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Revisional de alimentos: inequívoca comprovação de modificação do estado de fato ou de direito
Laís Mello Haffers[1]
Maria Fernanda Vaiano[2]
A obrigação alimentar corresponde a uma relação continuativa, que é passível de alteração a qualquer momento, desde que sobrevenha modificação no estado de fato ou de direito. Não demonstrada tal modificação, o pedido de revisão não prospera. Na hipótese, tem aplicação o disposto no artigo 1.699 do Código Civil, que dispõe: “Se, fixados os alimentos, sobrevier mudança na situação financeira de quem os supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao juiz, conforme as circunstâncias, exoneração, redução ou majoração do encargo.”
Afinal, “cabe ação revisional sempre que alterada a proporcionalidade decorrente da possibilidade de quem presta e da necessidade de quem recebe os alimentos”[3]. Como leciona Yussef Said Cahali, “a redução, exoneração ou agravação do encargo alimentar, quando já fixados os alimentos, só se recomenda quando sobrevier mudança na fortuna de quem os supre ou de quem os recebe [...]”[4].
Em suma, conforme explica Maria Berenice Dias, o que autoriza a modificação do quantum despendido é o surgimento de um fato novo que enseje desequilíbrio da obrigação alimentar anteriormente fixada, devendo ser observada a alteração do trinômio possibilidade x necessidade x proporcionalidade[5].
Na visão do Superior Tribunal de Justiça a revisão dos alimentos, após ajustamento em decisão judicial, se encontra condicionada à mudança na situação financeira de quem os supre, ou na de quem os recebe, com comprovação das partes diretamente envolvidas: “A modificação das condições econômicas de possibilidade ou de necessidade das partes, constitui elemento condicionante da revisão e da exoneração de alimentos, sem o que não há que se adentrar na esfera de análise do pedido, fulcrado no art. 1.699 do CC/02”[6].
Assim sendo, a revisional só tem fundamento quando há comprovação inequívoca da alteração do binômio capacidade/necessidade. Deve haver, portanto, fato novo e posterior à decisão concessiva.
Entendimento diverso representaria ofensa à coisa julgada: “impraticável a emissão de nova sentença relativamente à mesma situação contemplada na outra, que ofenderia a coisa julgada e a estabilidade das decisões judiciais”[7].
Sobre isso, destaca-se que como ‘modificação das condições econômicas de possibilidade e necessidade’ e ‘alteração do binômio’, não se deve manter a visão estanque, singela e rasa de pura derrocada financeira dos alimentantes ou ampliação significativa nas necessidades dos alimentandos, como únicos elementos a autorizar a revisão para menor ou maior da obrigação. Mudança no terceiro alicerce do trinômio, a proporcionalidade, também autoriza a revisional, exatamente para manter o equilíbrio previsto na lei.
Nesse sentido, em recente acórdão proferido no julgamento de Agravo de Instrumento nº 2210349-83.2019.8.26.0000, o Exmo. Relator Claudio Godoy, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao analisar uma ação revisional de alimentos proposta pelo genitor, dispôs que: “Assim, sendo a tese alegada pelo varão de que a genitora tem condições de participar, em maior grau, do sustento dos filhos, e sendo que, novamente em tese, isso excepcionalmente se pode levar em conta quando do pleito revisional, não se pode negar a prova que o varão pretende produzir”. Mais adiante, salienta que a prova é “...fundada na pretensão de que a pensão, justamente, se proporcionalize conforme a sua capacidade e dever também de contribuição ao sustento dos filhos”.
Como é cediço, o arbitramento da obrigação alimentar deve observar a necessidade de quem recebe, ponderada com a possibilidade de quem paga, na forma do artigo 1.694, § 1º. do Código Civil[8]. Em outras palavras, a delimitação da pensão alimentícia não pode ser feita sem critérios seguros.
A capacidade do alimentante funciona como limite a fixação dos alimentos para que não cause empobrecimento despropositado. Aliás, sobre o tema, colha-se a lição doutrinária de Carlos Eduardo Nicoletti Camillo:
O §1º deste artigo [art. 1.694] compreende mais três requisitos essenciais para a configuração da obrigação alimentar: a) necessidade do alimentado; b) possibilidade econômica do alimentante e c) fixação proporcional entre a necessidade do alimentado e a possibilidade econômica do alimentante. [...] De outro lado, exige-se que o alimentante tenha condições econômicas para prestar os alimentos, sem que haja sacrifícios ou privações de sua parte. Em que pese a necessidade, não há como impor um ônus a quem detém o estritamente necessário à própria subsistência. Pensar diferente importaria acarretar ao alimentante o seu próprio perecimento. Finalmente, a terceira exigência, resultante do binômio composto dos outros dois requisitos: necessidade do alimentado versus possibilidade do alimentante[9].
Desta maneira, “mesmo que reconhecendo as necessidades do credor, não é possível fixar um pensionamento que escape à capacidade econômica do alimentante”[10].
Assim, incumbe ao julgador se ater aos critérios de proporcionalidade entre a necessidade do alimentando e a possibilidade do alimentante no momento de fixar o valor dos alimentos, evitando-se, outrossim, onerar demasiadamente o último a ponto de não poder prover a própria subsistência, já que a pensão não pode ter caráter de punição.
Ainda, não se pode olvidar que o poder familiar é ônus que recai sobre ambos os genitores, devendo cada qual cumprir com as obrigações legais estipuladas, a fim de prover a subsistência material e moral de seus filhos, propiciando-lhes uma vida digna, na medida de suas possibilidades. De modo que, “se as possibilidades de um não suprem integralmente as necessidades das alimentandas, estas devem socorrer-se ao outro (CC, art. 1.703)”[11].
Como destacado pelo Exmo. Des. Erickson Gavazza, “(...) a subsistência do filho do casal é atribuição que cabe aos dois genitores. Logo, incumbe a ambos o dever de prover o sustento e amparo da prole. É obrigação solidária, devendo ser estabelecida na proporção das possibilidades de cada um dos pais (...)”[12]. Nos termos do artigo 1.566, IV, e 1.703, ambos do Código Civil, in verbis:
Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:
(...) IV - sustento, guarda e educação dos filhos; [...]
Art. 1.703. Para a manutenção dos filhos, os cônjuges separados judicialmente contribuirão na proporção de seus recursos.
De seu turno, o artigo 22 do Estatuto da Criança e Adolescente reafirma o dever dos pais com relação aos filhos menores, corroborando a obrigação de sustento compartilhada e equilibrada entre ambos os genitores[13].
A lei é clara ao dispor proporção de seus recursos, o que não implica em exoneração do encargo ao genitor guardião. Ao revés, é imprescindível a apuração da sua capacidade contributiva quando da estipulação (ou revisão) da obrigação. E essa apuração prescinde até mesmo da inclusão do genitor guardião na relação jurídica, tal como já esgotado pela jurisprudência pátria:
[...] O arbitramento do valor da obrigação alimentar decorre da observância do binômio possibilidade do alimentante versus necessidade do alimentando (§ 1º do art. 1.694 do CC), mas não se pode perder de vista que constitui dever dos cônjuges separados judicialmente contribuir na proporção de seus recursos para a manutenção dos filhos (art. 1.703 do CC). 2. Admite-se a quebra de sigilo bancário e fiscal, em sede de ação de revisão de alimentos, tanto do alimentante como da genitora do alimentando (§ 1º do art. 1.694 e 1.703 do CC e art. 5º, incisos X e XII, da CF/88), na circunstância de necessidade de levantamento de informações, para subsidiar o convencimento do juiz a quo, sobre a real condição econômica dos afetos à relação jurídica posta em juízo e de inviável obtenção por outros meios (como exercício de atividade remunerada autônoma). 3. Não há ilegalidade processual pelo fato de a genitora do alimentante não figurar como parte direta da demanda de alimentos, em que deferida a quebra de sigilo bancário de ativos de sua titularidade, DADA SUA CONDIÇÃO DE CORRESPONSÁVEL PELO SUSTENTO DO ALIMENTANDO, CUJO INTERESSE PREPONDERA SOBRE O DOS DEMAIS [...][14]
[...] Alimentos ajuizados pelos dois filhos menores em face do genitor – A genitora integra a lide apenas como representante dos alimentandos por força da lei [...] Informações buscadas que permitirão aferir a capacidade da mãe dos menores, possibilitando, assim, a fixação dos alimentos atribuídos ao varão de forma mais adequada – Pedido de pesquisa que deve ser deferido.[15]
De fato, o ordenamento jurídico protege, com veemência, o dever de sustento conjunto de ambas as autoridades parentais, como bem reforçam Gustavo Tepedino e Ana Carolina Brochado Teixeira:
O dever de sustento advém da autoridade parental, previsto nos ARTS. 229 DO TEXTO CONSTITUCIONAL, 1.566, IV, 1.568 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL, ALÉM DO ART. 22 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Compõe o conjunto de deveres que competem AOS PAIS, ao lado da educação e da assistência, de modo que os pais devem cuidar, integralmente, dos filhos, em todos os aspectos materiais e existenciais[16].
Portanto, para que se possa determinar o valor justo a ser imposto ao alimentante, a investigação patrimonial do outro genitor é crucial. Isso se faz à luz da legislação vigente (artigo 229 da Constituição Federal, artigos 1.566, IV, 1.568 e 1.724 do Código Civil, e artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente) e dos princípios do devido processo legal, como a ampla defesa e o contraditório.
Em conclusão, a obrigação alimentar deve sempre ser fixada e revisada com base no binômio necessidade x possibilidade, garantindo o equilíbrio entre as partes envolvidas. A modificação do quantum alimentar somente pode ser deferida quando há alteração substancial das condições financeiras do alimentante ou do alimentado, inequivocamente comprovada. Isto porque, a revisão dos alimentos não pode ser utilizada como meio para rediscutir decisões já estabilizadas, sob pena de violação da coisa julgada e da segurança jurídica.
Além disso, a responsabilidade pelo sustento dos filhos é um dever compartilhado entre os dois genitores, sendo essencial a avaliação da capacidade contributiva de ambos para que o encargo alimentar seja justo e proporcional. A fixação da pensão deve sempre observar critérios objetivos, evitando excessos que possam comprometer a subsistência do alimentante ou onerar de maneira desproporcional qualquer das partes.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ARAKEN, Assis de. Breve contribuição ao estudo da coisa julgada nas ações de alimentos. AJURIS.
CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 3ª ed., RT, 1998.
CAMILLO. Carlos Eduardo Nicoletti. In: Comentários ao Código Civil. Revista dos Tribunais.
DIAS, Maria Berenice. Alimentos aos Bocados. Revista dos Tribunais, 2013.
ROSENVALD, Nelson e; FARIA, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil Famílias. 4ª ed. Ed jusPodivm.
TEPEDINO, Gustavo e; TEXEIRA, Ana Carolina Brochado. Fundamentos do Direito Civil: Direito de Família. Vol.: 06. Editora Forense, 2020.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.
[1] Aluna Especial do programa de Doutorado da Universidade de São Paulo (USP). Mestra em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro da Comissão de Família e Sucessões da OAB Campinas. Advogada no Vaiano Advogados.
[2] Mestranda em Direito Empresarial na Fundação Getúlio Vargas (FGV). MBA – Direito da Economia e da Empresa, Fundação Getúlio Vargas (FGV). Membro do Grupo de Estudos de Empresas Familiares da Fundação Getúlio Vargas – DIREITO SP (GEEF – FGV – Direito SP). Membro da Comissão de Estudos de Família e Sucessões do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Sócia Fundadora do Vaiano Advogados.
[3] ROSENVALD, Nelson e; FARIA, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil Famílias. 4ª ed. Ed jusPodivm, p. 858.
[4] CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 3ª ed., RT, 1998, p. 981/982.
[5] DIAS, Maria Berenice. Alimentos aos Bocados. Revista dos Tribunais, 2013.
[6] REsp 1027930/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 16/03/2009.
[7] ARAKEN, Assis de. Breve contribuição ao estudo da coisa julgada nas ações de alimentos. AJURIS, p. 46/90.
[8] Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
§ 1º Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.
[9] CAMILLO. Carlos Eduardo Nicoletti. In: Comentários ao Código Civil. Revista dos Tribunais, p. 1.219.
[10] ROSENVALD, Nelson e; FARIA, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil Famílias. 4ª ed. Ed jusPodivm.
[11] TJ-SP - AC: 1009979-79.2018.8.26.0020, Relator: Maria do Carmo Honorio, Data de Julgamento: 14/04/2021, 3ª Câmara de Direito Privado.
[12] TJSP; Apelação Cível 1004999-49.2021.8.26.0161; Relator (a): Erickson Gavazza Marques; Órgão
Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro de Diadema - 2ª Vara de Família e Sucessões; Data do
Julgamento: 30/05/2023.
[13] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 369/370.
[14] TJ-DF - AGI: 20150020250796, Relator: Maria De Lourdes Abreu, Data de Julgamento: 09/12/2015, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: 25/01/2016.
[15] TJ-SP; Agravo de Instrumento 2268888-71.2021.8.26.0000; Relator: Luis Mario Galbetti; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de Guarulhos - 5ª. Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 27/04/2022.
[16] TEPEDINO, Gustavo e; TEXEIRA, Ana Carolina Brochado. Fundamentos do Direito Civil: Direito de Família. Vol.: 06. Editora Forense, 2020.
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