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Mediação no campo sucessório
Pressupondo a finitude como certeza maior de quem vive, abrir espaço para alguma reflexão no campo sucessório é o que se pretende.
Lugar de incertezas e indefinições, paradoxalmente, este campo imaniza e suscita sensíveis questões, difíceis de lidar, e até mesmo por isso, tendo sido, ao longo dos tempos, objeto de diversas obras humanas, sedentas de significados e respostas à temática do eterno, da finitude e seus correlatos. A literatura de Shakespeare que o diga. Que o digam também, no campo das religiosidades e das artes, as magníficas catedrais erguidas em nome do mesmo tema humano.
O Direito, também desde tempos imemoriais, busca dar continência e criar lugares de acolhimento para os dramas sucessórios, na busca de os simbolizar, apaziguar e os endereçar, em uma clave de justo possível, para dar a cada um “o que é de César”. Enfim, a contínua busca de ajustar e fazer caber, para se poder, em alguma medida, seguir a adiante a marcha civilizatória.
Estreitamente ligado à noção de poder, o Direito equilibra-se em uma gramática de meio garantidor do jogo democrático, dado ser este o campo que os séculos nos têm mostrado como o mais eficaz antídoto à guerra do “todos contra todos”. Pelo (bom)uso palavra, pelo discurso jurídico tem-se a oportunidade de amarrar o ódio e a violência, evitar-se a guerra, buscar-se algum equilíbrio na convivência humana.
Sabe-se que no hiato reside um potencial desorganizador do status quo, dada a inerente zona de indefinição por ele representada. Há vácuo.
O campo da sucessão representa esse intervalo imposto pela finitude humana e das coisas, em uma noção de ciclo vital, impondo a pergunta: “e agora José?”
Pois bem. O espaço deixado por aquele a ser sucedido, promoverá e será lugar de instabilidade (por vezes já latente, sabe-se), dando oportunidade para alguma desordem. Movimentação de peças no tabuleiro familiar. Nas empresas familiares, por igual e por fortes conhecidas razões, a sucessão em postos de controle põe em movimento a dinâmica similar. A cadeira está vazia.
O campo sucessório atualiza (des)afetos. A abertura de espaços antes ocupados, põe em marcha sentimentos antes guardados à espera da “melhor hora”.
Por vocação, o conflito está sempre à espera de uma brecha por onde passar. Alimenta-se, com oportunismo parasitário, desses momentos de indefinições próprios da vida humana. O impasse é seu irmão gêmeo. Escondem-se, ambos, atrás da porta da sala de jantar mirando pela fechadura e aguardando o momento do bote. Às vezes pegam as pessoas da sala de jantar desprevenidas, “ocupadas em nascer e morrer” – já se cantou.
O campo jurídico, então, se volta ao conflito e ao impasse na busca de reorganização da nova cena. A lei dará os parâmetros e balizas que serão ou não respeitados pelos atores em palco nesse teatro da vida.
A regência é função obrigatória. Não basta a partitura da lei, da Constituição Federal ao Código Civil. A regra escrita aguarda uma voz de comando e direção, a reordenar os espaços ora em transformação e carentes de ressignificações.
Falar em mediação é falar em função mediadora, sobretudo. Em meio adequado de resolução (transformação) de conflito. Em um mundo hiper tecnológico e de inteligência artificial em franca expansão sobre quase todos os quadrantes da atividade humana, a função de reger interesses e direitos conflitantes, crê-se ainda, é essencialmente humana. Colocar em movimento e fazer operar os elementos em conflito é nobre função mediadora, visando transformar impasses.
Tal função está inserida e se dá em uma linguagem dita ternária – vinda do número três -, própria daquilo que se espera do terceiro milênio e do século XXI. Nesta gramática, o lugar de terceiro-outro haverá de estar em destaque, em privilégio aos códigos binários, de bem/mal, culpado/inocente, autor/réu, sob pena de se escapar pelos dedos as possibilidades de a sociedade dar alguma continência a seus conflitos cada dia mais complexos. A “escutatória” do mediador haverá de prevalecer, em boa medida, sobre a “oratória” alienante dos “donos da razão”, sob o risco de encapsulamentos já agora vistos e fonte de várias ordens de sofrimento humano.
A lei federal 13.140/2015 regulamentou a mediação extrajudicial em solo brasileiro, tendo ela sido bem recepcionada pelo Código de Processo Civil (2015), estimulando e criando ambiente fértil para o desenvolvimento e disseminação dessa linguagem ternária, falada em ambiente em que se busca mediar interesses antagônicos e se escapar dos impasses conflitivos paralisantes.
Saberes interdisciplinares formam as raízes e o substrato da mediação, também dita “mediação interdisciplinar”. Da psicanálise, da psicologia, da sociologia, da antropologia, da economia, e outros, migram conhecimentos para a cena mediada, a compor o seu campo, no qual podem e devem emergir pactos de entendimentos aptos a colocar em movimento aquilo que o conflito fossiliza.
A vocação da mediação, na figura do mediador, é tratar dos impasses vindos de falecimentos ou de adoecimentos das pessoas em posição de liderança, sendo de inegável utilidade e deve se disseminar na sociedade, seja em âmbito das câmaras privadas em funcionamento, seja mesmo no Poder Judiciário. A busca pelo relativo, proposta maior da linguagem ternária da mediação, aposta na operação ativa da função de desdobrar a conflitiva imposta pelo evento morte ou pela incapacidade, criando espaço de abertura para que, onde havia demandas eclipsadas, surjam encaminhamentos criativos para a dissipação dos impasses e o surgimento de outros níveis de consciência acerca do que está de fato em jogo.
A título de exemplo, evoluir em um consenso que possa desaguar numa partilha consensual de bens herdados, ou mesmo (juris)construir um planejamento patrimonial sucessório, em verdadeira partilha em vida, com o envolvimento dos formadores/mantenedores do patrimônio e seus descendentes, é função da mediação, que poderá colocar em modo dinâmico as demandas ocultas (às vezes nem tanto) daquelas pessoas “ocupadas da sala de jantar”, transformando-as possivelmente em documentos de resultado prático e validados juridicamente, conferindo algum grau de conforto e segurança a todos os seres de passagem que somos.
Há muito disso tudo nas estantes dos juízes e nas mesas dos advogados. Situações conflitivas malcuidadas, mal olhadas, escanteadas por inúmeros motivos, dentre eles os de falta de “espírito da mediação”, acabam por desaguar no Poder Judiciário, onde, de novo, terão pouca chance de ressignificação quanto aos seus motivos causadores e repetidores. A lei que processualmente será aplicada tem mais de geral indistinção do que de singularidade caso a caso.
Ao contrário, a mediação se dá no singular. Na singularidade daquele conflito cuidado, e o importante, distante do viés defensivo da imputação (ao outro) de culpabilidade, o qual será posto em suspenso pela propositiva linguagem ternária referida, dando lugar ao viés da responsabilidade pela decisão tomada, pela gramática da implicação dos sujeitos em mediação. O resultado, seja ele qual for, terá as digitais dos comediados sobretudo, ao invés das mãos do Estado-Juiz-Imparcial que pouca chance terá de saber mais daquelas pessoas em conflito.
Enfim, mediar no campo sucessório é sobretudo firmar um compromisso ético para com a Vida e não com a morte, pelo incrível que possa parecer!
Fábio Botelho Egas Teixeira de Andrade, é advogado.
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