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Série adolescência (netflix) e a reativação do tema do abandono digital
Laura Affonso da Costa Levy
Doutoranda em Estudos Políticos e Humanitários pela UFP/PT; Mestre em Bioética pela UMSA/AR; Advogada familiarista; Professora Universitária; Consultora em Bioética e Biodireito.
A minissérie Adolescência (Netflix) estreou em 13 de março de 2025 e recebeu aclamação da crítica por sua direção, roteiro, atmosfera e atuações. Foi o primeiro programa de streaming a alcançar o topo do ranking semanal e chegou ao topo de audiência em mais de 71 países.
Assim como o documentário O Dilema das Redes (Netflix), aborda temáticas de bullying, ciberbullying e abandono digital, reacendendo discussões tão pertinentes e explosivas no mundo infantojuvenil atual.
Há alguns anos atrás já escrevia sobre o abandono digital de menores, as repercussões e responsabilidades. Todavia, com absoluta razão, vêem crescendo as preocupações sobre tais temas, os quais passaram a ganhar mais destaque na medida em que a vida deixa de ter corpo para ter algoritmos.
A consagração dos direitos da criança e adolescente se deu de forma crescente no curso da história e das legislações internacionais, adentrando na esfera nacional brasileira no fluxo desta historicidade e a partir de mudanças sociais e culturais internas, que tem o condão de (re)estruturas a compreensão jurídica e legislativa.
Em 1948, após um período de guerra, majorou-se as discussões acerca dos direitos humanos, o que levou a ONU a publicar dois documentos de suma importância para o desenvolver do direito da criança: a Declaração Universal dos Direitos do homem, em 1948, e a Declaração dos Direitos da Criança, em 1959, que vieram a ser o ponto de partida para a doutrina da proteção integral, reconhecendo às crianças como sujeitos de direitos, carecedoras de proteção e cuidados especiais.
A Declaração dos Direitos da Criança estabeleceu diversos princípios, podendo-se destacar, dentre eles, o princípio da proteção especial para o desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual e o princípio a educação gratuita e compulsória.
Em 1989, a Resolução número 44 da Convenção dos Direitos da Criança trouxe diversas novidades. Era a primeira vez que se adotava a doutrina da proteção integral fundada em três pilares principais: o reconhecimento da condição da criança como sendo pessoa em desenvolvimento, desta forma, carecedor de proteção especial, visando sempre que possível preservar o direito a convivência familiar através de garantias e deveres das nações subscritoras desta convenção para assegurar os direitos insculpidos na mesma com absoluta prioridade.
Assim, prevalece a narrativa da Doutrina da Proteção Integral, a qual destaca a circunstância de toda e qualquer criança ser digna de resguardo especial no ordenamento. Neste discurso, o seu melhor interesse é celebrado como norteador da análise e se irradia para a reinvenção destas personagens no âmbito do direito das famílias.
O Brasil é um país que demonstra preocupação na defesa da proteção integral de crianças e adolescentes, principalmente, desde 1988, quando assumiu o compromisso com a doutrina da proteção integral, junto à Constituição Cidadã.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
O contexto em que as pessoas estão concretamente inseridas é, portanto, primordial para a formulação de um conceito político dos direitos da infância e, consequentemente, de vulnerabilidade. Não significa só afirmar que todas nascem vulneráveis, mas, sim, que todas necessitam de cuidado cotidiano e diário para a sobrevivência digna.
Dentro desta doutrina estabelecida, a criança e o adolescente ganham visibilidade e passam a receber, inclusive da legislação infraconstitucional, reconhecimento de que são merecedores da prioridade absoluta e de proteção integral por serem pessoas que ainda não desenvolveram completamente sua personalidade, estando em processo de formação, no aspecto físico, intelectual, moral, emocional e social.
Assim, por conta de estarem e serem seres em desenvolvimento, merecem a absoluta prioridade de proteção, que deve ser atendida pelo Estado, família e sociedade, devendo ser postos a salvo de toda e qualquer violência – física, emocional, material e afetiva.
Uma postura negligência dos pais com relação à segurança dos filhos no ambiente virtual, ou mesmo a ausência de controle, de fiscalização e de supervisão aos conteúdos que estão sendo acessados, bem como postados pelos filhos pode ser considerado Abandono Digital, capaz de gerar responsabilidades, de mão dupla.
Esta omissão que coloca a criança e o adolescente em uma situação de vulnerabilidade, podendo trazer sérios prejuízos ao seu desenvolvimento, também acarreta responsabilidade dos pais diante do seu dever de cuidado e exercício regular do poder familiar.
A responsabilidade dos pais em educar e orientar os filhos estende-se ao ambiente virtual, devendo haver comprometimento e imposição de limites, evitando-se a superexposição às telas e ao mundo digital. Somado, ainda, à limitação de conteúdos adequados à faixa etária da criança.
Assim, o dever de cuidado inerente ao exercício da autoridade parental vale tanto para o mundo físico, quanto digital, devendo os pais proteger seus filhos, inclusive no ciberespaço.
O alcance da internet, o impacto das redes sociais na vida das crianças e adolescentes, somados à massificação da vida on line, pode gerar efeitos nocivos diante da vulnerabilidade das crianças e adolescentes, com destaque aos crimes contra a dignidade sexual e cyberbullying, afora o vício tecnológico e, em casos mais graves, o suicídio.
Afora as disposições expressas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, a discussão sobre abandono digital passa também pela Lei 12.965/2014, conhecida como o Marco Civil da Internet, que garante responsabilização dos internautas de acordo com suas atividades, nos termos da lei. Ainda, no ano de 2024, a Lei 14.811 instituiu medidas de proteção à criança e adolescente contra a violência em estabelecimentos educacionais e similares, bem como alterou outras legislações, endurecendo as penalidades às intimidações sistemáticas, seja de forma presencial ou virtual (bullying ou ciberbullying). Com o acréscimo do art. 146-A ao CP, restou assim definido:
Bullying - Intimidação Sistemática - “Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais.”
Cyberbullying - Intimidação Sistemática Virtual - “Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real.”
Seguindo pelo mesmo caminho de proteção, no ano de 2025, restou publicada a Lei 15.100 que dispõe sobre a utilização, por estudantes, de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais nos estabelecimentos públicos e privados de ensino de educação básica. Tais normativas vêem ao encontro dos princípios estruturantes do desenvolvimento sadio, seja físico, mental, social ou emocional, que enfatizam os prejuízos causados pelos abusos de telas e universos virtuais – acarretando uma séries de alterações em crianças e adolescentes em graus nunca antes experimentados.
No que toca à responsabilidade, essa tem mão dupla, pois se a criança ou o adolescente cometer ilícito civil, como disseminação, divulgação, comentário, etc, de conteúdo ofensivo a terceiros, os pais responderão pelos atos danosos praticados por esses filhos, conforme art. 932, inciso I, do Código Civil, tendo em vista que são também responsáveis pelos atos praticados pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia.
A ordem, assim, é de vigilância, cuidado e proteção.
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