais. Coords. Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira. Org. Silvana do Monte Moreira. Belo Horizonte: IBDFAM, 2023. P. 241.
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