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A sucessão de Gene Hackman e Betsy Arakawa e sua hipotética subsunção ao Direito brasileiro
Cristian Fetter Mold – Advogado, Professor de Direito de Família e Sucessões, membro do IBDFAM
Cinéfilos de todo o mundo foram afetados, em fins de fevereiro deste ano, pela trágica notícia das mortes do premiado ator Gene Hackman e sua esposa, a pianista clássica e empresária Betsy Arakawa, dando fim a uma união de mais de 30 anos.
Os detalhes dos falecimentos levantaram questões importantes sobre isolamento social, cuidados na terceira idade, afastamento entre pais e filhos, preservação da imagem dos falecidos, dentre outras.
Porém, o presente artigo tem por objetivo expor as nuances jurídicas primárias do caso no campo do Direito de Família e Sucessões, já que o casal não possuía um acordo pré-nupcial e ambos deixaram testamentos; além de ser interessante observar aspectos da legislação do estado em que residiam (Novo México, localizado entre Texas e Arkansas) sobretudo acerca da comoriência e o destino da herança quando tal fenômeno ocorre.
Por fim, em um exercício de “subsunção hipotética”, com fins puramente acadêmicos, imaginaremos que o caso ocorresse no Brasil, o que certamente levaria a soluções muito distintas.
Logicamente que o intento deste pequeno texto não é “julgar o caso” ou dar sobre ele “as palavras finais”, tendo o autor a consciência da importância de um constante repensar sobre as conclusões a que chegará neste momento, estando sempre aberto a debates sobre os temas aqui propostos.
Apenas para contextualizar, segundo informações obtidas nos sites findlaw.com; hola.com e usatoday.com, Gene deixou uma fortuna estimada em 80 milhões de dólares e três filhos, de seu primeiro casamento, os quais não possuíam boas relações com o pai.
Ele e Betsy se casaram em 1991, ela não tinha filhos e eles não tiveram filhos juntos. Não foi feito um pacto pré-nupcial, por exemplo, determinando um regime de separação de bens, ficando ambos sujeitos a receberem herança um do outro. Pela diferença de idade (Gene tinha 61 e ela 32), ilação do autor deste artigo, talvez imaginassem que ele faleceria primeiro. Inclusive, em seu testamento, atualizado pela última vez em 2005, Hackman deixou Betsy como sua única beneficiária.
Ocorre que Betsy também deixou um testamento com uma cláusula determinando que se ela e Hackman falecessem com 90 dias de diferença, suas mortes deveriam ser consideradas simultâneas e o patrimônio dela seria endereçado para caridade.
O problema é que as investigações já constataram que Betsy faleceu primeiro e que Gene morreu cerca de uma semana depois. Como não houve um acordo pré-nupcial de separação de bens, o patrimônio da esposa poderia incluir uma parte significativa dos bens de Hackman, mas o ator seria herdeiro da esposa por ter morrido posteriormente e, evidentemente, seu testamento não teria aplicação por ela ter morrido antes. Segundo alguns especialistas, este cenário poderia levar a um “cabo de guerra” entre as intenções de caridade delineadas no testamento de Arakawa e os direitos de herança dos filhos de Hackman.
Neste ponto, reputamos interessante também mencionar que, segundo as leis do estado do Novo México, se Hackman tivesse morrido primeiro, seus bens provavelmente iriam para a esposa, com o potencial de deixar seus filhos de fora, cumprindo-se suas disposições de última vontade.
Ainda, se eles morressem ab intestato, aplicar-se-iam as leis estaduais de herança e Betsy receberia metade da propriedade comum (os aquestos) e um quarto dos bens particulares de Hackman, com seus filhos herdando o restante deste acervo particular.
Bom lembrar também que vigora no Novo México a chamada “Lei da Morte Simultânea” (Simultaneous Death Act) legislação adotada em muitos estados que determina como distribuir uma propriedade quando duas pessoas morrem ao mesmo tempo ou com um curto espaço de tempo uma da outra.
De acordo com a lei do Novo México, se duas pessoas morrem com intervalo de 120 horas uma da outra, presume-se que morreram ao mesmo tempo (comoriência) e é comum os testamentos incluírem uma cláusula de morte simultânea padronizada, refletindo o estatuto estadual. Dessa forma, os bens de cada um dos cônjuges iriam para seus beneficiários, mas não para o outro cônjuge. Isto é, os bens de Hackman iriam para seus beneficiários, mas não para sua esposa. Os bens de Arakawa iriam para seus beneficiários, mas não para seu marido.
Ocorre que, conforme já mencionado, em seu testamento Betsy deixou uma cláusula determinando que se ela e Hackman falecessem com 90 dias de diferença, suas mortes deveriam ser consideradas simultâneas e o patrimônio dela seria endereçado para caridade.
Há outras questões ainda em aberto sobre os Fundos de Fidúcia (Trusts) que administram as duas heranças, como por exemplo o fato de Gene Hackman ter deixado legados específicos a beneficiários identificados e Betty ter determinado que “bens pessoais tangíveis” devem entregues a pessoas designadas em uma lista separada de seu testamento.
Mas estes são pontos a serem citados apenas de passagem, não tendo relevância para o presente artigo, já que, embora a Lei 14.754/23 tenha definido as figuras do instituidor (settlor), administrador do trust (trustee), beneficiário (beneficiary), bem como os atos e documentos para a sua constituição e manutenção: distribuição (distribution), escritura do trust (trust deed ou declaration of trust) e carta de desejos (letter of wishes), a preocupação do legislador foi eminentemente tributária, e incontáveis aspectos (principalmente de Direito de Família e Sucessório), ficaram de fora(1), desbordando, por conseguinte, dos objetivos deste artigo.
Fato é que um dos filhos do ator tornou público o fato de ter contratado um renomado escritório de advocacia, o que pode indicar o início de uma disputa judicial de modo a se determinar, por exemplo, a validade dos testamentos, o patrimônio de cada um dos falecidos e seu destino final. Com isso, poderemos rever o presente artigo, à medida que novos acontecimentos ocorram.
Aplicando a partir de agora o que chamamos de “subsunção hipotética”, com fins puramente acadêmicos, vamos imaginar o que poderia ocorrer se os falecidos fossem brasileiros e toda a dinâmica acima narrada ocorresse em nosso país, sob a égide dos Códigos Civis de 1916 e de 2002. Isso porque, rememoramos, o casamento entre Gene e Betsy aconteceu em 1991, tendo ele 61 e ela 32 anos de idade.
Em 1991 vigorava o Código Civil de 1916, o qual determinava o casamento com “separação obrigatória de bens” caso o noivo tivesse mais de 60 anos de idade. Assim, eles se casariam sob este regime, com aplicação da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, a qual determina a comunicação dos bens adquiridos durante o matrimônio.
O regime seria mantido, mesmo na vigência do novo Código Civil (art. 2.039 do CC-2002) e na sucessão não haveria concorrência com descendentes da pessoa falecida, mas apenas direito à meação dos bens comuns (art. 1.829, I, do CC-2002).
No tocante à comoriência, não vigoram no Brasil regras como as existentes nos EUA, pois pelo artigo 8º da nossa Lei Civil, se for possível averiguar se a morte de um dos indivíduos precedeu a do outro, não se declara a morte simultânea. Mesma regra ocorre no artigo 109 do Código Civil argentino, art. 68º-2 do Código português e art. 4 da Lei Civil italiana, apenas a título de exemplo.
Além disso, não seria possível logicamente a modificação de regras legais ou a criação de novos institutos jurídicos por testamento. Assim, ainda que com horas ou dias de diferença e mesmo diante de uma cláusula testamentária baseada em direito estrangeiro, no Brasil seria considerado que Betsy morreu primeiro, abrindo-se assim sua sucessão antes da abertura da sucessão do marido.
Com isso, independentemente do regime de bens adotado, não havendo descendentes ou ascendentes sobreviventes com relação à Betsy, independentemente do regime de bens adotado, Hackman seria considerado seu herdeiro universal, aplicando-se ao caso o art. 1.838 do Código em vigor: Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente.
Todavia, com relação à existência de um testamento em que a esposa deixa a herança integralmente para caridade, reputamos interessante frisar que o Superior Tribunal de Justiça possui acórdão estabelecendo que "o cônjuge é herdeiro necessário, qualquer que seja o regime de bens, exceção feita ao regime da separação legal ou obrigatória" (AgInt no AREsp 893.563/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 20/09/2018, DJe 26/09/2018).
Desta forma, por não ser herdeiro necessário, no Brasil, Hackman não poderia pleitear a redução das disposições testamentárias deixadas por Betsy (arts. 1.966 e seguintes do CC-02), já que não haveria “fração legítima” dos herdeiros necessários, cabendo-lhe pleitear a meação dos eventuais aquestos. O ator poderia ser meeiro, mas não herdeiro.
Fechando este ponto, apenas destacamos que mesmo que Betsy não tivesse deixado disposições concretas sobre quais instituições de caridade seriam beneficiadas com a fração disponível de seus bens, o CC-02 resolveria eventual impasse com a aplicação do artigo 1.902.
Já os filhos de Hackman, não tendo sido excluídos ou deserdados, seriam considerados herdeiros necessários do pai e poderiam pedir a redução das disposições do testamento paterno, caso Betsy fosse viva ao tempo da morte do pai, o que na verdade não ocorreu. De todo modo seria interessante: Betsy seria meeira do patrimônio comum e herdeira testamentária de metade do restante do patrimônio, mas, pelo regime de bens, não concorreria com os filhos de Hackman nos 25% restantes. Além, é claro, de resguardar seus bens particulares.
No caso concreto, temos Hackman falecido depois da esposa e sendo meeiro do eventual patrimônio comum amealhado com ela. Este teria deixado um testamento em favor da esposa, a qual seria pré-morta. Não havendo o ator deixado substitutos testamentários (arts. 1.947 e seguintes do CC-02), seu testamento seria considerado ineficaz, restaurando o direito de os filhos receberem integralmente a herança paterna.
Por fim, rememoramos que, de todo modo, os Testamentos teriam de ser aprovados pelo juízo sucessório, no que tange aos seus requisitos formais, podendo haver ações no âmbito cível discutindo sua nulidade ou anulabilidade. Além disso, antevemos que poderiam ocorrer debates acerca da cumulação dos inventários (art. 672 e incisos do Cód. de Processo Civil), pois apesar de envolver as partilhas de dois cônjuges (inc. II) e haver a possível dependência de uma partilha com relação à outra (inc. III), o parágrafo único do mesmo dispositivo deixa a critério do Magistrado ordenar a tramitação separada se a dita dependência for parcial e se melhor conviesse ao interesse das partes ou à celeridade processual.
- FAIDIGA, Daniel Bijos; BRAGA, Joana Bethonico. “Trusts: finalmente a legislação brasileira tocou no nome deles” (In. https://www.conjur.com.br/2024-mar-24/trusts-finalmente-a-legislacao-brasileira-tocou-no-nome-deles/, acesso em 15 de março de 2025.
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