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Pactos antefamiliares e a necessária instrumentalização do namoro qualificado
André Anderson Gonçalves de Oliveira
Advogado, Mestrando em Direito Privado pela PUC Minas e pós-graduando em Direito das Sucessões
1 INTRODUÇÃO
No curso de uma conversa informal, ou em um debate de cunho acadêmico, uma realidade é inegável: ao citar sobre “contrato de namoro”, os efeitos serão risos e trocadilhos, revestidos de jocosidade.
Na realidade contemporânea, é possível compreender o desdém pelo instrumento a partir de duas interpretações: social e científica.
No campo social, os intitulados “contratos de namoro”, de crescente popularidade perante os famosos e anônimos, constituem-se por contratos atípicos, sem maiores critérios ou normativas, que para muitos possuem natureza banal, haja vista que aparenta objetivar o fim do romantismo, mediante negociação do afeto e manifesto intento de proteção patrimonial.
Na seara científica, são manifestamente carentes de técnica e eficácia jurídica, de modo que a utilização do respectivo instrumento visa combater a caracterização fática das uniões estáveis, que ensejam deveres de ordem patrimonial e extrapatrimonial, equiparados constitucionalmente ao casamento.
Em outros termos, para a comunidade jurídica, sejam nos núcleos acadêmicos, no serviço notarial ou nas sessões de julgamentos, os contratos de namoro são interpretados como instrumentos atípicos sem validade jurídica, que facilmente são invalidados pelo princípio da primazia da realidade sobre a forma, de modo que, independentemente das partes manifestarem o intento por um mero namoro, se faticamente aparentar uma união estável, será o contrato invalidado.
Contudo, no presente cenário do ordenamento jurídico vigente, a realidade jurídica dos contratos de namoro se demonstra em potencial mudança, advinda de uma imposição social, que insiste em utilizar o instituto. Desta maneira, a insegurança jurídica está instaurada.
Assim, apesar da ausência de regulamentação e resoluções acerca da temática, parcela considerável de cartórios autorizam o registro de contratos de namoro, enquanto a grande maioria, receosos com a atecnia e ausência de juridicidade do instrumento, optam por negar o registro, culminando em excessivas suscitações de dúvidas perante a atividade jurisdicional do Estado.
Logo, considerando que a utilização do respectivo instrumento se tornou uma realidade fática, um incontroverso fato social, deve o direito tutelar com a devida responsabilidade e técnica, a fim de garantir ao ordenamento jurídico saúde e estabilidade. Para isto, mostra-se indispensável a construção de um novo instituto jurídico, o pacto antefamiliar, que visa a formalização efetiva de uma relação de namoro, em plena conformidade com normativas familiaristas, contratuais e constitucionais.
Sendo assim, para esta análise meritória preliminar, que será aprofundada em obra jurídica posterior, o presente artigo apresentará uma análise doutrinária, jurisprudencial e legislativa acerca da temática à baila, de modo a compreender o atual estado da arte e construir potenciais norteadores futuros para corroborar com o desenvolvimento seguro, técnico e responsável de um contrato de namoro, intitulado neste novo paradigma como pacto antefamiliar.
2 A REPERCUSSÕES JURÍDICAS DO NAMORO E A NECESSÁRIA DISTINÇÃO ENTRE MODALIDADES RELACIONAIS
Conforme mencionado alhures, o contrato de namoro encontra-se em potencial crescimento perante casais e pares afetivos que, em busca por formalizar o namoro e afastar a união estável, firmam o instrumento visando uma blindagem patrimonial. Infelizmente, uma ilusão utópica revestida de atecnias.
Entretanto, antes de adentrar nas polêmicas análises inerentes à validade jurídica do atual “contrato de namoro”, faz-se necessário questionar: quais são as repercussões jurídicas do namoro?
Maria Berenice Dias, acerca da temática do namoro, ministra:
Namoro, é claro, não é o mesmo que casamento, união estável, nem mesmo espécie de entidade familiar. Embora instituam um relacionamento, os namorados não têm propósito imediato a constituição de família, mas sim algo muito menos engajado e profundo. Mesmo assim, o casal vem recorrendo ao usualmente chamado contrato de namoro com o propósito de regulamentarem suas eventuais relações jurídicas de cunho patrimonial, sem que a autoridade do Estado se sobreponha à sua liberdade pelo possível reconhecimento da existência de uma união estável que, a rigor, não existiria.
(DIAS, 2023, p. 610)
Em linhas gerais, o namoro constitui-se por uma modalidade afetiva sem a presença atual ou iminente do animus familiae, isto é, o intento de constituir família, elemento basilar da união estável e do casamento. Sendo assim, em tese, o namoro não provocaria efeitos jurídicos, seja na esfera patrimonial como na perspectiva pessoal, ante a ausência de positivação e de elementos essenciais para a caracterização de uma entidade familiar.
Entretanto, a problemática se instaura quando a doutrina e a jurisprudência, ao analisar o caso concreto, não conseguem distinguir a união estável e o namoro, provocando lides intermináveis e inconciliáveis, haja vista que um produz a comunicabilidade da aquisição de bens e valores, enquanto a outra gera um mísero término infeliz, sem maiores repercussões. Neste sentido, faz-se necessário indagar: como solucionar a problemática?
Ante a ausência de critérios objetivos para diferenciar as respectivas modalidades afetivas, em face do escasso interesse da comunidade acadêmica em aprofundar nas especificidades do namoro, na realidade forense, casais e pares buscam a utilização de contratos de namoro, instrumentos sem embasamento legal ou jurídico, visando afastar a caracterização da união estável e consequentemente os efeitos patrimoniais atinentes ao relacionamento em questão.
Contudo, apesar de constituir um instrumento de necessário desenvolvimento e consolidação, eis que visa a preservação da autonomia privada afetiva, o tratamento conferido ao instituto é, no mínimo, controverso.
Apesar da jurisprudência majoritária consolidar o entendimento de que o contrato de namoro não possui validade e é defeituoso em afastar a caracterização das uniões estáveis, algumas decisões proferidas reconheceram a validade jurídica do contrato de namoro, ante o princípio da autonomia privada. Neste sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em decisão inovadora, proferiu:
“APELAÇÃO. Ação de reconhecimento e dissolução de união estável cumulada com partilha de bens. Sentença que julgou improcedente a ação. Inconformismo da parte autora. Não preenchidos os elementos essenciais caracterizadores da união estável previstos na lei. Contrato de namoro firmado pelas partes. Caracterizado simples namoro, sem intenção de formação de núcleo familiar. Sentença mantida. Recurso desprovido” (TJ-SP – AC. 1000884-65.2016.8.26.0288 – Relator: Rogério Murillo Pereira Cimino, Data de Julgamento: 25/06/2020, 9ª Câmara de Direito Privado – Datade Publicação: 25/06/2020).
Inclusive, julgados do STJ versam sobre a temática, consolidando a definição do “namoro qualificado” para as uniões que se assemelham faticamente às uniões estáveis, porém carentes do animus familiae, requisito indispensável para a caracterização da família. Em outros termos, a instabilidade está consolidada, ante a insegurança jurídica da validade de um contrato de namoro.
Em relação a doutrina pátria, a perspectiva é ainda pior. Ao abrir as doutrinas jurídicas, sejam as clássicas ou as festivamente atualizadas, é surpreendente a ausência de tratamento técnico acerca do instituto. Das obras mais relevantes, pouquíssimas versam sobre o assunto à baila, reservando apenas alguns parágrafos para discorrer acerca dos contratos de namoro, que constitui verdadeiro fato social, de exponencial crescimento perante a sociedade brasileira.
Logo, considerando que a utilização do respectivo instrumento se tornou uma realidade fática, um incontroverso fato social, deve o direito tutelar com a devida responsabilidade e técnica, a fim de garantir ao ordenamento jurídico saúde e estabilidade. Para isto, mostra-se indispensável a construção de um novo instituto jurídico, o pacto antefamiliar, que visa a formalização efetiva de uma relação de namoro, em plena conformidade com normativas familiaristas, contratuais e constitucionais.
3 A NECESSÁRIA CONSTRUÇÃO DO PACTO ANTEFAMILIAR PARA A CONSOLIDAÇÃO DA AUTONOMIA PRIVADA AFETIVA
Conforme anteriormente exposto, os contratos de namoro estão se tornando instrumentos de reiterada utilização na sociedade contemporânea brasileira. Contudo, dada a ausência de técnica jurídica e maturidade científica, advinda de preconceitos enraizados por parte do Poder Judiciário e da comunidade acadêmica, constitui-se por um instrumento carente de repercussões jurídicas.
Desta maneira, no curso de reiterados processos, cuja pretensão autoral constitui pelo reconhecimento e dissolução de união estável, a problemática se intensifica. O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do REsp 145643/RJ, estabeleceu:
“O propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável – a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado “namoro qualificado” -, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída.
(…) não vivenciaram uma união estável, mas sim um namoro qualificado, em que, em virtude do estreitamento do relacionamento projetaram para o futuro – e não para o presente -, o propósito de constituir uma entidade familiar”. (REsp 1.454.643/RJ, rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 3/3/2015, DJe 10/3/2015).
Entretanto, faz-se mister questionar: quais são os critérios objetivos e técnicos para diferenciar um namoro qualificado e uma união estável? Em caso de carência de requisitos jurídicos para delimitar uma necessária distinção entre institutos, por que não conferir eficácia jurídica a declaração de vontade das partes devidamente firmada e formalizada?
Imagine o seguinte cenário fático: João conhece Maria em um evento de faculdade. Eles se conhecem. Eles saem a um encontro. Eles se apaixonam. Eles conhecem a família do outro. Eles se declaram para o outro. Eles decidem morar juntos. Eles, para evitarem qualquer entrave patrimonial, decidem manifestar formalmente o intento em viver em um namoro, sem atual e iminente desejo em constituir uma família. Contudo, como qualquer relacionamento interpessoal de natureza afetiva, conflitos se instauram.
Maria e João passam a brigar. Passam a insultar verbalmente o outro. Passam a desejar o pior para o outro. E, insatisfeito com a realidade instaurada, João decide romper o namoro.
Maria, revestida por sentimento revanchista, ajuíza uma ação de reconhecimento de união estável, a fim de fomentar o seu sentimento de vingança. Assim, busca-se reparação pela dissolução da relação, postulando partilha dos bens adquiridos no curso da união. Entretanto, em sede de contestação, dado o escasso rol probatório para se evadir da caracterização da união estável, João apresenta um contrato de namoro, uma manifestação de vontade firmada entre as partes, com a estrita finalidade de declarar a existência de um mero namoro.
Desta maneira, faz-se necessário indagar: um pacto bilateral entre as partes, formalizando a manifestação de vontade do casal, que não ofende normas de ordem pública, e constitui clara liberdade contratual, merece ter sua validade jurídica ceifada? Se a resposta for positiva, tal realidade não condena o princípio da autonomia privada?
Em outros termos, os nubentes exercem a autonomia privada mediante pacto antenupcial. Os conviventes, por pacto de convivência. Neste prisma, por que os namorados não podem se valer de um pacto antefamiliar, isto é, anterior à caracterização do animus familiae?
Neste sentido, o projeto de pesquisa que se encontra em construção almeja a construção de um instituto jurídico, afastando a banalidade fática dos contratos de namoro, e criando o instituto dos pactos antefamiliares: declarações de vontade realizadas por namorados que, vinculados pelo afeto, manifestam livremente o intento em afastar provisoriamente o animus de constituir uma família.
Sendo assim, pactos antefamiliares, nomenclatura desenvolvida no curso da pesquisa em questão por este autor, denominam com técnica e juridicidade o instituto banalmente intitulado “contratos de namoro”, englobando o cerne primordial do instrumento: declarações de vontade, afetividade e afastamento provisório e material da constituição do animus familiae.
Desta maneira, a construção de um instituto juridicamente seguro, sob a égide da teoria geral dos contratos e a teoria dos negócios jurídicos, postulando a efetiva diferenciação técnica entre uniões estáveis e namoros qualificados, é indispensável para garantir a dignidade, autonomia e liberdade dos namorados, que buscam afastar, ainda que provisoriamente, o intento de constituir família e resguardar a vontade de viver afetivamente, sem repercussões ou entraves jurídicos.
4 CONCLUSÃO
O presente recorte temático, de inafastável importância, visa apresentar tópicos iniciais de uma aprofundada pesquisa doutrinária, jurisprudencial e legislativa, atualmente em desenvolvimento, na busca efetiva de reconhecer a validade jurídica de uma declaração de vontade firmada entre namorados que, vinculados pelo afeto, almejam afastar, provisoriamente ou definitivamente, o intento de constituir família.
Nesse ínterim, o pacto antefamiliar será um instrumento a ser desenvolvido de maneira técnica, jurídica e responsável, no curso do programa de mestrado que faço parte, a fim de garantir a efetiva segurança jurídica dos namorados pautando-se na responsabilidade científica, de modo a expurgar a mera festividade eudemonista e a descaracterização da vontade privada manifestada.
REFERÊNCIAS
DIAS, Maria Berenice. Direito das Famílias. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 24 nov. 2024.
FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume único 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2022. https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 24 set. 2024.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
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