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Abuso sexual: Ação e Reação
O crime de abuso sexual contra a criança é odioso sob todos os aspectos, especialmente quando cometido dentro do próprio lar (como acontece na maioria das vezes) e nem sempre tem merecido o repúdio da sociedade, seja no particular, seja através de suas instâncias representativas.
Esse tipo de crime, tenha ele, em qual dosagem for, o seu ingrediente patológico, tão antigo quanto o próprio homem, com seus desvios inescrutáveis - e nem por isso menos culpáveis e puníveis - deveria ser hoje uma excrescência quase residual no avanço da civilização, sob os aspectos fundamentais da moral e da ética. Ocorre o contrário, contradizendo, aliás, os mais elementares preceitos da cultura moderna, ou como preferem alguns, pós-moderna e ultrapassando até mesmo o que deveria pertencer ao terreno da ficção em suas incursões na sordidez humana: está em plena e febril atividade no mundo atual o que os corações mais cândidos ou singelos devem resistir a acreditar como real - um movimento com nome e digital: o "backlash".
Trata-se da mobilização de recursos humanos e financeiros com o objetivo de desacreditar as vítimas de violência intrafamiliar, seus terapeutas, quem quer que tente proteger as vítimas, e, sobretudo, elas próprias, as crianças abusadas, assimo como seus advogados e peritos. Não estamos diante de um fenômeno localizado, transitório e frágil. Muito ao contrário. E é contra ele que os cidadãos de todos os continentes, não se excluindo obviamente os brasileiros, devem se mobilizar antes que esse trabalho deletério contamine defintivamente o ser humano de amanhã.
O "backlash" surgiu na década de 80 no Canadá, Estados Unidos e Inglaterra. Na Argentina obteve um maior impulso a partir do ano 2000, por iniciativa do advogado e ex-juiz Eduardo Cárdenas, ao denunciar em um periódico jurídico - La Ley - "uma verdadeira indústria de denúncias de abuso sexual" em nome de uma suposta "defesa da unidade familiar". Com forte influência nos Tribunais argentinos, o referido advogado fez graves acusações a colegas e especialistas, atacando também a credibilidade do trabalho desenvolvido por instituições públicas. Diante deste movimento, segundo Virginia Berlinerblau "disfarçado de boas intenções", foi encaminhado importante documento à Subsecretaria de Direitos Humanos daquele país assinado por uma centena de profissionais de instituições públicas e privadas, advertindo para uma "escalada que põe obstáculos ao processo de visualização da violência doméstica".
Nesta mesma linha de orientação, também no Brasil, um grupo de advogados e especialistas passou a atuar, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro; eles se utilizam de questionáveis mecanismos para desmontar os serviços criados com o objetivo de apurar e atender situações de abuso e violência intrafamiliar, buscando invalidar as denúncias, invertendo o sentido da conduta abusiva e atribuindo culpa a quem denuncia ou protege a vítima. Magistrados e Promotores, acusados de "parcialidade", e profissionais responsáveis (advogados, psicólogos, assistentes sociais e médicos) têm sido denunciados em seus órgãos de classe visando intimidá-los ou impedi-los de atuar em situações de abuso sexual.
Tais considerações não devem ameaçar as iniciativas de manutenção e consolidação de um "trabalho em rede" que integre os vários equipamentos sociais. Essa integração não pode ser interpretada como um conluio entre profissionais que investem sua atuação na apuração da verdade e na proteção das vítimas.
O papel da polícia é importante na medida em que existam equipes especializadas em entrevistas de revelação, sobretudo com jovens e crianças e as respectivas famílias. O desenvolvimento de programas permanentes especializados multidisciplinares deve abranger a formação jurídica e técnica relacionada com o abuso sexual.
A baixa efetividade dos meios probatórios tem acarretado a impunidade de suspeitos. Em geral, a vítima é a única testemunha e as evidências físicas de abuso sexual existem apenas em uma pequena porcentagem de casos. Esses fatores atropelam as investigações em todos os seus níveis - desde a sua denúncia até o julgamento.
Não é raro e representa uma experiência freqüentemente traumática proceder-se a uma "acareação" entre a criança e o acusado, sobretudo quando este é um membro da família. Nesses casos, a criança pode sentir uma culpa adicional caso ele seja condenado. Sentimentos conflitantes para com o acusado são, em geral, uma causa significante do trauma experimentado pela criança abusada sexualmente.
Diante da freqüente dificuldade de revelação do abuso, sobretudo no Judiciário, destaque-se a iniciativa do Tribunal do Rio Grande do Sul ao implantar um sistema identificado como "Depoimento sem danos" por iniciativa da Desembargadora Maria Berenice Dias. O depoimento é acompanhado por vídeo, na sala de audiência, pelo juiz, pelo representante do Ministério Público, pelo réu e seu defensor, que dirigem as perguntas, por meio de uma escuta, a quem está ouvindo a vítima e insere o questionamento durante a conversa. O DVD com o depoimento é anexado ao processo.
Dentre os "mitos e realidades" que envolvem esse tipo de violência devemos distinguir situações controversas que devem merecer atenção dos especialistas e do Sistema de Justiça: os crimes são praticados em todos os níveis socioeconômicos, religiosos e étnicos. A maioria das vezes são pessoas aparentemente normais e queridas pelas crianças ou adolescentes. A maioria dos agressores é heterossexual e mantém relações sexuais com adultos; pessoas estranhas são responsáveis por pequeno percentual dos casos registrados; diante da afirmação comum de que a criança que é abusada mente e inventa, documento oficial de orientação aos professores afirma que "apenas 6% dos casos são fictícios e, nessas situações, trata-se, em geral, de crianças maiores que objetivam alguma vantagem".
Uma atuação interinstitucional é necessária. Devem ser priorizados a promoção, apoio e estímulo a programas de capacitação de recursos humanos, aplicáveis à função de agentes governamentais e não governamentais, que trabalhem especificamente com crianças e adolescentes, sempre com vistas à atuação multidisciplinar.
Tânia da Silva Pereira é presidente da Comissão da Infância e Juventude do IBDFAM. |
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