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Em alegorias do direito, justiça seja feita
Jones Figueirêdo Alves
Há uma velha história sobre um carrinho de mão vazio e o furto (in)visível, que nos conta Slavov Zizek, renomado filósofo esloveno, nascido na antiga Iugoslávia (31.03.1949). “Todas as tardes, quando sai um trabalhador da fábrica, suspeito de roubar no trabalho, os guardas inspecionam cuidadosamente o carrinho de mão que ele empurra, mas nunca encontram nada. Está sempre vazio. Até que um dia cai a ficha: o que o trabalhador rouba são os carrinhos de mão...”. (“Violência...”, 2014).
Essa alegoria, em sua expressão sob forma figurada, significa que o "carrinho de mão" pode ser algo essencial que está sendo ignorado. No caso a tratar, a observabilidade no sistema jurídico, cuja falta torna o direito uma ferramenta subutilizada. A observabilidade no contexto judicial refere-se à transparência, rastreabilidade e capacidade de monitoramento dos processos e decisões judiciais. Sem ela, não haverá segurança jurídica ou o devido processo legal.
Para isso, importa saber, sobremodo, a exata dimensão dos vocábulos jurídicos e das alegorias do direito.
Não custa lembrar que um recurso judicial é um re-curso. Etimologicamente, do latim, “recursus”, significando "ato de voltar atrás", "retorno", "repetição de um caminho". Esse significado mantém a ideia original de "voltar" ou "percorrer novamente" um caminho para tentar modificar um resultado. Então, não se julga por achismos, senão as decisões não serão confiáveis.
A estátua da Deusa da Justiça (Justitia), erguida em 1543, na praça Römerberg, no sítio histórico de Frankfurt, se diferencia de muitas outras representações da Justiça porque ela tem os olhos abertos, enquanto as demais estátuas da Justiça pelo mundo a retratam vendada. Ao invés de ser cega, como na interpretação clássica, essa representação indica que a Justiça deve estar atenta e consciente dos fatos ao julgar.
Foi o movimento renascentista, no século XVI, enfatizando o conhecimento e a razão, que sugeriu a Justiça dever ver claramente os fatos e interpretar as leis de maneira racional. Isso reforça a ideia de os juízes deverem avaliar cada caso com discernimento e não apenas aplicar as leis mecanicamente.
A metáfora da Justiça cega simbolizando imparcialidade não é suficiente. A de olhos bem abertos, impõe que ela deva ser vigilante e consciente da realidade, enxergando as nuances dos casos e garantindo que a aplicação da lei seja justa. Ou seja, aplicar a lei de forma estritamente literal pode resultar em injustiças reais.
Na prática, a justiça tem sido cega quando não observa as desigualdades sociais, coloca os vulneráveis em desconforto diante do poder econômico, não enxerga as vicissitudes dos mais pobres, não enfrenta o machismo radical em detrimento da dignidade das mulheres.
Exemplo clássico de impunidade dos poderosos, o caso do magnata financista norte-americano Jeffrey Epstein que operou por décadas, nos EUA, uma rede de tráfico sexual de menores, envolvendo figuras influentes como políticos e celebridades. Fez um acordo bastante benévolo, em 2009, cumprindo apenas treze meses de custódia. Novamente preso, em 2019, após novas investigações, morreu na cela, um mês depois, sob circunstâncias suspeitas.
A justiça deve colocar-se de olhos abertos, como sucedeu quando abriu os olhos contra os crimes contra a humanidade no “Caso de Nuremberg (1945-1946)”. Recentemente. Quando o movimento #MeToo levou à prisão Harvey Weinstein, poderoso produtor de Hollywood que abusou sexualmente de dezenas de mulheres. Condenado em 24.02.2020, de dois de cinco crimes, a 23 anos de prisão. Ou no “Caso Larry Nassar”, de abuso sistêmico no esporte, tendo o osteopata da equipe de ginástica dos EUA, vitimado pelo menos 250 ginastas. Entre 2017 e 2018, foi condenado às penas de mais de 300 anos de prisão (consecutivas, e não concomitantes), por sentenças estaduais e federais, após grande mobilização das vítimas.
Em nosso país, a influencer Mariana Ferrer foi humilhada durante um julgamento em Santa Catarina, onde o advogado do réu usou estratégias de desqualificação da vítima. O caso gerou indignação nacional e levou à criação da Lei Mariana Ferrer (Lei n. 14.245, de 22.11.2021), que protege as vítimas, e, em especial, nas que apurem crimes de violência sexual, contra constrangimentos em audiências (artigos 400-A, e 474-A, CPP).
A justiça abre os olhos contra todos os abusos, sejam dentro da família (exemplo clássico do “Caso Flordelis”) ou da própria sociedade.
A utilização da observabilidade, em seu conceito oriundo da matemática e da engenharia, tratando de sistemas dinâmicos, deve dirigir-se também ao direito, como medida e ferramenta de inferência indispensável para garantir a justiça, a proteção dos direitos das partes e a efetividade da prestação jurisdicional.
Aspecto relevante é a análise cuidadosa das provas e do contexto do caso, como mencionado no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, aprovado pela Resolução 492 do CNJ. O protocolo orienta os magistrados a considerarem as desigualdades e especificidades de cada caso, promovendo uma análise mais justa e equitativa.
De tal sentir, os "Olhos Abertos" da Justiça significam, sempre, a certeza de que todos sejam julgados de forma segura, justa e imparcial, independentemente de poder, prestígio ou influência.
Jones Figueirêdo Alves é
Desembargador Emérito do TJPE. Advogado e parecerista.
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