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Parentalidade e a Era Digital: Abandono Digital, Oversharenting e Feed Zero
A conectividade constante, o excesso de informações rápidas, o acesso aos conteúdos ilimitados, a comunicação ligeira, o compartilhamento das informações, a exposição da vida real, a distração das telas: tudo isto influencia diretamente na criação de filhos e na função parental na atualidade.
A responsabilidade parental está prevista no Código Civil, no artigo 1634. Dentre o rol de deveres, ambos os pais, independente da relação conjugal, devem criar e educar seus filhos:
Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a criação e a educação.
Com isto, os genitores devem fiscalizar o comportamento digital de seus filhos e educá-los também neste ambiente digital, o que nem sempre é simples.
Nesta nova era da sociedade digital, os filhos podem passar por 3 fenômenos: o “oversharenting”, o “feed zero” e o abandono digital. Este último está em voga devido à série “Adolescência” da Netflix.
O abandono digital é delegar às redes sociais, a criação dos filhos. É uma forma de negligenciar a própria prole. São horas assistindo vídeos, rolando feed das redes sociais, conversando nos chats; mas o pensamento dos pais que abandonam é: “Ele está quieto! Assim consigo fazer minhas coisas”. Ironicamente, pais também cometem abandono digital quando permanecem horas completamente conectados na internet e, dessa forma, deixam de prestar atenção ao conteúdo que o filho está acessando. Enquanto isto, como mostra a série, os filhos não interagem, podem estar passando por problemas e consumindo conteúdos totalmente prejudiciais. É dever dos pais: limitar o tempo de uso das telas, filtrar os conteúdos que serão permitidos de acordo com a idade, ter acesso a todos os aplicativos dos filhos e fiscalizar.
“Há um descaso no monitoramento do conteúdo, falta de orientação adequada para usufruir com segurança o recurso digital, desatenção quanto ao uso excessivo, sendo deixados sozinhos por longos períodos. Há também uma clara substituição do convívio familiar por uma vida virtual” (VELASQUEZ apud AZAMBUJA; KLUNCK, 2019, p. 14)
Ou seja, não é apenas a falta de segurança e fiscalização que colocam os filhos em risco. Mas também há um prejuízo enorme ao convívio familiar, ambiente base para desenvolvimento do ser humano. A relação diária entre pais e filhos é essencial para sua formação psíquica, emocional, física e espiritual. São nestes momentos em que os filhos aprendem os valores e princípios da família, recebem informações seguras, podem se expressar, falar de angústias e receios, se abrir em um ambiente seguro. Há amor verdadeiro e carinho, e não relações superficiais em busca de “likes”. A parentalidade exige presença, apoio, educação e amor. Não pode ser delegada ao dispositivo eletrônico.
A era digital trouxe o mundo dos influenciadores digitais. A consequência foi a exposição excessiva de seus filhos, em alguns casos. Em outras situações, os pais são desconhecidos, mas exploram a imagem dos filhos na internet. Tamanha exposição viola o direito constitucional à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem, algumas vezes, até à dignidade da pessoa humana (artigo quinto da CF). Isto é o que chamamos de oversharenting (excesso de exposição).
O termo sharenting é definido por Chiara de Teffé como o constante compartilhamento online de informações de crianças e adolescentes por parte de seus pais ou responsáveis, o que a autora denomina de uma superexposição na internet (2021).
A prática de "sharenting" envolve pais ou responsáveis compartilhando nas redes sociais: informações, fotos e dados sobre os filhos que estão sob sua tutela. Esse comportamento é impulsionado pela maneira como as redes sociais alteraram as formas de comunicação e pela vontade dos pais de contar suas próprias histórias de vida, nas quais os filhos desempenham um papel central. O compartilhamento é frequentemente justificado como um "legítimo interesse" dos pais, que conectam suas rotinas pessoais às dos filhos, tornando-os parte essencial de sua vivência, como no caso da influenciadora Vírginia. Ao divulgar esses momentos, os pais podem trocar soluções e experiências com outros que enfrentam desafios parentais semelhantes. Esta prática está diretamente relacionada à liberdade de expressão dos pais.
Quando os pais mostram a vida dos filhos na internet, eles contam uma história que não é a real. Como você se sentiria se ao crescer visse sua vida contada por uma perspectiva alheia? Nesse contexto, é perfeitamente possível (senão provável) que o critério sobre privacidade que os pais possuam seja diferente daquele que a criança vai desenvolver na vida adulta. Em outras palavras, a criança pode desaprovar a conduta dos seus pais e entender que teve sua vida privada exposta indevidamente durante a infância.
A exposição pública de informações sobre a rotina, o comportamento e a localização de uma criança podem colocá-la em risco, tornando-a vulnerável a situações de exploração ou assédio. Isso se deve ao fato de que a internet, uma vez publicada uma imagem ou dado, torna-se um espaço de difícil controle, o que pode facilitar o acesso de terceiros mal-intencionados a essas informações. Tal prática, portanto, configura um risco à segurança da criança, que se encontra vulnerável diante de um cenário onde não tem poder de decisão sobre o que é divulgado.
Outro ponto relevante do “oversharenting” é a questão do impacto psicológico gerado por essa exposição constante. A criança pode vir a se sentir pressionada, desconfortável, ansiosa ou até mesmo afetada em sua autoestima à medida que cresce e se dá conta da extensão da exposição pública de sua vida privada. Esse impacto emocional pode se refletir em questões de identidade e autoestima, prejudicando seu desenvolvimento saudável. Ademais, ao se tornar adulta, a criança pode sentir-se lesada pela falta de controle sobre a narrativa da própria história, o que pode gerar conflitos com os pais, conforme já mencionado.
Por fim, destaca-se o risco relacionado ao futuro digital da criança. O conteúdo compartilhado nas redes sociais pode permanecer acessível indefinidamente, mesmo após sua exclusão. O chamado “rastro digital" pode afetar a reputação da criança na vida adulta, interferindo na sua imagem pessoal e profissional, além de possibilitar o uso indevido das informações compartilhadas por terceiros. Diante disso, é essencial que os pais se atentem às implicações jurídicas e sociais do "oversharenting", para garantir a proteção dos direitos da criança e a preservação de sua privacidade e segurança em um ambiente digital cada vez mais complexo.
Na contramão da superexposição, ainda há outro fenômeno presente entre os adolescentes, que é o “feed zero”. A decisão de adolescentes de manter um feed sem fotos nas redes sociais também está frequentemente relacionada ao medo de julgamento. Durante a adolescência, a construção da identidade pessoal é um processo delicado, e muitos jovens sentem-se extremamente vulneráveis à avaliação externa, especialmente nas redes sociais, onde a exposição é imediata e global. O medo de ser criticado ou julgado por sua aparência, comportamento ou escolhas é uma preocupação constante, uma vez que as plataformas digitais têm o poder de amplificar a visibilidade de qualquer ação ou imagem.
Essa pressão para atender a padrões estéticos ou comportamentais impostos pela sociedade pode ser intensa, resultando em insegurança. Muitos adolescentes optam por evitar o compartilhamento de fotos como uma forma de se proteger desse escrutínio público. Ao não se expor, eles evitam a possibilidade de críticas relacionadas à sua aparência, comportamento ou vida pessoal, o que pode ter impactos emocionais e psicológicos significativos.
Além disso, o medo do julgamento digital pode ser exacerbado pelo fenômeno do "cyberbullying", onde comentários negativos, exclusões ou humilhações públicas podem ocorrer rapidamente nas redes sociais. Essa dinâmica pode criar um ambiente hostil, no qual o adolescente prefere se abster de se expor para preservar seu bem-estar emocional e psicológico. Assim, manter um feed sem fotos se torna uma estratégia para minimizar o risco de ser alvo de críticas ou ataques, oferecendo uma sensação de controle sobre sua imagem e evitando a vulnerabilidade à opinião alheia.
Por fim, há outras duas observações importantes sobre o “feed zero”: adolescentes se tornando meros observadores do que acontece no mundo digital, não dando pistas sobre o que pensam, o que causa preocupação aos pais. Além disto, mostra uma geração imediatista, que só posta conteúdos de 24 horas sem solidez de posicionamento.
Diante dos fenômenos do abandono digital, oversharenting e feed zero, é fundamental que os pais exerçam plenamente sua função parental, zelando pela fiscalização e proteção dos dados pessoais, da vida privada e da intimidade dos filhos, garantindo a preservação de sua honra e dignidade, bem como sua segurança contra pessoas mal-intencionadas, protegendo sua saúde mental e emocional do julgamento excessivo das redes.
Ana Paula Gimenez
Advogada Familiarista
Psicanalista em Formação
Diretora da Revista Especializada de Direito Civil IJ Editores
Diretora da Associação Iberoamericana de Direito Privado
Autora de capítulo de livros e artigos jurídicos
Autora dos livros “Divorciei, e Agora?” e “Eu achava que era amor”
Bibliografia
Constituição Federal
Código Civil
TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Proteção de crianças e adolescentes na rede. Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS-RIO). Instituto Alana. 2021.
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de; KLUNCK, Patrícia. O abandono digital de crianças e adolescentes e suas implicações jurídicas. 2019. Disponível em: < https://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2020/04/patricia_klunck.pdf>. Acesso em: agosto de 2021.
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