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Alimentos internacionais e a jurisdição competente
Patricia Novais Calmon
Advogada (OAB-ES, OAB-SP e OAB-DF). Professora em diversas instituições nacionais. Mestre em Direito. Autora de diversos livros, incluindo “Direito de Família Internacional”. Presidente da Comissão do Idoso do IBDFAM-ES.
Resumo: O presente artigo visa analisar a jurisdição internacional nos casos de alimentos internacionais, com base na Convenção Interamericana sobre Obrigação Alimentar e na Convenção da Haia de 2007, que trazem critérios distintivos a respeito da jurisdição competente em caso de fixação ou majoração e, por outro lado, sobre a redução ou exoneração. Além disso, aborda-se a possibilidade de flexibilização das regras, sobretudo em favor do credor e a influência da mobilidade do foro.
Palavras-chave: Alimentos internacionais; jurisdição internacional; Convenção Interamericana sobre Alimentos; Convenção da Haia de 2007; competência concorrente; competência exclusiva.
É indiscutível que a regulamentação dos alimentos em contexto internacional é permeada de complexidades, afinal, quando o credor e o devedor de alimentos residem e estão submetidos a jurisdições distintas uma série de problemáticas entram em cena. As dificuldades são das mais distintas ordens, tais como a ausência de conhecimento das regras normativas daquele outro país, a dificuldade financeira (afinal, quem busca alimentos precisa de tais valores para sobrevivência), bem como a diferença linguística são alguns exemplos que podem trazer dificuldades
Diante disso, houve a criação de Convenções Internacionais sobre alimentos e que buscam amenizar tantas dificuldades no acesso aos alimentos de pessoas que se encontram em outro país.
Ao longo do tempo, houve a aprovação de três convenções internacionais importantes sobre alimentos: a primeira, denominada de Convenção da ONU de Nova York, promulgada no Brasil em 1965; a segunda, cunhada de Convenção Interamericana sobre obrigação alimentar, da OEA, promulgada em 1997 e; a terceira, nominada de Convenção da Haia sobre a Cobrança Internacional de Alimentos para crianças e outros membros da família e seu Protocolo adicional, promulgada em 2017.
Tanto a Convenção de Nova York quanto a Convenção da Haia trazem um esquema de cooperação jurídico internacional relevantíssimo, com utilização de autoridades centrais que podem facilitar o acesso aos alimentos internacionais.
Por outro lado, a Convenção Interamericana teve um papel relevante no estabelecimento de regramentos de direito material uniforme aos países, esquematizando, ainda, normas sobre jurisdição internacional para pleitos de alimentos internacionais.
O regramento sobre jurisdição internacional da Convenção Interamericana foi replicado na Convenção da Haia, sendo que esta ainda aprimorou a regulamentação sobre o tema.
De acordo com a Convenção Interamericana, haverá uma distinção entre a jurisdição internacional competente a depender do requerimento: se houver necessidade de se fixar ou majorar alimentos ou, por outro lado, quando houver pretensão de reduzir ou exonerar.
Quanto a fixação e majoração de alimentos, o artigo 7º da Convenção Interamericana prescreve um sistema de jurisdição concorrente, podendo a ação ser proposta e julgada tanto no país de domicílio do credor ou do devedor quanto no local em que o devedor tiver vínculos pessoais, tais como a posse de bens, recebimento de renda ou obtenção de benefícios econômicos.
Ao contrário da fixação e majoração, a redução ou exoneração dos alimentos está submetida a uma regra de competência exclusiva.
É o que consta no artigo 9º da Convenção Interamericana, ao dispor que a ação deve ser promovida no país em que originariamente houve a fixação dos alimentos, não admitindo a escolha de outros foros pelo alimentante que busca se exonerar do dever de pagar.
Nota-se claramente que a regra é mais favorável ao credor de alimentos e, consequentemente, mais restritiva para o devedor de alimentos.
Este dispositivo protege o alimentando de eventuais estratégias processuais abusivas do alimentante, que, escolhendo a jurisdição mais favorável, buscasse a redução ou a extinção da sua obrigação. Com isso, o alimentante não pode modificar unilateralmente sua obrigação em jurisdição diversa. Essa regra proíbe que o devedor tente alterar a decisão em uma jurisdição que possa lhe ser mais favorável, em detrimento da decisão originária que concedeu alimentos.
No ordenamento jurídico brasileiro, o CPC/15 classifica as ações de alimentos como matéria de jurisdição concorrente, conforme disposto no artigo 22, I, e não como jurisdição exclusiva, que estão catalogadas no artigo 23. No entanto, por força do artigo 13 do CPC/15, há uma primazia das regras estabelecidas em tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil, em detrimento da normatização interna.
Por isso, no contexto das obrigações alimentares, as Convenções promulgadas pelo Brasil, como a Convenção Interamericana e a Convenção da Haia sobre alimentos, estabelecem diretrizes claras sobre a jurisdição competente que devem ser aplicadas, de maneira preponderante ao próprio CPC/15, quando se estiver diante de pedidos de redução ou exoneração dos alimentos.
Como visto, nessas normativas internacionais, há a expressa determinação de que, quando se tratar de ação visando à redução ou exoneração da pensão alimentícia, a competência será exclusiva do juízo que originalmente fixou os alimentos.
Isso significa que o alimentante não poderá propor ação em outro país para modificar ou extinguir a obrigação alimentar, devendo recorrer exclusivamente à autoridade que proferiu a decisão inicial.
Assim, apesar de o CPC tratar a matéria sob a perspectiva da jurisdição concorrente, a prevalência das convenções internacionais incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro impõe uma limitação, assegurando que a jurisdição para a revisão da obrigação alimentar permaneça com o juízo originário, reforçando a proteção ao credor de alimentos e garantindo maior segurança.
Mas deve-se ir além.
Como se mencionou, o sistema adotado pela Convenção Interamericana de proteção ao credor de alimentos permite a este uma maior liberdade na escolha do foro competente.
No entanto a rigidez da regra de competência exclusiva pode, eventualmente, trazer prejuízos ao alimentando. Basta pensar que o alimentando venha a se mudar de domicílio, passando a residir em país distinto daquele que tenha fixado os alimentos em seu favor. Seria uma grande injustiça pensar que uma regra que foi criada para beneficiar o credor de alimentos se voltasse contra ele, impondo que ele tivesse que responder ação de alimentos em local que ele não possui mais vínculos.
Por isso, a Convenção da Haia sobre alimentos internacionais aprimorou a regulamentação do tema, trazendo uma maior fluidez ao sistema e flexibilização da regra rígida sobre jurisdição internacional estabelecida pela Convenção Interamericana.
A partir de então, quando houver mudanças significativas na situação fática, haverá maior flexibilidade na interpretação da norma.
Isso porque a Convenção da Haia contempla uma mobilidade do foro em caso de alteração do domicílio do credor, possibilitando que a competência seja transferida para o novo país de residência do credor sempre que isso se mostrar necessário para a sua proteção (art. 18, §1º).
Todo o regramento a respeito da jurisdição internacional para processamento de ação de alimentos internacionais deverá ser temperado com o princípio da submissão, que impõe a uma parte, ao ser demandada em um país sem vínculos fortes com a relação jurídica controvertida, o dever de alegar a ausência de jurisdição (“competência” internacional) logo na primeira oportunidade.
Quanto aos alimentos, a submissão deverá ser temperada com a proteção e, talvez seja essa a razão do artigo 22 do CPC/15 ter estabelecido dois regramentos sobre a matéria: um específico para alimentos (inciso I) e outro voltado à aplicação do princípio da submissão (inciso II).
Imagine que o alimentante ingressou com ação de redução ou exoneração de alimentos em país distinto daquele que fixou os alimentos (o que equivale a uma jurisdição inicialmente inadequada, sob os auspícios da Convenção da Haia de alimentos internacionais, como visto). Inexiste dúvida de que o mero fato de ter que apresentar contestação neste processo que tramita em país distinto daquele em que houve a fixação dos alimentos pode ser extremamente complexo e penoso ao alimentando. A ele caberá se questionar se vale, ou não, comparecer neste processo que tramita em jurisdição inadequada, pois duas vias lhe são abertas.
Se ela decidir apresentar contestação, deverá se opor expressamente sobre aquela jurisdição, sob pena de aceitação (e, consequentemente, não poder se valer da regra protetiva consignada na Convenção – art. 18, §2º, “b”). Lado outro, se não apresentar contestação, por ocasião da tentativa de homologação da sentença estrangeira no país em que deva produzir efeitos, poderá, mais uma vez, alegar a inexistência de jurisdição internacional em matéria de alimentos e, consequentemente, aquela decisão proferida por autoridade de local distinto ao que fixou os alimentos não terá validade perante o país em que tenha que ter eficácia.
Nesse caso, certo que, se não houver apresentação de contestação, o processo poderá até seguir naquela outra jurisdição, inclusive com decisão que venha a transitar em julgado. Contudo, em nome da necessária proteção internacional, esta sentença estrangeira poderá não ser admitida e homologada nos países signatários da Convenção da Haia de alimentos internacionais. Isso significa que aquele que ingressou com ação em jurisdição inadequada corre o risco de desperdiçar tempo e recursos, pois a decisão obtida naquele local sem vínculos poderá não ter validade no local onde precisa produzir seus efeitos. Como consequência, ele continuará sendo devedor de alimentos e terá que propor uma nova demanda, agora no local adequado.
A escolha entre contestar ou aguardar a fase de homologação deve ser tomada com cautela, considerando as especificidades do caso e os possíveis desdobramentos jurídicos. A falta de compreensão das normas aplicáveis pode resultar na submissão inadvertida a uma jurisdição menos favorável ou na perda de oportunidades processuais estratégicas. Diante dessa complexidade, o conhecimento profundo da Convenção é fundamental para evitar prejuízos aos envolvidos e garantir que nenhum dos lados utilize estratégias processuais para fraudar as regras estabelecidas.
Ademais, o regramento internacional tem como foco a proteção especialmente de filhos em idade que necessitam de alimentos para a sua subsistência. Enquanto a Convenção de Nova York e a Convenção Interamericana podem ser invocadas por pessoas de até 18 anos (ou idade superior, se continuarem credores de alimentos já fixados), a Convenção da Haia ampliou para 21 anos (podendo ser restringidos por alguns Estados para 18 anos, o que não foi feito pelo Brasil). No entanto, outros sujeitos também podem ser beneficiados pelas convenções, especialmente os cônjuges.
Não obstante a Convenção da Haia de alimentos seja farta na previsão de acordos sobre alimentos (arts. 18, §2º, “a”, 19 e 30), inclusive com previsão de acordos para fins de escolha de procedimento específico em seu Protocolo Adicional (art. 7º), quando se estiver diante de maiores e capazes, tais como cônjuges, pensa-se que será plenamente possível o estabelecimento de acordos a respeito da escolha do foro pelos envolvidos, inclusive para evitar situações jurídicas inseguras e claudicantes. Este é, inclusive, o mandamento previsto no artigo 18, §2º, “a”, que fixa que a regra geral a respeito da jurisdição internacional não se aplicará quando as partes tiverem acordado por escrito a respeito da competência desse outro Estado Contratante, salvo em litígios sobre obrigações de prestar alimentos para crianças.
Embora o Brasil tenha feito reservas a respeito de algumas previsões convencionais relacionadas com acordos, não o fez quanto ao referido artigo, indicando, então, que maiores e capazes poderão, sim, escolher o foro, isto é, o país que irá processar e julgar ações sobre alimentos internacionais.
Em síntese, a regulamentação da jurisdição internacional para alimentos reflete um esforço contínuo de harmonização entre a proteção do credor e a segurança jurídica, buscando soluções que assegurem a efetividade da obrigação alimentar em um contexto globalizado.
A interação entre as Convenções Internacionais e o ordenamento jurídico brasileiro demonstra a necessidade de um olhar atento às particularidades de cada caso, garantindo que a rigidez normativa não acabe por gerar efeitos contrários à sua finalidade protetiva.
Nesse cenário, a flexibilização da jurisdição, aliada à mobilidade do foro, surgem como mecanismos fundamentais para adaptar o sistema às realidades dinâmicas das relações familiares transnacionais, preservando, acima de tudo, o direito à subsistência dos alimentandos.
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