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A valorização das cotas sociais empresariais e o REsp 1.173.931/RS
Ana Paula Rechden[1]
O tema envolvendo a possibilidade de se partilhar a valorização de cotas sociais ocorrida durante o casamento ou união estável é tema que sempre trouxe forte debate doutrinário e jurisprudencial. Até que em 22 de outubro de 2013, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça enfrentou a matéria e, sob um inusitado fundamento jurídico, entendeu pela sua incomunicabilidade[2]. O Relator foi o eminente Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
O caso julgado pela Corte Superior tratava de ação de reconhecimento e dissolução de união estável ajuizada pela companheira sobrevivente em desfavor da sucessão do companheiro. A autora e o de cujus haviam vivido como se casados fossem por cinco anos, de 1993 até 1997, quando sucedeu o óbito. Em sentença, foi reconhecida a união estável e determinada a partilha de 50% de um bem imóvel, de um veículo e da valorização experimentada pelas cotas sociais de empresas tituladas pelo falecido durante a união estável, embora adquiridas anteriormente ao relacionamento. A sucessão apelou, sem êxito, porquanto mantido o decisum de primeiro grau pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Inconformada, a sucessão levou a discussão ao Superior Tribunal de Justiça, tendo o Recurso Especial sido autuado sob o nº 1.173.931/RS.
Em julgamento proferido por unanimidade, a Corte Superior reformou o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça Gaúcho, entendendo pela incomunicabilidade da valorização das cotas sociais, com base em dois argumentos:
- A valorização de cota social é decorrência de um fenômeno econômico, dispensando o esforço laboral da pessoa do sócio detentor. Logo, não se faz presente, mesmo que de forma presumida, o segundo requisito orientador da comunhão parcial de bens, que é o esforço comum;
- Posicionamento adotado pelo voto vencido na origem: Fosse um imóvel adquirido antes do início do período de convivência, certamente, nem ele (imóvel), nem sua valorização imobiliária, seriam objeto de partilha, devendo ser aplicada a mesma lógica às cotas sociais.
Conquanto pioneiro ao enfrentar o tema, o julgado em análise não apresenta qualquer efeito vinculante. Ainda assim, o entendimento preconizado passou a ser replicado na própria Corte Superior[3], nos Tribunais Estaduais[4] e especialmente aqui no Rio Grande do Sul.
A exemplo do caso concreto acima narrado, o tema em debate exsurge do seguinte cenário jurídico: um dos cônjuges ou companheiros é titular de cotas sociais de uma sociedade limitada adquiridas em data anterior ao casamento ou união estável celebrado pelo regime da comunhão parcial de bens. Tomando-se por base este regramento patrimonial, as cotas são incomunicáveis, por força do disposto no art. 1.659[5] do Código Civil. E isso não se discute. Não é incomum, contudo, que a sociedade empresarial prospere significativamente na constância do relacionamento, repercutindo, consequentemente, no valor da cota social. E é justamente esse incremento econômico, e não a cota em si, cuja partilha se perquire, porquanto ocorrido durante a vigência da relação e não se enquadrar em nenhuma causa de exclusão da partilha.
Numa análise perfunctória sobre a matéria, inicialmente cabe ressaltar que atribuir o incremento financeiro experimentado pela cota social a mero fato econômico é deveras singelo se considerada a complexidade da matéria e os inúmeros tipos de sociedade existentes.
De fato, se de um lado não se desconheça que a consecução do objeto social das sociedades de capital depende muito mais da contribuição material dos sócios do que de suas características pessoais, o mesmo não se pode afirmar da sociedade de pessoas, em que a figura do sócio é essencial para o desenvolvimento e manutenção da empresa.
Nesses casos, que certamente representam a maioria da realidade brasileira, a força de trabalho e o empenho do sócio estão intimamente relacionadas ao sucesso do negócio, e não apenas a fatores meramente econômicos e mercadológicos. Por conseguinte, o trabalho realizado pelo sócio, via de regra, está ligado ao incremento financeiro experimentado pela cota social. E se há esforço do sócio, inexoravelmente há esforço presumido de seu cônjuge ou companheiro a justificar a partilha da valorização sofrida pela cota social. Além disso, essas sociedades, via de regra, representam a sua fonte de subsistência e a de sua família, que cada vez mais tem feito uso de pessoas jurídicas para o exercício de suas atividades profissionais.
Outrossim, relativamente ao segundo argumento exposto pelo julgamento em debate, tem-se que a equiparação levada a efeito entre uma cota social e um bem imóvel não é adequada. Além de a primeira constituir-se em um bem móvel, e não imóvel, a sua natureza multifacetária em nada se assemelha a um patrimônio estanque, como o imobiliário. Não por outra razão, são diversos os fatores a serem considerados para se apurar o quantum de uma cota social numa perícia. De acordo com o disposto no art. 606 do Código de Processo Civil, em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma.
Com efeito, a forma de mensuração de uma cota social baseia-se em critérios diversos, inclusive tomando-se por base bens intangíveis, enquanto a valorização de um patrimônio imobiliário efetivamente não guarda relação com o esforço pessoal de trabalho do seu proprietário, e sim com fatores relacionados a características do imóvel, localização e contexto de mercado.
A partir do exposto, conclui-se que o entendimento em análise exarado pela Corte Superior merece ser revisitado, e não reiteradamente replicado. As diversas formas sobre as quais a atividade empresarial se apresenta e se desenvolve exige uma análise acurada de cada caso concreto, a fim de verificar as bases fáticas da valorização das cotas sociais, sob pena de se chancelar o enriquecimento ilícito de um dos consortes, em manifesta violação ao direito de meação e ao regime de bens eleito. O dinamismo da atividade empresarial não permite soluções simplistas e estanques como a apresentada pela Corte Superior e que, não bastasse, culmina por incentivar o repasse de bens e direitos comuns para o ente societário, como forma de fraudar a meação de um dos cônjuges ou companheiros.
[1] Advogada atuante na advocacia especializada em Direito das Famílias e Sucessões. Sócia fundadora de Maria Berenice Dias Advogados. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Associada Efetiva do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul – IARGS. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Academia Brasileira de Direito Processual Civil e em Direito Contratual Civil e Responsabilidade Civil pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul.
[2] Ementa: RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DE BENS. COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. VALORIZAÇÃO DE COTAS SOCIAIS.
1. O regime de bens aplicável às uniões estáveis é o da comunhão parcial, comunicando-se, mesmo por presunção, os bens adquiridos pelo esforço comum dos companheiros.
2. A valorização patrimonial das cotas sociais de sociedade limitada, adquiridas antes do início do período de convivência, decorrente de mero fenômeno econômico, e não do esforço comum dos companheiros, não se comunica.
3. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
(REsp n. 1.173.931/RS, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 22/10/2013, DJe de 28/10/2013.)
[3] STJ, AgInt nos EDcl no AREsp n. 699.207/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 27/6/2022, DJe de 29/6/2022.
STJ, AgInt no AREsp n. 236.955/RS, relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Quarta Turma, julgado em 21/11/2017, DJe de 27/11/2017.
STJ, AgInt no AREsp n. 297.242/RS, relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Quarta Turma, julgado em 7/11/2017, DJe de 13/11/2017.
STJ, REsp n. 1.595.775/AP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 9/8/2016, DJe de 16/8/2016.
[4] TJ-MG, Apelação Cível nº 51077630220198130024, Relator.: Des.(a) Ângela de Lourdes Rodrigues, Data de Julgamento: 03/10/2024, Câmaras Especializadas Cíveis / 8ª Câmara Cível Especializada, Data de Publicação: 04/10/2024.
TJ-RS, Apelação Cível nº 5000455-24.2019.8.21.0010 CAXIAS DO SUL, Relator.: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 09/11/2023, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 10/11/2023.
TJ-MG, Apelação Cível nº 31249868020118130024 Belo Horizonte, Relator.: Des.(a) Alexandre Victor de Carvalho, Data de Julgamento: 10/02/2022, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 18/02/2022.
TJ-MG, Apelação Cível nº 10024113124986002 Belo Horizonte, Relator.: Alexandre Victor de Carvalho, Data de Julgamento: 10/02/2022, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 18/02/2022.
TJ-SP, Mandado de Segurança nº 22765017920208260000 São Paulo, Relator.: Alvaro Passos, 1º Grupo de Direito Privado, Data de Publicação: 15/04/2021.
TJ-MG, Apelação Cível nº 50140966720168130702, Relator.: Des.(a) Alice Birchal, Data de Julgamento: 10/08/2021, Câmaras Cíveis /7ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 18/08/2021.
TJ-RS, Apelação Cível nº 50100861920198210001 PORTO ALEGRE, Relator.: Rosana Broglio Garbin, Data de Julgamento: 09/07/2020, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 10/07/2020.
TJ-DF, Apelação Cível nº 00127449220138070004 - Segredo de Justiça, Relator.: LEILA ARLANCH, Data de Julgamento: 14/08/2019, 7ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE: 21/08/2019.
TJ-RS, Apelação Cível nº 70081214678 SANTA CRUZ DO SUL, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 07/08/2019, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 13/08/2019.
TJ-RS, Apelação Cível nº 70075898791 RS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Data de Julgamento: 26/04/2018, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 02/05/2018.
TJ-RS, Apelação Cível nº 70075395194 RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 08/02/2018, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 16/02/2018.
TJ-RS, Apelação Cível nº 70070845136 RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Data de Julgamento: 28/09/2016, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 03/10/2016.
TJ-RS, Apelação Cível nº 70067503649 RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 19/05/2016, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 24/05/2016.
[5] Código Civil, Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:
I - os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;
II - os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares;
III - as obrigações anteriores ao casamento;
IV - as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal;
V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;
VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;
VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.
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