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Decisões Judiciais Inéditas Viabilizam Adoções por Casais Homossexuais no Brasil
Duas recentes decisões judiciais brasileiras reascenderam as polêmicas (quase todas preconceituosas) sobre a adoção por casais homossexuais, através de caloroso e atual debate no âmbito do Direito da Criança e do Adolescente e do Direito de Família, vislumbrados constitucionalmente.
Quando, em janeiro de 2005, foi publicada a 1ª Edição do meu livro que versa sobre o assunto (talvez, por ter ser considerado o primeiro lançado no mercado, com este tema específico), o que eu sempre via como uma possibilidade concreta (em favor dos melhores interesses de menores totalmente abandonados nos âmbitos mais cruciais da existência) foi e ainda é alardeado como total absurdo doutrinário, uma incoerência das maiores - na posição de muitos que, com toda vênia, revelam inequívoca formação jurídica engessada e distante da realidade fática. Entretanto, a sociedade, com sua evolução complexa, e o caminho que o Poder Judiciário tende a percorrer, inevitavelmente, já apontam para a viabilidade da adoção por um par do mesmo sexo, que apresente estabilidade, ostensibilidade e traços afetivos sólidos, caracterizadores de uma família.
A primeira abertura do Poder Judiciário brasileiro foi vislumbra na cidade de Catanduva-SP, quando um magistrado, Dr. Júlio César Spoladore Domingos, aceitou que dois homens (que já conviviam, há mais de dez anos, em união afetiva estável), entrassem para a fila de espera de pais adotivos em 2004 (sendo que, desde 1998, quando o pedido havia sido negado, ambos tentavam se inserir no referido grupo de espera). Tanto este timoneiro juiz, quanto o representante do Ministério Público, dentre outros fundamentos para a aceitação, orientaram-se pela Resolução nº 01/99, do Conselho Federal de Psicologia que, estabelecendo normas de atuação para os psicólogos em relação à orientação sexual humana, veda qualquer tipo de tratamento discriminatório com relação à homossexualidade, ratificando que esta não se trata de doença, desvio ou distorção e que, por isso, os profissionais da Psicologia não devem colaborar "com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades" (conforme o parágrafo único, do art. 3º, da citada Resolução, de autoria da competente pesquisadora e escritora, professora Dra. Ana Mercês Bahia Bock).
A segunda e marcante abertura judicial se deu na cidade de Bagé-RS, quando o Dr. Marcos Danilo Edon Franco, Juiz da Infância e da Juventude, possibilitou a constituição do vínculo legal de filiação, através da adoção, de duas mulheres para com dois menores. Ambas convivem juntas, em união afetiva sólida, há mais de oito anos, e uma delas já havia conseguido a adoção das duas crianças. A decisão do magistrado revelou extrema sensibilidade e coerência, ao estender, à companheira da mãe adotiva, o vínculo de maternidade para com os menores, pois, além de esses já estarem, de fato, sendo educados e convivendo com ambas, o pedido da outra mãe sócio-afetiva se baseou no claro desejo de compartilhar, juridicamente, com a sua companheira (já, legalmente, mãe adotiva), as mesmas responsabilidades e deveres jurídico-parentais para com os pequenos.
Mesmo com a posição contrária do Ministério Público da comarca em questão, ao vislumbrar, de modo literal, a legislação brasileira (entendendo que a adoção por casal convivente em união estável só poderia ocorrer na união entre homem e mulher), o vanguardista Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, através da sua Sétima Câmara Cível, negou provimento, por unanimidade, à Apelação Cível interposta pelo MP (Proc. nº 70013801592), confirmando a possibilidade de adoção por casal homoafetivo nestes termos: "Reconhecida como entidade familiar, merecedora de proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, tem como decorrência inafastável a possibilidade de que seus componentes possam adotar". O Des. Luis Felipe Brasil Santos, na sua fundamentação, tocou, no âmago da questão, doutrinariamente, controvertida: "Partindo, então, do pressuposto de que o tratamento a ser dado, às uniões entre pessoas do mesmo sexo, que convivem de modo durável (sendo esta convivência pública, contínua e com o objetivo de constituir família), deve ser o mesmo que é atribuído, em nosso ordenamento, às uniões estáveis, resta concluir que é possível reconhecer, em tese, a estas pessoas, o direito de adotarem em conjunto".
Em verdade, estes recentes avanços judiciais, possibilitando a adoção homoafetiva biparental, são o fruto do amadurecimento científico em torno da homossexualidade, da derrocada de preconceitos infundados e de inúmeras decisões judiciais que, em nosso país, já vinham deferindo adoções a uma só pessoa de orientação afetivo-homossexual, mesmo esta não escondendo a sua orientação sexual ou afirmando que convivia com outra pessoa do mesmo sexo no mesmo ambiente afetivo. Constroem-se, progressivamente, neste sentido, as bases jurisprudencial e doutrinária para o Poder Judiciário brasileiro fazer inteira justiça, com relação à realidade hipócrita que ainda tem permeado a maioria dos Juizados da Infância e da Juventude do país: quando um casal homoafetivo preenche os traços modernamente reconhecidos pelos familiaristas como caracterizadores de uma família e deseja adotar, um(a) dos(as) homossexuais tem que escolher qual deles(as) formalizará o pedido de constituição do vínculo definitivo da paternidade/maternidade para com o(s) menor(es), mediante adoção, e os(as) dois(duas), após o deferimento, acabam educando e criando, juntos, o ser humano, que, de fato, já estava inserido em seu lar substituto biparental (e não falsamente monoparental, como muitos magistrados preferem continuar vendo - pois não crêem que duas pessoas, sendo de idêntico sexo biológico, possam se amar e serem felizes na mesma ambiência, a partir de base sólida de convivência afetiva).
Pela primeira vez no constitucionalismo pátrio, a Constituição Federal de 1988 rompeu com a noção familiar atrelada somente ao casamento, elevando a família, qualquer que seja ela, à base da sociedade e, por isto, merecedora de plena e especial proteção do Estado (art.226, "caput", CF/88). Neste sentido, não é o ente estatal, nem o constituinte e nem os parlamentares de posições religiosas fundamentalistas que devem dizer o que é família, mas a complexa dinâmica social, que tem na aproximação (pela afetividade mútua e pelo desejo comum de convivência), a viga-mestra da composição familiar, distinguindo-a das demais interações humanas.Ao lado dos tipos familiares, reconhecidos de modo exemplificativo no citado art. 226 da Lei Maior - § 1º, § 2º (família casamentária), § 3º (união estável) e § 4º (família monoparental, independente da orientação sexual dos pais e dos seus descendentes) - o Poder Judiciário vêm reconhecendo modalidades de família não previstas literalmente (como as uniões homossexuais afetivamente sólidas), mas inclusas na cláusula protetora geral que é o "caput", do referido art. 226. Os parágrafos de tal artigo, em sua inteireza, não devem ser interpretados taxativamente, pois a redação do "caput" é de dispositivo constitucional de inclusão. No já aberto caminho jurisprudencial de reconhecimento de efeitos jurídico-familiares às uniões homoafetivas, parte sensível do Poder Judiciário (como o citado TJ/RS) vem, de modo muito coerente, utilizando-se do recurso integrativo da analogia (art. 4º da LICC), já que, por ora, não há lei federal regulamentadora das conseqüências jurídicas das uniões homoessenciais no Brasil. É deste modo que, no presente, pode-se assistir à constituição do vínculo de filiação adotiva entre um menor e dois homossexuais que, caso se amem verdadeiramente, podem formar, como todas as demais pessoas (declarada ou presumidamente heterossexuais ou bissexuais) um ambiente familiar adequado ao normal desenvolvimento de um ser humano.
Afinal, a orientação afetivo-sexual de uma pessoa, de per si, não determina possíveis desvios comportamentais que a inabilite ao pleno e responsável exercício da paternidade/maternidade. De igual sorte, compor um lócus familiar equilibrado não é atributo somente de casais heterossexuais; e mais competentes, cientifica e tecnicamente para avaliar tais questões - do que o(a) advogado(a), o(a) magistrado(a) da Vara da Infância e da Juventude e o Promotor(a) de tal área - é o(a) psicólogo(a) e o(a) assistente social, que devem elaborar parecer interdisciplinar, opinando sobre a compatibilidade ou incompatibilidade da inserção ou manutenção de um menor em determinada ambiência familiar, o que será de fundamental importância durante e depois do período de convivência prévia, consubstanciado, por exemplo, a partir do deferimento da guarda provisória.
Assim como não é qualquer vinculação heterossexual que revela a segurança afetiva e a estabilidade suficiente para o casal se habilitar e lograr o deferimento do pedido de adoção, não é qualquer união ou namoro homossexual que pode ensejar tal colocação definitiva de menor em seio familiar homoafetivo. A responsabilidade do magistrado é extrema, em todos os processos em torno dos quais pairem os interesses dos menores, pois deverá perscrutar despido de pré-julgamentos (o que é mais desafiador), se a união afetiva dos candidatos à adoção revela ou não solidez, afetividade edificante e equilíbrio. Não permitir que um casal homossexual integre a fila de pretendentes a pais adotivos é flagrante desrespeito aos princípios constitucionais da igualdade e do respeito à dignidade humana. Por outro lado, acolher o pedido formulado na inicial (para, pelo menos, possibilitar o necessário estudo psicossocial, durante o chamado estágio de convivência) não significa que haverá, ao final do processo, o deferimento da adoção.
Além de desaconselhado diferenciar onde o legislador não o faz (como na ampla caracterização de família substituta e de casal, constante no Estatuto da Criança e do Adolescente, que não restringe quanto à orientação sexual), é importante sintonizar a prestação jurisdicional com os avanços sociais, para além dos subjetivismos (dos temores injustificados) ou dos preconceitos, que têm determinado o indeferimento, de plano, das petições iniciais formuladas por pares homossexuais, que desejam oferecer uma segurança jurídica maior aos menores e lhes educarem juntos. Qual a impossibilidade jurídica do pedido? Alguns advogados, magistrados e promotores, ao serem perquiridos neste sentido, não oferecem uma resposta de natureza jurídica. Argumentar sob ótica religiosa ou sob uma moral conservadora, machista ou heterossexista não é postura de operador jurídico comprometido com a salvaguarda dos direitos fundamentais, da dignidade humana e com a ampliação das condições de cidadania. Como a suposta impossibilidade jurídica não se sustenta em uma interpretação do ordenamento, submetida ao crivo princípio lógico constitucional e aos hodiernos avanços sociais e jurisprudenciais (na matéria do Direito para com a homoafetividade), o mais sensato é tirar a venda dos olhos e verificar que esta delicada questão exige uma tomada cautelosa, mas justa e urgente de posição - já que o abandono, a marginalidade e o preconceito, que aplacam as minorias (milhões de menores brasileiros, por exemplo, "desconhecidos" pelo próprio Estado), não alisam, em um país, infelizmente, ainda tão excludente, como o nosso.
Enézio de Deus é advogado, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/BA, sócio do IBDFAM, professor de Cidadania e Direitos Humanos e pós-graduado em Direito Público.
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