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O reconhecimento extrajudicial da paternidade
É escandaloso - para dizer o mínimo - o número de crianças que não tem o nome do pai no seu registro de nascimento. No ano de 2023, segundo dados da ARPEN - Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, 172,2 mil crianças foram registradas somente com o nome da mãe.1
Trata-se de grave problema social, uma vez que retira do filho o direito à própria identidade e sobrecarrega a mãe com todas as responsabilidades e os encargos parentais.
Por ocasião do nascimento, tanto o pai como a mãe podem promover o registro seu. Basta a apresentação da DNV - Declaração de Nascido Vivo, fornecida pelo hospital onde ocorreu o nascimento.
Para o pai proceder ao registro, além da DNV, basta apresentar um documento de identidade original da mãe, sem que lhe seja questionado se eles são casados ou vivem em união estável.
Quando o registro é levado a efeito pela mãe, é facultativa a identificação do genitor. Mesmo que no DNV conste o nome dele, tal não constitui prova ou presunção da paternidade. É necessário que ela apresente também a certidão de casamento. A maioria das serventias aceita a apresentação de documento que comprove a união estável. Outras, não.
Sem esta prova, o filho é registrado somente com o nome da parturiente, iniciando-se um moroso procedimento para o reconhecimento da paternidade, que é regulado por uma lei de 1992.2 Fruto de uma sociedade conservadora, cujo machismo estrutural confere excessivo protecionismo ao homem e desacredita no que diz a mulher, a lei chancela um absoluto desrespeito ao direito fundamental à identidade que deve ser assegurado ao filho quando de seu nascimento.
No momento do registro, indagada a mãe sobre quem é o genitor, se ela quiser, indica seu nome e os elementos necessários à sua localização. Com esta informação o expediente é encaminhado ao juiz, que deve ouvi-la novamente. Ou seja, não tem qualquer significado a palavra da mulher. Não é suficiente a indicação feita por ela ao oficial do registro.
O suposto genitor é convocado judicialmente, para que promova o registro do filho no excessivo prazo de 30 dias. O seu silêncio ou singela negativa não tem qualquer consequência. Caso ele não apareça ou se negue a promover o registro, nada acontece. Assim, não tem motivo algum para assumir a paternidade, que lhe impõe um leque de obrigações. Entre elas, pagar alimentos, havendo o risco de ser preso em caso de inadimplemento.
Partindo desta lógica - que de lógica nada tem - para o filho ser registrado é indispensável a confissão do pai.
Diante de sua inércia, o procedimento é enviado ao Ministério Público para promover a ação investigatória de paternidade. Como o promotor precisa de fundamentos para subsidiar a demanda, terá que localizar a mãe, que não se sabe onde se encontra. E o réu terá que ser citado, nada valendo a intimação que já tinha sido feita. Enquanto isso a criança fica sem direito ao nome paterno em seu registro de nascimento e, via de consequência, não há como ser incluído no seu plano de saúde.
Claro que todas estas delongas só vêm em benefício do indigitado pai que, ao não reconhecer o filho, delega as responsabilidades decorrentes do poder familiar para o futuro - às vezes bem distante -, no aguardo do desfecho de uma ação investigatória de paternidade que nem sempre é proposta.
Ora, a partir da possibilidade de se identificar o vínculo genético, com certeza absoluta - ou quase - via exame do DNA, o procedimento de investigação oficiosa da paternidade perdeu totalmente a razão de subsistir.
Atenta a esta realidade é que a comissão nomeada pelo Senado Federal para propor a atualização do Código Civil traz um novo procedimento (PLP 4/25, art. 1.609-A).
A necessidade de desjudicializar as demandas de jurisdição voluntária, impõe que o reconhecimento de filhos seja levado a efeito perante o registrador civil. Trata-se do exercício de direito potestativo, por dizer com a própria identidade, um dos princípios fundamentais do direito de personalidade. Direito que não admite qualquer controvérsia uma vez que somente pode ser infirmado mediante prova da inexistência da identidade biológica.
Em face disso, pela proposta apresentada, comparecendo a mãe ao Cartório do Registro Civil, ao indicar o nome e a localização de quem afirma ser o genitor, cabe ao oficial promover sua intimação pessoal para que compareça ao cartório e proceda ao registro ou se submeta ao exame de DNA, com a advertência de que, se não se manifestar, o filho será registrado em seu nome.
Caso o notificado não compareça no prazo estabelecido, ou se negue a registar o filho, bem como a fazer o exame de DNA, o oficial insere seu nome do registro de nascimento do filho. Ao receber a certidão, o pai é cientificado de que, a qualquer tempo, via ação judicial anulatória do registro ou negatória de paternidade, poderá buscar a exclusão da paternidade, mediante a prova da ausência do vínculo genético ou socioafetivo.
Ato contínuo, o expediente é encaminhado ao Ministério Público ou Defensoria Pública para que seja proposta ação de alimentos e regulamentação da convivência. E, com a prova registral da filiação, deve o juiz fixar alimentos provisórios.
Somente na hipótese de não ser localizado o genitor, o expediente é enviado ao Ministério Público para promover a ação de investigação da paternidade, cumulada com alimentos e regulamentação da convivência.
Este proceder se reveste de plena legalidade.
Como o filho nasceu de uma relação sexual que, geralmente, acontece a descoberto de testemunhas, não há como a mãe comprovar o fato constitutivo do direito alegado (CC, art. 373, I), o que impõe a inversão do ônus probatório (CC, art. 373, § 1º).
A partir dos marcadores genéticos, que têm elevados índices de certeza, a prova só é possível mediante a participação de todos. Até porque existe o dever de ambas as partes de colaborarem com a Justiça (CC, art. 378). Ou seja, cabe ao indigitado genitor comprovar o fato extintivo do direito reclamado: submetendo-se à testagem, mediante o uso de uma gota de saliva ou um fio de cabelo (CC, art. 373, I).
Porém, a realização dessa prova apresenta dupla ordem de dificuldade. Não há como impor ao demandado que se submeta ao exame. Ele não pode ser "conduzido sob vara" para a coleta de material. Sua negativa é respeitada, sob a equivocada justificativa de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si. Direito ao silêncio que tem guarida somente na esfera penal (CPP, art. 186).
O fato é que, ao se recusar a fazer o exame - ônus que lhe compete -, o réu abre mão do dever de comprovar a inexistência do direito do autor. Não conseguindo ilidir a presunção que milita contra ele, sua resistência é suficiente para ser reconhecida a paternidade. Mesmo que inexistam provas outras, sua omissão, por si só, justifica o acolhimento do pedido, sob pena de deixar de se reconhecer que o direito à identidade é uma questão de ordem pública.
O Código Civil nada mais exige além da omissão do investigado. Quem se nega a submeter-se a exame médico, não pode ser aproveitar de sua recusa. Postura que supre a prova que pretendia produzir (CC, art. 232).
No entanto, súmula do STJ diz que a recusa induz somente à presunção juris tantum de paternidade.3 Ou seja, atribui ao investigante o ônus de trazer outras provas da existência liame biológico, fato de difícil comprovação em face as circunstâncias em que acontece uma concepção. Do mesmo modo, não há como o investigado fazer uma prova negativa, a ponto de ser considerada prova diabólica. Até porque, não podem ser feitas referências à vida sexual da genitora - chamada de exceptio plurium concubentium - o que pode gerar, inclusive, a responsabilidade do advogado com imposição de pagamento por danos morais.
A outro giro, com o propósito de dobrar a resistência do réu, é indispensável reconhecer a possibilidade de adoção de medidas indutivas, coercitivas e mandamentais (CC, art. 139, IV). E a determinação do registro é medida mandamental que pode ser imposta. A tese foi acolhida pelo STJ e é objeto de repercussão geral.4
Surpreendentemente, a desesperada busca em descobrir a "verdade real", se confronta com as presunções de paternidade sacralizadas pela lei. O Código Civil confere estado de certeza ao vínculo paterno-filial pelo só fato de a concepção ter ocorrido no período em que os pais eram casados (CC, art. 1.597, I). Ao ponto de ser autorizado o registro do filho, com a simples apresentação da certidão de casamento. Sequer é questionado se o casal convive ou se estão separados de fato.
Apesar de a referência ser ao casamento, dita presunção alcança também a união estável. A igualdade das entidades familiares foi proclamada pelo STF,5 não se limitando apenas ao direito de concorrência no âmbito do Direito Sucessório. A decisão teve por fundamento a inconstitucionalidade de qualquer diferenciação ou hierarquização entre os dois institutos. Desse modo, a presunção de paternidade não diz com a condição de casados dos pais. Ou existe também na união estável ou não se aplica ao casamento. Enunciado das Jornadas de Prevenção e Solução Extrajudicial de Conflitos também reconhece a presunção, mas condiciona ao registro da união estável no Livro "E" do Cartório do Registro Civil.6 Enunciado do IBDFAM estende a presunção aos casais homoafetivos.7
Deste modo, entre o direito ao silêncio, à integridade do próprio corpo do pai, há que se fazer uma ponderação de interesses devendo prevalecer o direito fundamental à identidade do filho.
Indispensável que a lei traga meios eficazes para que a responsabilidade parental se torne efetiva.
1 Disponível aqui.
2 Lei 8.560/92.
3 STJ - Súmula 301: Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.
4 STJ - Tema 1.137: Definir se, com esteio no art. 139, IV, do CPC/15, é possível, ou não, o magistrado, observando-se a devida fundamentação, o contraditório e a proporcionalidade da medida, adotar, de modo subsidiário, meios executivos atípicos.
5 STF - Temas 498 e 809: É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/02, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/02.
6 JPSEC - Enunciado 7: A presunção de paternidade, prevista no art. 1.597 do Código Civil, aplica-se aos conviventes em união estável, desde que esta esteja previamente registrada no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais da Sede, ou, onde houver, no 1º Subdistrito da Comarca, nos termos do Provimento CNJ 37/14.
7 IBDFAM - Enunciado 54: A presunção de filiação prevista no art. 1.597, inciso V, do Código Civil, também se aplica aos casais homoafetivos.
Publicação oficial: link: https://www.migalhas.com.br/coluna/reforma-do-codigo-civil/425136/o-reconhecimento-extrajudicial-da-paternidade
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