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A prática de sharenting e o superior interesse da criança
A prática de sharenting[1] e o superior interesse da criança[2]
Lidia Marta Zucchi*
Maria Flamínia Aurora Faria Corte-Real**
Sumário: 1. Introdução. 2. Responsabilidades parentais: enquadramento. 3. Direitos da personalidade. 3.1. O direito à imagem. 3.2. O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada. 4. A prática de sharenting e o superior interesse da criança. 4.1. Jurisprudência portuguesa relativa ao sharenting. 5. Consideração finais. 6. Referências bibliográficas.
Resumo: Por força dos arts. 122.º e 123.º do Código Civil português, pessoas singulares com idade não superior a 18 anos são consideradas menores e carecem de capacidade de exercício. O suprimento dessa incapacidade cabe aos titulares do exercício das responsabilidades parentais, conforme o art. 124.º.
O art. 1878.º, do mesmo diploma legal, enumera um conjunto de deveres que devem ser observados por quem exerce as responsabilidades parentais. Todavia, tal preceito não parece incluir a livre disposição da imagem e/ou da intimidade da vida privada dos menores.
Posto isto, o presente estudo propõe-se abordar, ainda que de forma sucinta, alguns aspectos relevantes relacionados com a divulgação da imagem de menores na internet, por parte dos pais, no âmbito do exercício das responsabilidades parentais, bem como a eventual violação dos direitos de personalidade dos mesmos.
Com o avanço das tecnologias digitais e a massificação da internet, a questão relativa ao direito à imagem – e demais direitos de personalidade a este conexos – passou a configurar-se como um bem jurídico merecedor de tutela. Desde 2015, os tribunais portugueses têm vindo a ser reiteradamente chamados a pronunciar-se sobre a matéria. Neste contexto, serão analisadas, no desenrolar deste trabalho, algumas decisões proferidas por diferentes instâncias do tribunal português.
Palavras-chave: direito à imagem; direito à reserva sobre a intimidade da vida privada; responsabilidades parentais; sharenting; superior interesse da criança.
Abstract: By virtue of articles 122 and 123 of the Portuguese Civil Code, individuals under the age of 18 are considered minors and lack legal capacity to act. The suplay of this incapacity is up to those who exercise parental responsibilities, in accordance with article 124.
The article 1878 of the same legal diploma, lists a set of duties that must be observed by those who exercise parental responsabilities. However, such article doesn’t seem to encompass the unrestricted use of the image and/or the private life minors.
in light of the above, the present study aims to address, albeit briefly, some relevant aspects related to the dissemination of images of minors on the internet by parents, within the scope of exercising parental responsibilities, as well as the possible violation of their personality rights.
With the advancement of digital technologies and the widespread use of the internet, the issue of image rights – and other related personality rights – has become a legal asset deserving of protection. Since 2015, Portuguese courts have been repeatedly called to upon to rule on this matter. In this context, some decisions handed down by different instances of Portuguese court will be analyses during the course of this article.
Keywords: best interests of the child; parental responsibilities; privacy or rights relating to the personality; right of personal portrayal; sharenting.
- Introdução
A expressão shareting, de origem inglesa, compreende atos de partilha, por parte dos genitores, de informações e/ou imagens de filhos menores nas redes sociais, no âmbito do exercício das responsabilidades parentais[3], sem que exista o consentimento expresso ou presumido das próprias crianças.
Diante desse contexto, o presente trabalho tem por objetivo examinar as questões jurídicas decorrentes da prática deste fenômeno na atualidade, com especial atenção às possíveis violações ao direito à imagem e à reserva sobre a intimidade da vida privada das crianças, bem como ao exercício das responsabilidades parentais.
É importante não olvidar os inúmeros benefícios proporcionados pela internet, inclusive para crianças e adolescentes, especialmente no que se refere ao estímulo à criatividade, à interação e à socialização. Porém, é igualmente essencial ressaltar os riscos inerentes do mundo digital, por se tratar de um espaço aberto, de fácil acesso a qualquer pessoa, em qualquer tempo e lugar, o que pode acarretar sérias consequências para o público infantojuvenil, que se mostra especialmente vulnerável diante da internet, por se tratar de sujeitos em desenvolvimento psíquico e social, ainda desprovidos de discernimento e maturidade plenos.
Assim, este estudo se propõe a examinar, ainda que de forma sucinta, as responsabilidades parentais e as consequências do compartilhamento excessivo de imagem de filhos na internet. Para tanto, serão invocados o princípio do superior interesse da criança e os direitos de personalidade como fundamentos para a análise.
A metodologia adotada neste trabalho consubstancia-se na análise doutrinária e jurisprudencial, bem como no exame de diplomas legais, tais como a Constituição da República Portuguesa (adiante, CRP), o Código Civil Português (doravante, CCP).
- Responsabilidades parentais: enquadramento
A abordagem jurídica da figura da criança implica, necessariamente, a consideração do regime das responsabilidades parentais[4] (DIAS, 2008, p. 88). Não obstante, não se pretende neste estudo, proceder a uma análise exaustiva desta matéria, mas apenas evidenciar que, no contexto jurídico aplicável a menores, o legislador português reconheceu aos genitores o exercício dos poderes deveres, incumbindo-lhes, por conseguinte, a proteção e representação dos filhos menores até à sua maioridade ou emancipação, ao abrigo dos arts. 132.º e 1877.º do CCP.
Dispõe o art. 122.º do CC que são menores todos aqueles que não tiverem completado 18 anos de idade[5]. Os menores carecem de capacidade para o exercício de direitos (art. 123.º do CCP), cabendo aos genitores, ou a quem exerça as responsabilidades parentais[6], o dever de suprir tal incapacidade (art. 124.º do CCP). Importa ressaltar, contudo, que os menores continuam a ser sujeitos de direito, dotados de personalidade jurídica, embora estejam impedidos de exercer pessoalmente tais direitos, em razão da proteção que lhes é conferida pelo ordenamento jurídico. No entanto, o art. 127.º do CCP elenca um conjunto de circunstâncias que o menor pode praticar por si próprio.
O regime das responsabilidades parentais, de caráter irrenunciável[7], encontra-se consagrado no art. 1877.º e seguintes do CCP. Maria Clara Sottomayor defende uma concepção personalista de responsabilidades parentais, sob o fundamento de que “a criança é considerada […] como uma pessoa dotada de sentimentos e emoções, a quem é reconhecido um espaço de autonomia e de autodeterminação de acordo com a sua maturidade” (SOTTOMAYOR, 2011, p. 17). As responsabilidades parentais não se configuram como um direito subjetivo dos genitores, mas como um poder funcional de exercício obrigatório, que impõe aos pais o dever de assegurar o cumprimento dos direitos e interesses dos filhos, os quais não se encontram na livre disponibilidade do titular do direito-dever (SOTTOMAYOR, 2011, p. 17).
O art. 1878.º, n.º 1 do CCP enumera um conjunto de deveres que competem aos pais no exercício das responsabilidades parentais, especificando a forma como estes devem ser exercidos, uma vez que se trata de poderes atribuídos pela ordem jurídica. Na CRP, podemos extrair do art. 36.º, n.º 5, o reconhecimento de um dever jurídico que recai sobre os progenitores: o dever de educação e da manutenção dos filhos, em conformidade com o superior interesse, sem desrespeitar a personalidade (RODRIGUES, 2011, p. 47). Trata-se, pois, de uma obrigação parental de cuidado (CANOTILHO; VITAL, 2007, p. 565-566).
Os genitores não podem exercer as responsabilidades parentais de livre vontade. Por essa razão, o sistema jurídico português prevê consequências específicas para o seu incumprimento, nomeadamente a inibição do exercício das responsabilidades parentais[8]. Neste contexto, o Estado intervém com a finalidade de assegurar a proteção do menor, conforme o disposto do art. 69.º, n.º 1 da CRP.
Subjacente ao art. 1878.º, n.º 1 do CCP está o princípio do superior interesse da criança, tema que será abordado em momento oportuno com maior detalhe. Estabelece o n.º 2 do referido artigo o dever de garantir a participação dos menores nas decisões que lhes digam respeito, atendendo à sua idade e maturidade, bem como o dever de lhes reconhecer autonomia na organização da sua própria vida. Vale dizer que a leitura da segunda parte do preceito em estudo deve ser realizada em conjugação com a sua parte inicial.
- Direitos da personalidade
- O direito à imagem
Como leciona Capelo de Sousa, os direitos de personalidade são “direitos subjetivos, privados, absolutos, gerais, interiores da pessoa humana” (SOUSA, 1995, p. 611 ss), que têm como finalidade a proteção da integridade e do desenvolvimento físico e moral da pessoa. A este conceito acresce a obrigação de respeito por parte de todos os terceiros. Aquele que os desrespeitar incorre em responsabilidade civil e/ou está sujeito às providências cíveis adequadas, tendo em vista a obstrução da consumação da ameaça e/ou a atenuação dos efeitos resultantes da ofensa cometida[9], conforme prevê o n.º 2 do art. 70.º do CC.
O direito à imagem, constitucionalmente previsto no art. 26.º da CRP, é uma vertente dos direitos da personalidade. Esse direito contempla dois conteúdos: o indivíduo tem “o direito de definir a sua própria auto-exposição (...) e, depois, o direito de não o ver apresentado em forma gráfica ou montagem ofensiva e malevolamente distorcida ou infiel” (CANOTILHO; VITAL, 2007, p. 467). Não é, porém, permitida a invocação desse direito nas situações elencadas no n.º 2 do art. 79.º do CC[10] (CRUZ, 2016, p. 290; CARVALHO, 2021, p. 132). Se a publicação da imagem causar prejuízo à honra, à reputação ou o simples decoro da pessoa fotografada, estamos perante uma violação do direito à imagem. É, contudo, admissível a limitação voluntária ao exercício dos direitos de personalidade, desde que as práticas não sejam contrárias à ordem pública, como estatui o art. 81.º, n.º 1 do CCP.
Estando em causa o direito à imagem de um menor, e embora este seja titular desse direito, o consentimento por ele prestado não pode ser considerado válido. Cabe, portanto, aos pais ou representantes legais prestar o consentimento em seu lugar (MOREIRA, 2020, p. 5).
Tendo em vista a dupla consagração do direito à imagem na CRP e no CCP, pode-se afirmar que é evidente a intenção do legislador de proteger tal direito. Assim sendo, questionamo-nos: é ou não legítimo a partilha da imagem dos filhos na internet pelos progenitores, no âmbito do exercício das responsabilidades parentais.
- O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada
O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada encontra-se consagrado no art. 26.º da CRP. Por se tratar de um direito fundamental, tal proteção é reforçada pelo art. 80.º do CCP. O art. 16.º da Convenção sobre os Direitos das Crianças (doravante, CDC) também prevê o direito à proteção da privacidade da criança.
Ambos os preceitos impõem aos progenitores um dever de non facere. Tal imposição, no âmbito do exercício das responsabilidades parentais, traduz-se na abstenção da divulgação de fotografias dos filhos – especialmente aquelas que os retratam em contextos íntimos da vida privada. Trata-se de uma forma de exposição que pode colocar em causa a imagem e a dignidade da criança. A título exemplificativo, destacam-se imagens que a mostram a fazer birra, a chorar, nua, seminua ou em situações embaraçosas.
Gomes Canotilho e Vital Moreira entendem que o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada traduz-se no “direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada de outrem” (CANOTILHO; VITAL, 2007, p. 467). Os autores recorrem ao conceito de vida privada para delimitar o âmbito normativo desse direito fundamental, definindo-o em três dimensões: “o respeito dos comportamentos; o respeito do anonimato; o respeito da vida em relação” (CANOTILHO; VITAL, 2007, p. 468). Acresce que, embora os infantes sejam juridicamente incapazes, os seus direitos fundamentais – entre eles o direito à reserva da intimidade da vida privada – não podem, em nenhuma circunstância, ser violados.
A este propósito, o primeiro acórdão português que se debruçou sobre a temática da abstenção de partilha da imagem de menores[11] estava relacionado com um caso de regulação das responsabilidades parentais e do cibercrime.
O tribunal da primeira instância, no âmbito da regulação provisória das responsabilidades parentais, decidiu impor aos progenitores o dever de se absterem da divulgação de fotografias ou informações que possibilitassem a identificação da menor nas redes sociais. Em sede de recurso, os pais alegaram a inexistência do uso indevido da internet. Ainda assim, o tribunal ad quem entendeu que, tendo em conta os diplomas legais que consagram a proteção das crianças contra todos os tipos de “perigo sério e real adveniente da divulgação de fotografias e informações de menores nas redes sociais”, é adequada e proporcional a inclusão da cláusula que proíba o fornecimento de informações dos menores na internet. A principal finalidade dessa cláusula é salvaguardar os direitos, interesses e a segurança da criança no ciberespaço.
- A prática de sharenting e o superior interesse da criança
O termo sharenting, proveniente da junção das palavras inglesas share (partilhar) e parenting (parentalidade) é utilizado para designar a prática, por parte dos genitores, de partilhar fotografias, vídeos ou informações sobre os filhos nas redes sociais. Esta prática tem gerado crescente preocupação no âmbito da proteção dos direitos de personalidade dos menores, sobretudo no que respeita ao direito à imagem e à privacidade.
Em situações em que a divulgação ocorre de forma excessiva e repetida – como na partilha constante de fotografias de comemorações mensais, os chamados “mesaniversários” – a doutrina tem se referido ao fenómeno como overshareting (BROSCH, 2016, p. 233). Tal comportamento pode representar uma violação dos direitos fundamentais da criança, sobretudo quando expõe o menor a riscos no ambiente digital ou compromete a sua dignidade e o desenvolvimento psíquico.
A internet permite a obtenção e disseminação de informações sem limitações temporal ou espacial. Em um primeiro momento, a prática da partilha de conteúdos pode não aparentar ser ofensiva; contudo, as consequências decorrentes repercutem diretamente na esfera jurídica das crianças. A título de exemplo, podem ser referidas situações como: a facilidade da prática de atos ilícitos, tais como assédio sexual, pedofilia, cyberbullying, tráfico internacional de crianças, pornografia infantil, entre outros crimes e fenómenos do meio digital (LOPES, 2023, p. 1185-1186). Diante desse cenário, incumbe aos progenitores o dever de acautelar e supervisionar o conteúdo que os filhos consomem ou publicam, com especial atenção às redes sociais, na medida em que exercem a função de guardiões dos direitos das crianças (CARVALHO, 2021, p. 39, 107-108). Tal responsabilidade torna-se ainda mais relevante considerando que a evolução tecnológica acompanha, de forma constante, o quotidiano de adolescentes e de menores que “nascem e crescem absorvidos pelo mundo digital” (CARVALHO, 2021, p. 103 ss). Não há qualquer benefício na exposição da imagem dos filhos nas redes socias. Ainda que tais conteúdos venham, eventualmente, a ser eliminados, a sua completa remoção da internet não é garantida, dado que existe «pegada digital» (CRUZ, 2018, p. 455; CARVALHO, 2021, p. 107).
O princípio do superior interesse da criança deve ser observado por todos os sujeitos envolvidos, sejam os progenitores ou as entidades públicas, nas lides judiciais que envolvam menores[12]. Trata-se de um conceito indeterminado, cuja aplicação implica uma ponderação casuística, pautada nas circunstâncias concretas de cada caso. Assim, nos processos de jurisdição voluntária, incumbe ao julgador decidir com base nos critérios de conveniência e de oportunidade[13].
A CRP não consagra expressamente o princípio do superior interesse da criança. Contudo, é possível extrair esse princípio de diversos diplomas legais, nomeadamente do art. 4.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, do art. 3.º, alínea a) do Regime Jurídico do Processo de Adoção, e do art. 1974.º do CC, os quais impõem um dever legal de obediência do superior interesse da criança em todas as decisões que lhe digam respeito.
No que respeita à partilha da imagem dos filhos nas redes sociais, tal conduta por parte dos genitores pode configurar uma violação aos direitos de personalidade da criança, a saber, punida pela lei. Ainda que o menor possa eventualmente retirar algum benefício da exposição, essa circunstância não legitima, por si só, a sua publicitação. Com efeito, admitir tal prática abriria precedentes perigosos para a continuada exposição da imagem de crianças pelos próprios pais, mesmo quando contrária ao seu superior interesse. Não é admissível a divulgação da imagem de um menor na internet, quando coloque em risco o direito de personalidade do menor e lesar o seu desenvolvimento físico, psíquico e moral, ao abrigo o n.º 3 do art. 79.º do CCP.
Importa, todavia, ressaltar que podem ser admitidas exceções em contextos devidamente fundamentados, como a divulgação da imagem de uma criança desaparecida, a partilha de informações para a sensibilização de doação de material genético ou a angariação de fundos destinados ao tratamento médico indispensáveis à saúde do menor.
Conforme afirma Andreia Carvalho, os direitos de personalidade relacionados com a exposição nas redes sociais não podem, em qualquer situação, ser tratados como exceção (CARVALHO, 2021, p. 132-133). É dever dos genitores agir em conformidade com o princípio do superior interesse da criança, resguardando-lhe o direito de decidir, em momento oportuno e de forma consciente, sobre a forma do exercício dos seus direitos de personalidade no mundo digital.
- Jurisprudência portuguesa relativa ao sharenting
A primeira jurisprudência portuguesa atinente ao sharenting foi com o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25 de junho de 2015, supra mencionado. Por essa razão, a ele remetemos[14].
A problemática da divulgação da imagem dos menores/filhos nas redes sociais tornou-se uma questão séria. Em situações de divórcio, é comum que os genitores tomam a iniciativa de incluir cláusulas relativas à abstenção da publicação das imagem dos filhos nas redes sociais[15].
Num outro caso, o Tribunal da Relação de Coimbra[16], no contexto da fixação da residência da menor, no âmbito das responsabilidades parentais, confirmou a decisão do tribunal da 1.ª instância. Essa decisão baseava-se na divulgação, pela genitora, de uma imagem constrangedora da menor no Facebook.
Em 2019, a propósito da regulação das responsabilidades parentais, a corte portuguesa, Supremo Tribunal da Justiça[17] (doravante, STJ) afirmou a necessidade de mútuo consentimento dos genitores para a divulgação da imagem do menor. importa salientar que tal consentimento não deve, em caso algum, prejudicar os direitos de personalidade da criança, nomeadamente, o direito à imagem e à reserva da vida privada. Com efeito, entende o STJ que essa exigência visa assegurar o respeito pela imagem da menor, tanto no presente como no futuro.
O famoso programa televisivo Supernanny[18] acabou também por chegar às mãos do tribunal. Estava em causa um reality show que exibia episódios da vida familiar de crianças consideradas indisciplinadas. O fim visado pela produtora era auxiliar os pais na educação dos filhos, mediante a instalação de câmaras no interior da residência. A transmissão era acompanhada por uma terapeuta ou psicóloga.
Em Portugal, o programa chegou no início de 2018. Foram transmitidos dois episódios, mas acabou por ser suspenso em razão de uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito de uma ação especial de tutela da personalidade intentada pelo Ministério Público (adiante, MP) contra a estação televisiva.
No caso em tela, o MP argumentou que o programa colocava em causa os direitos da personalidade do menor, nomeadamente o direito à imagem e direito à reserva da vida privada e familiar. No mesmo sentido, posicionou-se a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), a qual considerou existir um elevado risco de violação dos direitos das crianças[19]. Assim. No contexto do tema em estudo, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu condenar a ré a bloquear todos os meios de comunicação dos quais o conteúdo pudesse ser acedido, bem como remover o acesso às imagens e informações dos episódios já transmitidos. Acresce que a participação de menores em qualquer programa carece de prévia comunicação e autorização da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens competente, conforme estabelecido no art. 5.º da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro[20].
Aos pais cabem, no âmbito das responsabilidades parentais, a representação do menor e o suprimento da sua incapacidade. No que diz respeito aos direitos de personalidade, a lei apenas permite a sua limitação desde que não seja contrária à ordem pública, por força do art. 81.º, n.º 1 do CCP. Ora, não é esse o caso em apreço. A transmissão da vida quotidiana dos menores coloca em causa a sua imagem, honra e dignidade, sobretudo quando são expostos em situações constrangedoras. A isto acresce a proibição legal da instrumentalização das crianças[21]. Em outras palavras, verifica-se uma violação do superior interesse da criança por parte dos genitores, ao aceitarem sujeitar os filhos à participação no programa.
- Considerações finais
Quanto à legitimidade da partilha de imagens dos filhos na internet por parte dos genitores, entendemos que tal conduta é ilegítima.
Diante do exposto, conclui-se que os genitores que partilham excessivamente a imagem dos seus filhos na internet, muitas vezes, não consideram que tal ato possa representar um prejuízo ou risco para o menor. No entanto, ficou evidente que esse comportamento viola o direito à imagem e à reserva da intimidade da vida privada da criança.
Os deveres que competem aos pais são definidas por lei; trata-se, portanto, de obrigações de carater obrigatório e irrenunciável. A legislação impõe que o exercício das responsabilidades parentais deve estar subordinado aos interesses dos filhos, sendo certo que os pais não podem dispor livremente desses direitos-deveres. Assim, não lhes é lícito divulgar a imagem dos filhos nas redes sociais, devendo, ao contrário, zelar pelos direitos de personalidade, à luz do princípio do superior interesse.
A sucessiva partilha da imagem e da intimidade da criança configura, como vimos, a prática de sharenting. Entendemos que, mesmo que a partilha ocorra em perfis restritos nas redes sociais, os pais devem abster-se dessa conduta, pois tais imagens podem ser guardadas ou disseminadas, e, ainda que venham a ser eliminadas, não desaparecerão totalmente da internet. Assim, as decisões sobre essa temática devem ser sempre pautadas de modo que prevaleça o superior interesse da criança.
Nesta perspectiva, quando atingir a maioridade, a criança poderá requerer aos genitores a eliminação das suas imagens e que façam tudo quanto ao seu alcance para impedir que terceiros que tenham acesso a essas imagens as publiquem (LARA, 2020, p. 190). Poderá ainda invocar o instituto abuso de direito, consagrado no art. 334.º do CCP.
Outra alternativa seria a dedução de uma ação de responsabilidade civil contra os genitores[22] (n.º 2 do art. 79.º do CCP), o recurso a medidas de proteção (art. 4.º, alínea b) da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo) e o requerimento da privação do exercício das responsabilidades parentais, ao abrigo do art. 1915.º do CCP e do art. 3.º, alínea h) do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
- Referências bibliográficas
BROSCH, Anna. When the child is born into the internet: sharenting as a growing trend among parents on Facebook. The New Educational Review. Polónia, vol. 43, n.º 1, 2016. Disponível em <https://czasopisma.marszalek.com.pl/images/pliki/tner/201601/tner20160119.pdf>. Acesso em: 19 julho 2023.
CANOTILHO, José Joaquim; GOMES, Vital Moreira. Constituição da República Portuguesa: anotada. Vol. 1, 4.ª ed. e revista. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.
CARVALHO, Andreia F. Pereira de. A criança nas redes sociais: tutela da personalidade e responsabilidade parental da divulgação da imagem. Coimbra, Gestlegal, 2021.
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CRUZ, Rossana Martingo. A divulgação da imagem do filho menor nas redes sociais e o superior interesse da criança. Direito e informação na sociedade em rede: atas, Porto, 2016. Disponível em <https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/85587>. Acesso em: 09 abril 2024.
DIAS, Cristina. A criança como sujeito de direitos e o poder de correcção. Julgar, Lisboa, n.º 4, 2008. Disponível em <http://julgar.pt/a-crianca-como-sujeito-de-direitos-e-o-poder-de-correccao/>. Acesso em: 09 abril 2023.
LARA, Estrella Toral. Menores y redes sociales: consentimiento, protección y autonomía. DERECHO PRIVADO Y CONSITUCIÓN, Espanha, 2020. Disponível em https://www.cepc.gob.es/publicaciones/revistas/derecho-privado-y-constitucion/numero-36-enerojunio-2020/menores-y-redes-sociales-consentimiento-proteccion-y-autonomia. Acesso em: 19 julho 2023.
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MOREIRA, Sónia. A responsabilidade dos pais pela violação do direito à imagem dos filhos. ATAS DAS JORNADAS INTERNACIONAIS: IGUALDADE E RESPONSABILIDADE NAS RELAÇÕES FAMILIARES, Braga: Escola de Direito da Universidade do Minho – Centro de Investigação em Justiça e Governação, 2020. Disponível em <https://hdl.handle.net/1822/79272>. Acesso em: 19 julho 2023.
RODRIGUES, Hugo Manuel Leite. Questões de particular importância no exercício das responsabilidades parentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2011.
SOTTOMAYOR, Maria Clara. Regulação do exercício das responsabilidades parentais nos casos de divórcio. 5.ª ed., revista, aumentada e atualizada. Coimbra: Almedina, 2011.
SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995.
Jurisprudência
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de maio de 2019, proc. n.º 336/18.4T8OER.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. Acesso em 12 abril 2023.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de junho de 2019, proc. n.º 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. Acesso em 12 abril 2023.
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de junho de 2017, proc. n.º 34/16.3T8FIG-A.C1, disponível em www.dgsi.pt. Acesso em 12 abril 2023.
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20 de setembro de 2017, proc. n.º 2/16.5 PAMGR.C1, disponível em www.dgsi.pt. Acesso em 08 abril 2023.
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Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de maio de 2016, proc. n.º 12/14.7SHLSB.L1-5. Disponível em www.dgsi.pt. Acesso em 08 abril 2023.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5 de junho de 2007, proferido no proc. n.º 072191. Disponível em www.dgsi.pt. Acesso em 09 abril 2023.
Normativos complementares:
Convenção Europeia sobre o exercício dos Direitos da Criança, de 1996.
Convenção sobre os Direitos da Criança, Resolução 44/25 AG ONU, de 20 de novembro de 1989.
Relatório de Atividades da CNPDPCJ 2018, Lisboa, Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens.
* Advogada no Brasil e em Portugal, Pós Graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Mestre em Direito Judiciário na Universidade do Minho.
** Licenciada em Direito e Mestre em Direito Judiciário na Universidade do Minho.
[1] Junção dos termos ingleses: share (partilhar) e parenting (parentalidade).
[2] Trabalho apresentado, e posteriormente com alguns ajustes, na aula de Direito das Crianças e dos Jovens, no Mestrado em Direito Judiciário, em 2023.
[3] A nomenclatura “Responsabilidade Parental” é utilizada em Portugal. Já no Brasil o termo empregado é “Poder familiar”. Neste artigo será utilizada a nomenclatura responsabilidades parentais
[4] A designação “responsabilidades parentais” surgiu na ordem jurídica portuguesa, em 2008, com a Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, substituindo a nomenclatura “poder paternal” que transmitia a ideia de um representante homem. A este propósito, vide o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5 de junho de 2007, proferido no proc. n.º 0721915, disponível em www.dgsi.pt [09.04.2023]. Todas as restantes jurisprudências abaixo referenciadas, neste trabalho, estão igualmente disponíveis em www.dgsi.pt, seguindo-se entre parêntesis a data de consulta, salvo indicação em sentido contrário.
[5] No mesmo sentido está o art. 1.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, Resolução 44/25 AG ONU, de 20 de novembro de 1989.
[6] Art. 2.º, b) da Convenção Europeia sobre o exercício dos Direitos da Criança, de 1996.
[7] Artigo 1882.º do CCP: “Os pais não podem renunciar às responsabilidades parentais nem a qualquer dos direitos que ele especialmente lhes confere, sem prejuízo do que neste Código se dispõe acerca da adopção.”
[8] Art. 1915.º do CC e art. 3, h) do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
[9] A este propósito, vide o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20 de setembro de 2017, proc. n.º 2/16.5 PAMGR.C1 [08.04.2023].
[10] A este propósito, vide acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de maio de 2016, proc. n.º 12/14.7SHLSB.L1-5 e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de fevereiro de 2016, proc. n.º 2638/12.4TALRA.C1 [08.04.2023]. Sobre a temática em estudo, a título exemplificativo, destacam-se a situação das infantas espanholas e dos príncipes britânicos, em razão dos título que lhe são concedidos, bem como a participação de crianças em atividades de interesse público (como atores, atletas e músicos), cuja publicação de suas imagens não se enquadra, em regra, no elenco da violação ao direito à imagem, excetuadas as situações que lhes causem prejuízos
[11] Vide o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25 de junho de 2015, proc. n.º 789/13.7TMSTB-B.E1 [09.04.2023].
[12] Art. 3.º, n.º 1 da Convenção sobre os Direitos das Crianças. O art. 18.º, n.º 1, 2.ª parte do mesmo diploma reafirma que o superior interesse da criança deve ser a principal preocupação dos progenitores.
[13] Arts. 986.º e 987.º do Código de Processo Civil.
[14] Vide ponto 3.2.
[15] Vide o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de abril de 2017, proc. n.º 94/16.7T8PNH-A.C1 [12.04.2023].
[16] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (alínea kkk) de 6 de junho de 2017, proc. n.º 34/16.3T8FIG-A.C1 [12.04.2023].
[17] Vide a alínea xx) do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de junho de 2019, proc. n.º 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1 [12.04.2023].
[18] A este propósito, consulte o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de maio de 2019, proc. n.º 336/18.4T8OER.L1.S1 [12.04.2023].
[19] Relatório de Atividades da CNPDPCJ 2018, Lisboa, Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, 2019, p. 19, disponível em: https://www.cnpdpcj.gov.pt/documents/10182/15650/relat%C3%B3rio+de+atividades+2018/8a995a34-f582-42ba-95ac-180a03f47f6c [12.04.2024].
[20] Regulamente Matérias do Código do Trabalho – Menores, Trabalhador-Estudante, Formação Profissional, disponível em www.dgsi.pt [22.04.2024].
[21] Vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de maio de 2019, proc. n.º 336/18.4T8OER.L1.S1 [15.04.2024], sumário n.º IV: “A instrumentalização das pessoas e, em particular, das crianças é contrária à ordem pública, pois ofende o valor da dignidade da pessoa humana”. Em outubro de 2019, o MP publicou um documento, “Nota para a Comunicação Social – programa «Supernanny»”, disponível em https://www.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/notacomunic_social-supernanny_ponto-situacao_17-10-2019.pdf [15.04.2024], que vai no mesmo sentido que a decisão judicial.
[22] A este respeito, destacamos, a título exemplificativo, um caso austríaco no qual uma jovem intentou uma ação contra os pais, disponível em https://www.irishtimes.com/news/world/europe/austrian-teen-sues-parents-over-embarras-sing-facebook-photos-1.2791353 [24.04.2023].
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