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Não comunicabilidade patrimonial e seus limites no direito de família: efeitos econômicos no divórcio no regime de separação de bens
Caroline Valéria Adorno de Macêdo. Especialista em Direito de Família e Sucessões. Advogada.
Resumo.
O presente artigo analisa, sob perspectiva crítica e técnico-jurídica, os limites da não comunicabilidade patrimonial no regime de separação de bens, especialmente à luz dos deveres de solidariedade, assistência mútua e boa-fé objetiva que estruturam o Direito de Família contemporâneo. Demonstra-se que, embora o regime de separação de bens preserve a autonomia patrimonial formal, não exclui a possibilidade de repercussões econômicas na dissolução do vínculo conjugal ou da união estável, manifestadas na fixação de pensão alimentícia e, sobretudo, de alimentos compensatórios. Fundamentado na doutrina, na legislação e na jurisprudência contemporânea, o estudo conclui que a separação patrimonial não exime os sujeitos das consequências econômicas da construção conjunta da vida familiar.
Abstract.
This paper examines, from a critical and legal perspective, the limits of patrimonial non-communication in the separation of property regime, particularly in light of the duties of solidarity, mutual assistance, and good faith that underpin contemporary Family Law. It demonstrates that, although the separation of property regime preserves formal patrimonial autonomy, it does not exclude the possibility of economic repercussions upon dissolution of marriage or stable union, manifested in the imposition of alimony and, notably, compensatory alimony. Grounded in doctrine, legislation and contemporary jurisprudence, the study concludes that patrimonial separation does not exempt parties from the economic consequences of jointly building family life.
Palavras-chave: Separação de bens. Não comunicabilidade patrimonial. Pensão alimentícia. Alimentos compensatórios. Solidariedade familiar.
Keywords: Separation of property. Patrimonial non-communication. Alimony. Compensatory alimony. Family solidarity.
A adoção do regime de separação de bens, seja pela via convencional, por meio de pacto antenupcial, seja nas hipóteses de separação obrigatória previstas no artigo 1.641 do Código Civil, é frequentemente interpretada — tanto no senso comum quanto, por vezes, na prática jurídica — como uma cláusula de imunização patrimonial absoluta. Esse entendimento distorcido induz muitos a acreditar que, uma vez eleito esse regime, não haveria qualquer possibilidade de repercussão econômica entre os cônjuges ou companheiros, seja no decorrer da relação, seja por ocasião da sua dissolução.
A rigor, a separação de bens efetivamente concretiza a não comunicabilidade patrimonial, o que significa que cada cônjuge ou companheiro mantém a titularidade exclusiva de seus bens, tanto dos adquiridos antes como dos adquiridos durante a constância do relacionamento, sem que haja meação, comunhão de aquestos ou partilha. Essa é, de fato, a essência normativa do regime, tal como delineado no artigo 1.687 do Código Civil.
Contudo, essa regra patrimonial não opera como cláusula geral de exoneração dos deveres econômicos que emergem da própria constituição da entidade familiar. Eis aqui uma distinção que não apenas é relevante, mas absolutamente essencial para a compreensão jurídica contemporânea das relações familiares: a não comunicabilidade patrimonial não impede, nem afasta, a incidência de deveres econômicos de natureza existencial, assistencial ou compensatória, que são inerentes à própria estrutura da entidade familiar.
O Direito de Família contemporâneo opera, portanto, em dois planos normativos autônomos: de um lado, o plano patrimonial, disciplinado pelo regime de bens; de outro, o plano dos deveres existenciais, fundamentado nos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), da solidariedade familiar (art. 3º, I, e art. 226 da CF/88), da função social da família e da boa-fé objetiva (art. 422 do CC).
Essa distinção permite compreender, com rigor técnico, que, embora o patrimônio formal não se comunique, é juridicamente possível — e frequentemente necessário — que a dissolução da sociedade conjugal ou da união estável dê ensejo a obrigações econômicas compensatórias ou assistenciais, quando a dinâmica da vida comum revela desequilíbrios econômicos relevantes.
Essa lógica ganha especial relevância nos casos em que, durante a constância da relação, um dos cônjuges ou companheiros renuncia, total ou parcialmente, ao desenvolvimento profissional, à autonomia econômica e à formação de patrimônio próprio, em favor da vida familiar, da criação dos filhos e, não raramente, do suporte material e emocional ao próprio desenvolvimento profissional do outro cônjuge.
É precisamente nesse cenário que emergem dois institutos distintos, mas frequentemente confundidos na prática: a pensão alimentícia, de natureza assistencial, e os chamados alimentos compensatórios, de natureza patrimonial e indenizatória.
A pensão alimentícia, fundada no artigo 1.694 do Código Civil, decorre diretamente do dever de mútua assistência (art. 1.566, III, CC) e do dever de solidariedade (art. 1.724 do CC, no caso da união estável). Sua finalidade é assegurar a subsistência do alimentando, preservando sua dignidade e padrão de vida, especialmente no período de reorganização pessoal após a dissolução da vida comum.
A moderna orientação jurisprudencial tem conferido caráter transitório e excepcional aos alimentos entre ex-cônjuges, salvo nas hipóteses em que reste demonstrada absoluta impossibilidade de autossustento, seja por idade avançada, enfermidade grave ou concreta impossibilidade de reinserção no mercado de trabalho.
De outro lado, os alimentos compensatórios não se destinam à subsistência, mas à recomposição econômica do cônjuge ou companheiro que, pela configuração da vida conjugal, encontra-se em situação de desequilíbrio econômico na dissolução da entidade familiar. Têm, portanto, natureza eminentemente indenizatória, patrimonial e distributiva.
Esses alimentos são especialmente aplicáveis quando se verificam, de forma concomitante, os seguintes elementos fáticos:
- Relação de longa duração;
- Divisão funcional da vida familiar, com dedicação de um dos cônjuges ao lar e à família, em detrimento do desenvolvimento econômico pessoal;
- Formação substancial de patrimônio exclusivo pelo outro cônjuge;
- Expressivo desequilíbrio patrimonial na dissolução.
Esse raciocínio foi vigorosamente reafirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, em decisão emblemática proferida em fevereiro de 2024, na qual manteve a condenação de um ex-companheiro ao pagamento de R$ 4 milhões a título de alimentos compensatórios. O caso envolveu a dissolução de uma união estável formalizada sob o regime de separação de bens, na qual ficou cabalmente demonstrado que a mulher, durante mais de duas décadas de relacionamento, abdicou integralmente de sua vida profissional, da formação de patrimônio e de sua autonomia econômica, para se dedicar ao lar, aos filhos e ao suporte do projeto de vida comum, enquanto o companheiro acumulava expressivo patrimônio pessoal.
A decisão, amplamente divulgada no meio jurídico, reafirma que a separação patrimonial, embora preserve a autonomia formal dos bens, não exime os sujeitos das consequências econômicas derivadas da configuração concreta da vida em comum e da divisão funcional estabelecida pelas partes durante a convivência.
Dentro dessa lógica, emerge uma indagação sofisticada e recorrente no campo do planejamento patrimonial: seria possível, por meio de pacto antenupcial, convencionar cláusula de renúncia ao direito de pleitear pensão alimentícia ou alimentos compensatórios em eventual dissolução do vínculo?
A resposta, sob qualquer ângulo jurídico válido, é negativa. Embora a autonomia privada encontre espaço no direito contratual e, em certa medida, no direito de família — especialmente no que se refere à definição do regime de bens e à organização patrimonial —, ela encontra limites rígidos quando se trata de direitos de natureza existencial, alimentar e solidária.
O artigo 1.707 do Código Civil, ao estabelecer que “pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos”, reafirma a natureza irrenunciável, impenhorável e inalienável do crédito alimentar enquanto subsistirem os pressupostos legais que o autorizam.
Além disso, os deveres de mútua assistência, de solidariedade familiar, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social vedam, de forma categórica, qualquer cláusula contratual que pretenda suprimir, de forma prévia e absoluta, o direito a alimentos, sejam eles de natureza assistencial, sejam compensatórios.
A própria lógica dos alimentos compensatórios reforça essa vedação. A existência, ou não, de desequilíbrio econômico compensável é fato que somente pode ser aferido no momento da dissolução da entidade familiar, jamais de forma antecipada. Portanto, qualquer cláusula de renúncia, ainda que formulada no pacto antenupcial, carece de eficácia jurídica, seja por iliquidez e incerteza fática, seja por violação à norma cogente e aos deveres de proteção inerentes ao Direito de Família.
Portanto, embora é lícito e desejável que os cônjuges ou companheiros, por meio de pacto antenupcial, estabeleçam regras claras sobre seus regimes patrimoniais, definindo, inclusive, a incomunicabilidade de bens presentes e futuros, não lhes é dado, todavia, abdicar, antecipadamente, dos deveres de assistência, solidariedade e recomposição econômica, que são de ordem pública, inderrogáveis e insuscetíveis de convenção em sentido contrário.
Diante desse panorama, é possível afirmar, com absoluta segurança técnica, que a não comunicabilidade patrimonial protege formalmente os bens, mas não isenta os sujeitos das responsabilidades econômicas que derivam da construção conjunta de uma vida em comum, das escolhas realizadas, das renúncias feitas e da divisão funcional assumida ao longo da convivência.
A separação patrimonial impede, sim, a formação de acervo comum, mas não suprime, nem neutraliza, os efeitos econômicos de natureza existencial, solidária e compensatória, que são imanentes à própria estrutura da entidade familiar.
Negar essa realidade seria esvaziar o Direito de Família de sua função social, reduzindo-o a um sistema de normas patrimoniais incapaz de responder às complexas dinâmicas humanas que se operam no seio das relações familiares. O ordenamento jurídico brasileiro, felizmente, repudia essa concepção reducionista e reafirma que a proteção da autonomia patrimonial não pode, e tampouco deve servir como instrumento de opressão econômica, mas sim como ferramenta de liberdade, equilíbrio e justiça.
Se, por um lado, o patrimônio não se comunica, por outro, não se pode pretender que a vida partilhada, os projetos comuns, as escolhas conjugais e os sacrifícios unilaterais sejam juridicamente invisíveis. A comunhão de vidas, embora não gere, sob a ótica da separação de bens, comunhão de patrimônio, produz, incontestavelmente, deveres, responsabilidades e, sobretudo, consequências econômicas que encontram plena ressonância no sistema jurídico, especialmente quando se impõe restaurar a equidade rompida pela dissolução do vínculo.
Referências
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
MIGALHAS. STJ mantém alimentos compensatórios de R$ 4 milhões a ex-companheira. Publicado em 28 fev. 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/432894/stj-mantem-alimentos-compensatorios-de-r-4-milhoes-a-ex-companheira. Acesso em: 18 jun. 2025.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito de Família. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.
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