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Herdeiros carentes de vítimas protegidos pela ADO 62
Jones Figueirêdo Alves
Introdução. Em nome do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, admitido perante o Supremo Tribunal Federal como amicus curiae, figura instituída no país com a Lei 9.868/99 e na forma do art. 138 do Código de Processo Civil, recebemos a honrosa missão de proferir sustentação oral (01) durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 62/2021-DF, iniciado no dia 13 de junho corrente.
O então procurador-geral da República, Augusto Aras, ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF), em 01.03.2021, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 62, em que pede seja declarada a omissão inconstitucional do Congresso Nacional em editar lei que disponha sobre as hipóteses e as condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso; sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito. (02)
O IBDFAM, por Petição n. 34549/2021 requereu (29.03.21) a sua admissão no processo como amicus curiae, através do seu diretor jurídico nacional, o jurista Ronner Botelho Soares, acolhida por decisão do Ministro Relator. (03)
A Advocacia-Geral da União arguiu que não haveria mora na edição da lei a que se refere o art. 245 da CF/1988, dada a existência de “quantidade expressiva de projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional que foram apresentados sob o propósito de ampliar a assistência protetiva de que trata o art. 245 da Lei Maior, mediante a instituição de um benefício assistencial ou indenizatório”.
Entretanto, como bem se pronunciou a PGR, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a simples existência de projeto(s) de lei não é bastante para desqualificar a omissão legislativa inconstitucional (ADI 3.682/MT, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 6.9.2007; ADO 24-MC, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 1º.8.2013; ADO 26/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 6.10.2020, entre outros julgados).
O feito tem como relator o ministro Dias Toffoli.
Sustentação oral. Os termos das razões expostas pelo IBDFAM, como amicus curiae, para que seja julgado procedente o pedido da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade por omissão, estão alinhados, como adiante se segue:
Anota-se que a referida ação versa sobre a mora do Congresso Nacional, observada à época do seu ajuizamento por quase trinta e quatro anos, em adotar medidas para tornar efetivos os comandos do art. 245 da Constituição Federal (04)
Registra-se, ainda, por sua elevada relevância, tratar-se o julgamento um dos momentos mais eloquentes e significativos da Excelsa Corte, operando a substancial aproximação do STF com a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, onde em seus dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), sublinha-se a resiliência daqueles em situação de vulnerabilidade.
Com especificidade, em decorrência da morte ou a incapacitação do responsável pela manutenção da família, implicando expressivas perdas financeiras que reclamam a proteção social do Poder Público para a própria sobrevivência dos herdeiros e dependentes, assegurando-lhes dignas condições de vida.
Importa acentuar, no epicentro da omissão, a exata latitude da norma constitucional de referência, cuja plena efetividade depende, flagrantemente, da intermediação do Poder Público, que permanece inerte, para a devida e adequada assistência social programada aos filhos e dependentes das vítimas.
Inegavelmente a provocação da presente ação, representa valioso impulso ao fortalecimento do movimento vitimológico, surgido na década de 1970 (Mendelsohn, 1976) tratado adiante nos estudos de Antônio Garcia-Pablos de Molina e, sobremodo, sob os impulsos da moderna criminologia, de modo a contribuir para uma mais dinâmica e desejada doutrina da vítima. Uma doutrina de cuidados, em proteção da cidadania, ainda não integral em seus direitos.
Induvidosamente existe um substancial elo de correlação entre o dever de prestar a assistência social aos necessitados, a solidariedade social, a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial, conforme já manifestado no julgamento do RE 587.970 por esta Suprema Corte. (05)
Tenha-se, de prontidão, incontroverso o “nexo etiológico entre a lacuna e o bloqueio de direitos”, a consagrada advertência do constitucionalista Walber de Moura Agra, quando assevera:
“O texto originário da Constituição Cidadã de 1988 poderia ser classificado como o de uma Constituição dirigente, em que o Estado intervém em vários setores da sociedade para garantir condições mínimas aos hipossufcientes. O maior problema que atinge esse tipo de texto constitucional em países periféricos é o da baixa eficácia de seus dispositivos normativos, o que acarreta descrédito com relação à sua força normativa e, consequentemente, enfraquece o sistema constitucional. Grande parte dos mandamentos constitucionais da Carta de 1988 encontra-se, ainda hoje, destituída de eficácia, servindo apenas como valor retórico para garantir o poder do status quo”.
Apresenta-se também indiscutível que “ao não proteger suficientemente tais direitos, o Estado viola a proibição de proteção deficiente, o que se tem constatado todas as vezes quando o Estado não legisla, adequadamente, a proteção de determinado direito fundamental, implicando uma notória deficiência.
É bem dizer que as obrigações de Estado não devam ser prestadas aquém do necessário integral, porque se assim forem, estará o Estado incorrendo em proteção deficiente, a não poder se permitir ou tolerar. Qualquer que seja a deficiência de uma prestação legislativa impostergável, o elemento da insuficiência resultará na desproteção dos bens jurídicos fundamentais tuteláveis. É exatamente o caso presente.
Caracterizado o estado de mora inconstitucional, a inertia deliberandi, quando o omitente deixa de cumprir um mandamento constitucional impositivo, ocorrendo a inação de quem de direito, com drásticos gravames à ordem jurídica, tudo está a exigir uma urgente regulação jurídica das vulnerabilidades esquecidas.
Das Vulnerabilidades. E continuou a sustentação: Muito pouco foi tratado, até então, sobre a categoria de um grupo de pessoas vulneráveis, as que se encontram sob a herança da perda dos seus pais ou de seus provedores, vitimados uns e outros pelos crimes dolosos contra eles praticados, e que se colocam, daí, fragilizadas e desprotegidas, com a denominação de “herdeiros carentes” segundo a leitura do art. 245 da Constituição Federal.
Em serviço de reforço doutrinário, impõe-se, assinalar, com devido destaque, a ponderação das juristas Ana Carolina Brochado Teixeira e Maria Carla Moutinho Nery, quando pontificam:
“a tutela das vulnerabilidades foi levada a sério no direito brasileiro a partir do momento em que o ordenamento jurídico colocou a pessoa humana em seu centro de proteção e promoção” (...) e que “o reconhecimento da vulnerabilidade de alguns grupos é a forma de se concretizar uma tutela positiva, já que a simples proibição da discriminação se demonstrou insuficiente para a promoção da igualdade substancial de certas pessoas, sendo necessário ações afirmativas no sentido de editar leis especiais para a proteção a esses grupos”.
Reflita-se, a toda evidência, que todos os grupos vulneráveis compõem famílias, em seus fenômenos jurídicos e sociais, a exemplo de crianças, adolescentes, idosos, pessoas descapacitadas, mulheres sob violência doméstica, o que configura, inegavelmente, a vis atrativa do direito constitucionalizado, sob a dicção, proteção e influência decisiva deste Supremo Tribunal Federal.
Foi preciso ser ajuizada essa ação, em busca de regulamentação da norma constitucional para, nessa realidade omissiva aberta à discussão da sociedade, dar-lhes a devida e urgente visibilidade jurídica. E, designadamente, de tudo que convém regulamentar a proteção a esse grupo vulnerável, nas pessoas individualmente consideradas, também ser garantida, nesse propósito de ordem legal, uma efetividade protetiva plena e eficaz.
Da devida assistência integral. Ao referir o art. 245, C.F., que “a lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso”, impende observar que o FUNAV - Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos – não se apresenta suficiente a exaurir essa regulação.
Mecanismos devem ser assegurados à imediata efetividade de implemento aos direitos dos herdeiros e dependentes carentes a uma devida assistência integral.
No ponto, o valor de benefício financeiro não deve ser tarifado, devendo guardar a sua devida conformidade com a inteligência do artigo 1.694 do Código Civil, quando o Estado se substituirá ao provedor, devendo, portanto, assegurar aos referidos herdeiros e dependentes carentes”, alimentos “de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”.
Ponderável que assistência financeira haverá de dispensar, para esse fim, a comprovação da autoria do crime ou o pronunciamento final das instâncias de persecução criminal.
Em outro giro, a regra constitucional do art. 245, C.F., ao tratar da “prestação assistência”, não pode ser entendida, restritivamente ao suporte financeiro dos desassistidos. A assistência aos vulneráveis, nessa espécie, colima uma proteção integral, ou seja, a proteção quanto bastante, como a Constituição Federal assim também reserva como cláusula protetiva aos demais grupos vulneráveis. Ou seja, mais precisamente, o significado “carência” não deverá, ser limitado ou subsumido ao mero conteúdo econômico, devendo a lei assim dispor, em coerência.
Como aludiu Mauro Cappeletti referido por Fernanda Tartuce:
“A nossa é a época do direito responsabilizado, do direito não separado da sociedade, mas intimamente ligado a ele, às suas necessidades, às suas demandas, ao grito de esperança, mais ´espesso´ diante dos justos protestos e das dores que vêm da sociedade”
Um direito responsabilizado, em verdade, resulta proteger a vulnerabilidade dos herdeiros e dependentes carentes de vítimas de crimes dolosos, em face das suas mais diversas relações jurídico-sociais, pelo que as condições de assistência que devam ser prestadas pelo Estado alcancem maiores latitudes, programadas nas leis especiais. Esse é um trabalho legisferante que urge ser feito.
Cumpre assinalar que a ausência de leis específicas não se trata de uma opção política de não legislar, porquanto os direitos desse segmento vulnerável são inalienáveis e fundamentais, a saber que o ditame do art. 245 da CF é incisivo sobre a necessidade de edição da lei (“a lei disporá...”).
Todavia, malgrado esse comando, omitiu-se a Constituição de fixar prazo determinado para o exercício da iniciativa reservada, cabendo agora ao STF, para os efeitos do art. 245, C.F., pronunciar-se a respeito.
Da urgência da regulação. A disposição do art. 245 do CF deve refletir um título autônomo, na configuração de um preceito constitucional até agora descumprido, e em razão de sua importância - embora medidas jurídicas especiais sejam cabíveis de caso concreto – reclama-se prioritariamente a solução legislativa cabível, com a contribuição de toda a sociedade civil e jurídica, representativa por suas instituições e academias, como ora se manifesta o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Demais disso, capítulo próprio deve ser dado ao problema da violência letal contra as mulheres, quando os órfãos do feminicídio, na sua absoluta maioria, menores de idade, devem ser havidos como filhos do Estado, à exata medida onde o Estado falha na proteção das vítimas dos crimes do tipo.
Os direitos de herdeiros carentes de vítimas de crimes estão sendo protraídos e violados em seu exercício, por indisfarçável omissão do Estado. Enquanto isso, milhares de famílias privadas repentinamente da subsistência por morte dos seus provedores, constituídas por órfãos, herdeiros e outros dependentes carentes, padecem, diariamente, de uma tragédia silenciosa de desassistência social.
Quando a ideia de uma sociedade aberta de intérpretes, defendida por Peter Häberle, o jurista alemão criador do instituto do “amicus curiae”, pode ser bem traduzida por uma sua expressão lapidar: “Constituição é declaração de amor ao país, este julgamento prestar-se-á a um histórico acréscimo:
“Efetivar a Constituição, em sua inteireza e completude, é amar mais ainda.”
Em inexistindo dúvida quanto à obrigação do Estado de legislar e de efetivamente prestá-la a quem de direito, requer-se, portanto, seja julgado procedente o pedido desta ação direta, para declarar-se a inconstitucionalidade por omissão, cientificando-se o Congresso Nacional para que elabore a norma pertinente.
Afinal, todas as famílias são sagradas famílias, inclusive aquelas formadas por herdeiros carentes de vítimas de crimes, também atingidos na sacralidade de suas dignidades de pessoa; merecendo, portanto, a proteção do Estado.
O IBDFAM diz sim à ação direta.
Conclusão. Finda a nossa sustentação oral, com a fundamentação acima delineada, o Ministro Relator Dias Toffoli proferiu seu voto, desacolhendo o pedido formulado na ADO. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do Min. Flávio Dino.
Referências:
(00). A outorga de poderes para a sustentação oral operou-se por instrumento de substabelecimento, nesse fim, em data de 03.06.2025.
(02) ADO 62/2021-DF. Web:
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6120625
(03) No Requerimento de admissão como “amicus curiae”, o IBDFAM faz referência a artigo de nossa autoria: Herdeiros carentes de vítimas de crimes são famílias desprotegidas.
(04) Art. 245, Constituição Federal: A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito
(05) Web: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=312785203&ext=.pdf
O Tribunal, apreciando o tema 173 da repercussão geral, negou provimento ao recurso, fixando a seguinte tese: “Os estrangeiros residentes no País são beneficiários da assistência social prevista no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, uma vez atendidos os requisitos constitucionais e legais”.
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Jones Figueirêdo Alves é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Advogado, Consultor e parecerista.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM