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Curatela: um mecanismo de proteção à dignidade e autonomia da pessoa com incapacidade
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar o instituto jurídico da curatela, destacando sua aplicação, fundamentos legais e implicações na vida da pessoa com deficiência ou com incapacidade civil. Com base no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), no Código Civil e na jurisprudência nacional, busca-se compreender o equilíbrio necessário entre proteção e autonomia da pessoa curatelada. O estudo adota metodologia de revisão bibliográfica, aliando aspectos jurídicos e sociais, a fim de evidenciar os desafios práticos e éticos que envolvem o exercício da curatela.
Palavras-chave: Curatela. Interdição. Pessoa com deficiência. Estatuto da Pessoa com Deficiência. Dignidade. Autonomia. Proteção jurídica.
1. INTRODUÇÃO
O envelhecimento populacional e o aumento da expectativa de vida trouxeram à tona uma crescente demanda por mecanismos legais que garantam a proteção da pessoa com incapacidade civil. Dentre esses mecanismos, destaca-se a curatela, instituto previsto no Código Civil e reformado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), que trouxe uma nova abordagem sobre o exercício da capacidade civil.
Historicamente, a curatela foi concebida como um instrumento de substituição total da vontade da pessoa considerada incapaz. No entanto, com a evolução dos direitos humanos e a valorização da dignidade da pessoa humana, a legislação passou a estabelecer limites mais rígidos à sua imposição, privilegiando a autonomia e a inclusão social.
2. CONCEITO E FINALIDADE DA CURATELA
De acordo com o artigo 1.767 do Código Civil, estão sujeitos à curatela:
"I - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxicos;
III - os deficientes mentais, os excepcionais sem completo desenvolvimento mental;
IV - os pródigos." (BRASIL, 2002)
Com o advento da Lei nº 13.146/2015, esse rol foi reinterpretado à luz dos princípios da dignidade e da não discriminação. O artigo 84 do referido Estatuto estabelece que a curatela deve ser "proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durar o menor tempo possível".
O objetivo da curatela é proteger o indivíduo que, por motivo de deficiência ou enfermidade, não consegue exercer plenamente sua capacidade civil, garantindo-lhe o suporte necessário para a tomada de decisões com segurança.
3. CURATELA E INTERDIÇÃO: DISTINÇÕES CONCEITUAIS
Embora os termos "interdição" e "curatela" sejam frequentemente utilizados de forma intercambiável, há distinções técnicas importantes. A interdição é o processo judicial que reconhece a incapacidade civil de uma pessoa; a curatela, por sua vez, é o efeito jurídico desse reconhecimento, com a nomeação de um curador que atuará nos limites fixados pelo juízo.
A curatela, atualmente, não se confunde com a supressão total da vontade da pessoa protegida. Conforme ensina Maria Berenice Dias (2021), "a curatela deve ser encarada como medida excepcional, subsidiária e proporcional, respeitando-se a autodeterminação da pessoa com deficiência sempre que possível".
4. O PROCEDIMENTO JUDICIAL DE INTERDIÇÃO E NOMEAÇÃO DE CURADOR
O procedimento judicial de interdição é regulado pelos artigos 747 a 758 do Código de Processo Civil. Pode ser iniciado por familiares ou pelo Ministério Público, exigindo-se prova da incapacidade (por meio de laudos médicos e perícias). O curador nomeado deve agir com zelo e transparência, sob fiscalização judicial. É possível também a curatela provisória, nomeada liminarmente em caráter urgente, nos termos do artigo 755 do CPC.
5. A CURATELA SOB A PERSPECTIVA DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
O artigo 6º da Lei nº 13.146/2015 estabelece que "a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa". Assim, a curatela somente pode alcançar atos de natureza patrimonial e negocial, excluindo-se, por exemplo, decisões existenciais, afetivas ou reprodutivas, que permanecem de competência da própria pessoa com deficiência.
Segundo Rodrigo da Cunha Pereira (2020), "o novo paradigma da curatela é baseado no apoio e não mais na substituição da vontade, o que reforça a centralidade da dignidade e da autonomia nas relações civis".
6. RISCOS, ABUSOS E A NECESSIDADE DE FISCALIZAÇÃO: ESTUDOS DE CASO
Apesar de sua natureza protetiva, a curatela pode ser utilizada de forma abusiva, resultando na violação de direitos fundamentais da pessoa curatelada, especialmente em contextos de vulnerabilidade.
Em um caso concreto em que atuei como advogada da parte requerente, um idoso diagnosticado com Alzheimer teve suas visitas proibidas pelo próprio curador. Um amigo com quem mantinha vínculo afetivo há mais de vinte anos foi impedido de visitá-lo, sob o argumento de que ele não teria mais discernimento para interações sociais. Foi necessário o ingresso de ação de regulamentação de visitas, com manifestação favorável do Ministério Público. O Judiciário, reconhecendo a importância dos laços afetivos para a saúde emocional do idoso, garantiu o direito a visitas semanais, reafirmando que a curatela não pode ser instrumento de isolamento.
Outro caso emblemático que atuei tratava da substituição do curador. A idosa, embora interditada, expressava com clareza sua vontade de residir com um dos filhos, com quem possuía vínculo afetivo mais próximo. O curador formalmente nomeado impedia esse convívio. Após a devida instrução processual, a Justiça acatou os argumentos jurídicos apresentados, considerando a manifestação de vontade da idosa como expressão legítima de sua autonomia, determinando a substituição da curatela, permitindo que ela vivesse em ambiente onde se sentia acolhida e segura.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A curatela, quando bem aplicada, é um instrumento de proteção essencial, especialmente em uma sociedade que envelhece. No entanto, deve ser medida proporcional, temporária e, sobretudo, respeitosa à dignidade da pessoa humana.
É imprescindível que o Judiciário observe o princípio do melhor interesse da pessoa protegida, promovendo sua inclusão e respeitando sua vontade sempre que possível. A curatela não pode servir como instrumento de silenciamento, mas de cuidado e apoio.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
CURATELA: UM MECANISMO DE PROTEÇÃO À DIGNIDADE E AUTONOMIA DA PESSOA COM INCAPACIDADE
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Estatuto da Pessoa com Deficiência.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2021.
CASTRO, Melyne Cassimiro. Curatela e Interdição: Proteção e Defesa dos Direitos do Idoso, 2025.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família e Dignidade Humana. Belo Horizonte: Del Rey, 2020.
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