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Herança jacente- vacante e os possíveis herdeiros no exterior
Patricia Novais Calmon
Advogada (OAB-ES, OAB-DF e OAB-SP). Professora em diversas instituições nacionais. Mestre em Direito. Autora de diversos livros e artigos jurídicos. Presidente da Comissão do Idoso do IBDFAM-ES.
Em um caso real, um cidadão que tinha domicílio no exterior faleceu, deixando um acervo significativo de bens situados no Brasil. Apesar de sua residência internacional, os bens permanecem no território brasileiro. Enquanto os herdeiros, também domiciliados no exterior, iniciam o procedimento de inventário em sua jurisdição, no Brasil tramita o procedimento de herança jacente e, eventualmente, de herança vacante, gerando um cenário complexo de conflito de jurisdição.
Essa fase de jacência se caracteriza pela proteção e administração do patrimônio de alguém que falece sem deixar herdeiros conhecidos, realizada por meio da nomeação de um curador, sem que isso implique a transferência automática dos bens ao Poder Público, o que somente ocorrerá por ocasião do reconhecimento da vacância. Por isso, “a herança jacente representa uma fase transitória do patrimônio do falecido, na qual de imediato serão adotadas providências objetivando a guarda e administração do patrimônio deixado (mediante arrecadação dos bens)”.[1]
O curador, designado para preservar os ativos, os mantem sob sua guarda até que seja possível entregar o acervo a um sucessor habilitado ou até que se declare a vacância da herança.
Conforme previsto no artigo 1.819 do Código Civil, "falecendo alguém sem deixar testamento nem herdeiro legítimo notoriamente conhecido, os bens da herança, depois de arrecadados, ficarão sob a guarda e administração de um curador, até a sua entrega ao sucessor devidamente habilitado ou à declaração de sua vacância". Assim, a fase de jacência visa assegurar a proteção dos bens enquanto se aguarda a habilitação dos sucessores.
Quando não houver habilitação de herdeiros ou se todos eles renunciarem, o procedimento evolui para a declaração de vacância, momento em que os bens passam definitivamente para o Poder Público, ainda que os herdeiros possam reivindicar seus direitos dentro do prazo de 5 anos (contados da abertura da sucessão no Código Civil vigente, mas com proposta de alteração no Projeto de Reforma do Código Civil, que passará a ter como termo inicial a publicação do primeiro edital para localização de possíveis herdeiros).
Pontua-se que o inventário poderá também tramitar perante autoridade estrangeira, inclusive podendo produzir efeitos no Brasil. Afinal, o STJ aplica o princípio da pluralidade de juízos sucessórios internacionais, ao indicar que “na hipótese de haver bens imóveis a inventariar situados, simultaneamente, aqui e no exterior, o Brasil adota o princípio da pluralidade dos juízos sucessórios. Quando existirem bens imóveis partilhados tanto no Brasil quanto em país estrangeiro, deve haver a pluralidade de juízos sucessórios, definindo-se, com isso, a lex rei sitae como a regente da sucessão a ser efetivada em cada um dos países onde situados os bens partilhados - de maneira que a lei brasileira não alcança o bem a ser inventariado e partilhado localizado no exterior”.[2]
No caso, salvo se houver alguma hipótese de jurisdição exclusiva da autoridade brasileira, em muito vinculada aos bens imóveis situados no Brasil (art. 23, I e II, do CPC/15), a homologação da sentença estrangeira de inventário é permitida.
Entretanto, um dilema adicional pode trazer repercussões no campo da sucessão internacional.
No procedimento da herança jacente, após a arrecadação dos bens e nomeação de um curador, passa-se à busca por potenciais herdeiros.
Haverá a publicação de editais e, tendo conhecimento da existência de sucessor ou de testamenteiro em lugar certo, este deverá ser citado, sem prejuízo do edital. Assim, o edital não exclui a necessidade de citação formal dos potenciais sucessores ou testamenteiros conhecidos.
Mas como se desenvolverá a situação quando os potenciais herdeiros se encontram domiciliados no exterior? Afinal, o CPC apenas menciona que quando o falecido tiver domicílio no exterior, deverá ocorrer a comunicação do fato à autoridade consular.
O CPC/15 dispõe que “quando o falecido for estrangeiro, será também comunicado o fato à autoridade consular” (art. 741, §2º). Embora o foco do dispositivo esteja no domicílio do falecido, é razoável interpretar que essa comunicação deve abranger também os casos em que os potenciais herdeiros residam no exterior.
Mas isso não é suficiente.
Embora a legislação preveja essa comunicação, até mesmo por ter o legislador se utilizado do vernáculo “também”, entende-se que é igualmente imprescindível que o herdeiro ou testamenteiro identificado no exterior sejam citados formalmente, por meio da carta rogatória, em conformidade com o art. 741, §1º, do CPC/15, que determina que "verificada a existência de sucessor ou de testamenteiro em lugar certo, far-se-á a sua citação, sem prejuízo do edital".
Essa medida é essencial pois, como visto, é plenamente possível que exista um inventário em curso no exterior, ao qual poderá, inclusive, ser homologado no Brasil e ter impactos significativos no campo da herança jacente/vacante.
A comunicação formal deste procedimento aos potenciais herdeiros domiciliados no exterior teria por condão viabilizar a habilitação desses sujeitos no bojo da ação de herança jacente e vacante. Não sendo assim, tais pessoas seriam privadas da propriedade e do direito à herança sem o devido processo legal, o que não condiz com o estado de coisas desejado pela sistemática jurídica brasileira.
Em síntese, a efetivação do procedimento de herança jacente e vacante em casos que envolvam falecidos ou herdeiros potenciais domiciliados no exterior deve incluir, de forma indispensável, a citação por meio de carta rogatória, além da comunicação à autoridade consular. Essa medida assegura a proteção dos direitos em âmbito transnacional, atendendo aos desafios de um mundo globalizado, onde a movimentação intensa de bens e pessoas exige mecanismos jurídicos eficientes e integrados.
[1] CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 86.
[2] STJ, AgInt no REsp n. 2.072.068/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3T, DJe de 17/11/2023.
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