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O REsp. 2189143-SP reforça cabimento do divórcio unilateral
Jones Figueirêdo Alves
01. Em certa medida, o Recurso Especial n. 2189143-SP, julgado terça-feira última pela 3ª Turma do STJ - publicado anteontem - (01), reforça o cabimento do divórcio direto e unilateral em cartório, que o Provimento n. 06/2019-CGJ/PE, de nossa autoria, estabeleceu em procedimento de averbação do Divórcio Unilateral (Impositivo) no âmbito do Cartório de Registro Civil (02) e cuja ideia prospera, triunfante, no art. 1.582-A do PLS n. 04/2025, que atualiza o Código Civil (03). Eis um novo paradigma jurisprudencial.
Tal como consignado pela relatora ministra Nancy Andrigui no referido julgamento:
“(i) após a Emenda Constitucional 66/2010 o divórcio é compreendido como direito potestativo;
(ii) a decretação do divórcio independe de contraditório, pois se trata de direito do cônjuge que o pleiteia, bastando que o outro sujeite-se a tanto;
(iii) basta a apresentação de certidão de casamento atualizada e a manifestação de vontade da parte para que se comprove o vínculo conjugal e a vontade de desfazê-lo; e
(iv) a decisão que decreta o divórcio é definitiva, não podendo ser alterada em sentença; verifica-se possível a decretação do divórcio liminar, mediante o emprego da técnica do julgamento parcial antecipado de mérito, nos termos dos arts. 355 e 356 do Código de Processo Civil”.
De fato. É consabido que o divórcio, com a Emenda Constitucional n. 66/2010, passou a integrar a categoria jurídica de direito potestativo extintivo, aduzindo a relatora que “o direito ao divórcio é potestativo pois é exercido mediante a manifestação da vontade de um dos consortes, de modo que, ao outro, cabe sujeitar-se a tanto”.
O REsp. n. 2189143 pontuou sobre a incidência do direito potestativo ao divórcio, com a doutrina de Fernando Noronha, segundo a qual potestativos são “os direitos que permitem a uma pessoa, por simples manifestação unilateral de sua vontade (isto é, sem a necessidade de concurso de qualquer outra pessoa), modificar ou extinguir uma relação jurídica preexistente, que é de seu interesse.” (04)
Em ser assim, o julgado admitiu, de consequência, que “reforçando a necessidade de decretação de divórcio em julgamento antecipado parcial de mérito – não se pode admitir que a decretação do divórcio aguarde a localização do réu e sua manifestação, mormente após a Emenda Constitucional 66/2010 e a proclamação da tese de repercussão geral fixada para o Tema 1.053 pelo STF.”
Situa-se no mencionado REsp. n. 2189143-SP, a mais avançada decisão judicial do Superior Tribunal de Justiça para a urgente efetividade da Emenda Constitucional n. 66/2010, tal como proclamou, anteriormente, nosso Provimento n. 06/2019-CGJ/PE. Suas diretivas proativas assentam-se na mais perfeita e judiciosa avaliação da EC 66/2010, por cujo viés constitucional criam-se elos, sem pendor por ambiguidades, para a própria atividade administrativa registral por iniciativa de quaisquer dos cônjuges.
A notável e importante decisão, a nosso sentir, para além de contribuir com o divórcio acessível e imediato, deixa-se inteiramente, dentro do próprio implemento histórico do Provimento n. 06/2019-CGJ/PE, consoante suas linhas mestras. Vejamos:
(i) O divórcio liminar será decretado a partir da manifestação da vontade de um dos consortes, sendo o outro comunicado dessa decisão (...) (Item 49 do REsp. 2189143-SP, consoante com o art. 2º do Provimento n. 06/2019-CGJ/PE) (05)
(ii) Decretado o divórcio mediante decisão que antecipa o julgamento do mérito em caráter liminar, os demais consectários de sua decretação (eventual partilha de bens e regulamentação de guarda, convivência e fixação de alimentos aos filhos e aos cônjuges) deverão seguir o processo de conhecimento, com elucidação probatória necessária. (Item 50 do REsp. 2189143-SP, consoante com o art. 4º do Provimento n. 06/2019-CGJ/PE). (06)
A decisão do STJ é impecável e conforta-se em três premissas de base:
(i) a proteção à liberdade individual, garantindo que ninguém seja obrigado a permanecer casado contra sua vontade, e a não se sujeitar a situações mais burocráticas à sua pretensão de divórcio; (ii) assegura o princípio da autonomia da vontade, com imediatidade; (iii) a impossibilidade de oposição, porquanto o outro cônjuge não pode se opor ao pedido de divórcio.
O REsp. 2189143-SP reportou-se ao art. 356 do CPC autorizando que o juiz decida parcialmente o mérito quando um ou mais pedidos formulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso ou estiver em condições de imediato julgamento. Ponderou a relatora que “a decisão que julga parcela de mérito, em verdade, não antecipa o julgamento: ele ocorre no momento em que deve ocorrer”. É o caso.
O julgado aplicou a mais avançada doutrina processual, quando Marinoni, Arenhart e Mitidiero sustentam que “a terminologia mais adequada seria “julgamento imediato do mérito”, uma vez que, se o processo se encontra maduro para julgamento, “toda e qualquer dilação posterior a esse momento é indevida, o julgamento ocorre no momento em que tem de ocorrer: em seu momento apropriado.” (07)
02. Desde antes e, designadamente, a partir da Lei nº 6.515, de 26.12.1977 (08) que resultou da Emenda Constitucional nº 09, de 28.06.1977, doutrina e jurisprudência subscrevem capítulos substanciais para a história institucional do divórcio.
De pronto, tem-se as obras de Nelson Carneiro, “Divórcio e Anulação de Casamento (Forense, 1951) e “A Luta pelo Divórcio” (Livraria São José, 1973). Os seus projetos de lei são o nascedouro do instituto (09).
Importa assinalar a obra “Jurisprudência como Memória Coletiva”, de Janaina Galani Cruz Tomasevicius, quando tratou dos antecedentes da Lei do Divórcio no Brasil (1962-1977), analisando a sociedade da época, sob o modelo patriarcal, “estruturado na desigualdade entre os cônjuges e permeado de valores religiosos”. Ela desenvolveu primoroso estudo da jurisprudência dos tribunais nas décadas de 1960 e 1970, destacando os problemas advindos da proibição do divórcio no Brasil” (10).
Com a edição da EC 66/2010, surgiu a obra doutrinária de referência, “Divórcio Já”, da jurista Maria Berenice Dias, oferecendo valiosos comentários sobre a Emenda Constitucional. Um deles, a necessidade de o CNJ proceder a adequação da sua Resolução n. 35, de 24.04.2007, à nova sistemática, diante da norma constitucional editada.
Em sede de artigos sobre a EC 66/2010, apontam-se os de Rodrigo da Cunha Pereira e de Paula Maria Tecles Lara, disponíveis no site do IBDFAM.
Paula Lara pontifica no dizer que “a Lei Maior de 1988 aboliu o caráter patrimonialista da separação, importando-se muito mais com a dignidade da pessoa dos cônjuges, ao possibilitar, inclusive, o divórcio direto, respeitando-se o princípio da autodeterminação e da deterioração factual”.
Mais adiante, outro capítulo significativo surge com a doutrina da jurista Marília Pedroso Xavier, ao tratar, com verticalidade, sobre o divórcio liminar. A sua obra “Divórcio liminar: técnica processual adequada para sua decretação”, de 2022, tornou-se um clássico. Afirmou, então: “o custo do tempo na demora para a decretação do divórcio é solo fértil para a prática de inúmeros atos de vingança pelo consorte inconformado com o rompimento do relacionamento”. (Item 33 do REsp. n. 2189143-SP).
Serve de paradigma do divórcio liminar, a decisão judicial da juíza Karen Francis Schubert, da 3ª Vara da Família de Joinville/SC que deferiu tutela antecipada, expressando:
"(...) o divórcio passou a ser caracterizado como um direito potestativo incondicionado, fundamentado em norma constitucional, e, para sua decretação, não se exige a apresentação de qualquer prova ou condição, portanto dispensável a formação do contraditório."
Em sede dos tribunais, um dos acórdãos paradigmas ganhou sua maior densidade, na relatoria da des. Rosana Amara Girardi Fachin, face sua devida precisão, acuidade e extensão, a saber: “(...) em que pese a pretensão se paute na tutela de evidência, incidem, no caso, os artigos 355 e 356 do Código de Processo Civil, autorizando-se o julgamento antecipado do mérito, dada a ausência de controvérsia jurídica sobre o direito ao divórcio. Recurso conhecido e provido. (TJPR - 12ª Câmara Cível - 0041434- 50.2020.8.16.0000 - j. em 24.09.2020).
03. No atinente ao divórcio unilateral (impositivo), cumpre referir a obra pioneira, “Divórcio impositivo: da autonomia privada à dignidade humana”, de Sarah Saad, de 2023, defendendo o novo instituto (11). Ela afirmou, com acerto: “O divórcio impositivo simboliza nitidamente a passagem de um direito de família patrimonialista para um direito civil conduzido pela dignidade da pessoa humana”.
Anteriormente, importantes artigos e monografias jurídicas trataram acerca do Provimento n. 06/2019-CGJ-TJPE, sua ideia precursora e a necessidade do divórcio unilateral como direito potestativo. Por todos, o artigo pioneiro, “Impedir a declaração unilateral de divórcio é negar a natureza das coisas”, dos juristas Mário Luiz Delgado e José Fernando Simão, veiculado pelo CONJUR em 19.05.2019 (12).
Anote-se, logo adiante, a posição doutrinária favorável do jurista Flávio Tartuce, em artigo de 26.06.2019 (13), quando em apoio ao novel instituto propôs ao senador Rodrigo Pacheco projeto legislativo a respeito. (14). O PL acrescenta o artigo 733-A ao Código de Processo Civil permitindo que um dos cônjuges requeira a averbação de divórcio no cartório de registro civil mesmo que o outro cônjuge não concorde com a separação.
Outros importantes estudos trataram do tema, citando-se: “Implicações do Divórcio Impositivo”, de Helena Ayub e Anelise Crippa; “O direito potestativo no divórcio impositivo por parte da mulher”, de Lucilene Oliveira dos Santos Guedes; “Normatização do Divórcio Impositivo”, de Tainara Alves Cardoso; “Divórcio Impositivo no ordenamento jurídico brasileiro: uma análise sobre a sua admissibilidade após a Emenda Constitucional 66/2010”, de Taline Ferreira dos Santos; “Análise da possibilidade jurídica do divórcio impositivo e seus aspectos práticos”, de Gabriela Amaro Gomes; “Divórcio Impositivo: uma nova modalidade possível à luz da autonomia privada”, de Ana Júlia de Campos Velho Reschke e Luiza Tramontini Benites; e “Divórcio Impositivo”, de Thiago Dutra Andrade (UFRJ, 2021); Divórcio Unilateral”, de Matheus Brito Almeida (FAJS/UniCEUB).
A revelação de um novo instituto jurídico, com sua origem administrativa por provimento, colocou-se como um símbolo de tendencias jurídicas que envolvem e exigem a permanente atualização do direito.
Efetivamente, “o divórcio impositivo teve inspiração, no mundo dinâmico da vida. O intérprete do direito acompanhou esse movimento a fim de que o mundo jurídico se encontrasse sempre em consonância com a realidade social” (Sarah Saad, 2023)
Assim, História e Memória prontificam-se juntas para a melhor compreensão de um novo instituto do direito de família, o do divórcio unilateral, que agora o REsp. 2189143-SP, da relatora min. Nancy Andrighi, vem categorizar com elevada sensibilidade, técnica e justiça.
Oxalá o CNJ, atento na defesa da cidadania, a exemplo da 3ª Semana Nacional do Registro Civil do Poder Judiciário – “Registre-se!” (Provimento n. 140/2023), entre 12 a 16 de maio próximo, no propósito de erradicar o sub-registro civil de nascimento no país; igualmente viabilize, organize e promova uma “Semana Nacional do Divórcio Unilateral”.
Tutelará existencialmente, decerto, as pessoas infelicitadas pelo casamento à sua autodeterminação de dignidade pessoal.
Referências:
- https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=302505177®istro_numero=202403554197&peticao_numero=&publicacao_data=20250321&formato=PDF
- Provimento n. 06/2019-CGJ-TJPE. Web: https://portal.tjpe.jus.br/documents/29010/2103503/PROVIMENTO+N%c2%ba+06-2019-CGJ+ORIGINAL.pdf/80b8a35e-9a57-90c0-c536-9b72037741b2
- Projeto de Lei do Senado n. 04/2025. Dispõe sobre a atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e da legislação correlata. Art. 1.582-A. O cônjuge ou o convivente, poderão requerer unilateralmente o divórcio ou a dissolução da união estável no Cartório do Registro Civil em que está lançado o assento do casamento ou onde foi registrada a união, nos termos do § 1º do art. 9º deste Código. Web: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9889356&ts=1742333124214&disposition=inline
- NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 76/77. Sobre o direito potestativo conferir a obra referência “Direito Potestativo”, de Flávio Pimentel de Lemos Filho – Ed. Lumen Juris, 1999.
- Provimento n. 06/2019-CGJ-TJPE. Art. 2º. O requerimento independe da presença ou da anuência do outro cônjuge, cabendo-lhe unicamente ser notificado, para fins de prévio conhecimento da averbação pretendida, vindo o Oficial do Registro, após efetivada a notificação pessoal, proceder, em cinco dias, com a devida averbação do divórcio impositivo.
- Provimento n. 06/2019-CGJ-TJPE. Art. 4º. Qualquer questão relevante de direito a se decidir, no atinente a tutelas específicas, alimentos, arrolamento e partilha de bens, medidas protetivas e de outros exercícios de direito, deverá ser tratada em juízo competente, com a situação jurídica das partes já estabilizada e reconhecida como pessoas divorciadas.
- MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil, volume 2: tutela dos direitos mediante procedimento comum. 9 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 220.
- Lei n. 6.015. Web: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6515.htm
- FAGUNDES, Marluce Dias. O “defensor das causas das mulheres”: os projetos de Lei do Divórcio, de Nelson Carneiro (1951-1977). Web: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/42876
- TOMASEVICIUS, Janaina Galani Cruz. Jurisprudência como Memória Coletiva...Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2019, 121 p.
- SAAD, Sarah. Divórcio Impositivo....Belo Horizonte: Ed. D´Plácido, 2023, Web: https://www.editoradplacido.com.br/cdn/imagens/files/manuais/_divorcio-impositivoda-autonomia-privada-a-dignidade-humana.pdf
- DELGADO, Mário e SIMÃO, José Fernando. Consultor Jurídico. Web: https://www.conjur.com.br/2019-mai-19/processo-familiar-barrar-declaracao-unilateral-divorcio-negar-natureza-coisas/
- TARTUCE, Flávio. O Divórcio Unilateral ou Impositivo. 26.06.2019. Web: https://professorflaviotartuce.blogspot.com/2019/06/
- PLS nº 3.457/2019. Web: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137242
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Jones Figueirêdo Alves é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Advogado, Consultor e parecerista.
Fonte: Consultor Jurídico (Conjur), em 23.03.2025.
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