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A Reversão de Doação à Municipalidade por Descumprimento de Encargo e a função da Ata Notarial como Título Registral
José Luiz Germano[1]
José Renato Nalini[2]
Thomas Nosch Gonçalves[3]
Introdução
Nos últimos anos, o ordenamento jurídico brasileiro tem dado passos significativos em direção à desjudicialização, privilegiando soluções extrajudiciais para alguns conflitos e procedimentos legais. Um exemplo notável dessa tendência é a crescente valorização da ata notarial como instrumento hábil para fins registrais. Dentro desse contexto, surge a questão: seria possível reverter uma doação feita à municipalidade por descumprimento de encargo, utilizando-se a ata notarial como título no registro de imóveis? Este artigo busca explorar essa possibilidade, analisando fundamentos legais, implicações práticas e principalmente os aspectos da segurança jurídica.
O Instituto da Doação com Encargo
A doação com encargo, prevista nos artigos 553 a 555 do Código Civil, condiciona a definitiva transferência de bens ao cumprimento de uma obrigação imposta pelo doador ao donatário. Na esfera pública, é comum que municípios recebam imóveis mediante a promessa de realizar determinada finalidade de interesse público, como construir escolas, hospitais ou espaços culturais. O descumprimento do encargo gera o direito de reversão do bem ao doador, conforme expressamente previsto no artigo 555.
Tradicionalmente, a reversão de doações dependia de procedimentos judiciais, o que tornava a solução morosa e custosa. Contudo, a evolução legislativa e a ampliação das competências dos tabeliães de notas abrem novas possibilidades para o tratamento extrajudicial dessas situações.
A Ata Notarial como Título Registral
Com a inclusão do artigo 7º-A na Lei 8.935/94, o que foi feito pela Lei nº 14.711/23, os tabeliães de notas passaram a exercer um papel mais ativo na certificação de fatos e na constituição de títulos registráveis. De fato, o § 2º do referido artigo dispõe que o tabelião pode lavrar atas notariais para certificar a ocorrência ou frustração de condições negociais, atribuindo-lhes eficácia como título para fins do artigo 221 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73).
Nesse cenário, a ata notarial emerge como ferramenta apta a constatar o descumprimento dos encargos impostos aos donatários, fornecendo elementos probatórios consubstanciados numa ata notarial, que por sua vez é agora título suficiente para a prática do ato da revogação da doação diretamente no registro de imóveis.
Caso Concreto: A Escritura Lavrada no 1º Tabelião de Notas de Santo André
Em um caso recente, o 1º Tabelião de Notas de Santo André protagonizou um avanço importante na aplicação prática dessa novidade legal. A escritura lavrada tratou da reversão de uma doação feita pela municipalidade a um particular, após o descumprimento do encargo estabelecido na escritura pública originária.
Neste caso, o imóvel havia sido transferido sob a condição de implementação de uma obra de interesse público. Comprovado, por meio de documentos técnicos e notificações formais, que o município não cumpriu sua obrigação, o tabelião Nosch lavrou uma ata notarial certificando o descumprimento.
A história envolvendo a doação do imóvel com classificação fiscal nº 08.090.024, realizado entre o Executivo Municipal de Santo André e a Associação de Construção Comunitária Santa Luzia, exemplifica um caso emblemático de doação com encargo e sua posterior reversão em razão do descumprimento das condições pactuadas.
Em 12 de julho de 2000, a Associação de Construção Comunitária Santa Luzia solicitou ao Executivo Municipal a abertura de um processo para a doação do referido imóvel, com base no Projeto de Lei nº 005/2000, convertido na Lei nº 8.011/2000, sancionada em 20 de abril de 2000. Essa legislação previa a doação com encargo para a construção de unidades habitacionais destinadas à população de baixa renda, com especificações rigorosas para o cumprimento de sua finalidade social.
O contrato de doação, conforme a legislação aprovada, incluía cláusulas resolutivas claras, como: 1. Utilização exclusiva do imóvel para construção de blocos habitacionais, com área mínima de 44 m² por unidade. 2. Alienação das unidades habitacionais a famílias com renda de 3 a 8 salários mínimos, residentes em Santo André por, no mínimo, três anos e sem outro imóvel na região metropolitana. 3. Construção de equipamentos comunitários e doação ao Poder Público Municipal, com um custo equivalente a 349.000 UFIR’s e 4. Prazo máximo de um ano para início da obra e conclusão em até dois anos.
Além disso, o contrato continha cláusula de reversão automática, estipulando que, em caso de descumprimento dos encargos, o imóvel retornaria à titularidade da municipalidade sem necessidade de formalidades adicionais.
Após a efetivação da doação, o imóvel foi objeto de diversas ações e alienações, com registro da incorporação de condomínio e alienações fiduciárias realizadas entre particulares e a Caixa Econômica Federal (CEF). No entanto, o empreendimento enfrentou graves problemas de execução, culminando no surgimento de 138 devedores fiduciantes e em ações judiciais que demonstraram o descumprimento dos encargos assumidos pela Associação.
Em 2017, uma ação civil coletiva (Processo nº 5001030-22.2017.4.03.2126) foi movida, resultando na determinação judicial de cancelamento das alienações fiduciárias e na retrocessão do imóvel para a municipalidade. Essa decisão baseou-se na falta de cumprimento das obrigações previstas no contrato original.
Manifestação Jurídica e Administrativa
A Procuradoria Patrimonial de Santo André destacou, em manifestação de setembro de 2022, que a escritura pública de doação já previa a cláusula de reversão automática. Assim, em conformidade com o artigo 250, inciso II, da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), recomendou-se a notificação da Associação para assinatura de um requerimento de reversão, com posterior encaminhamento ao cartório competente.
Paralelamente, pareceres emitidos pela Advocacia-Geral da União (AGU) reforçaram que:
A reversão do bem, como consequência da cláusula resolutiva expressa, constitui um direito potestativo da municipalidade, dispensando a necessidade de intervenção judicial. A expressão "opera de pleno direito", contida no artigo 474 do Código Civil, confere ao doador o poder de resolver unilateralmente o contrato.
A reversão pode ser efetivada com base em provas administrativas irrefutáveis, garantindo o contraditório e a ampla defesa.
Nesse contexto, com base no parecer da AGU, a municipalidade optou por instruir o processo de reversão por meio de uma ata notarial, instrumento revestido de fé pública e apto para certificar o descumprimento do encargo. Essa abordagem extrajudicial reflete a modernização dos procedimentos administrativos, em linha com a Lei nº 14.711/2023, que ampliou as competências dos tabeliães para constituírem títulos registráveis.
No caso em questão, o tabelião responsável poderá utilizar os elementos probatórios, incluindo decisões judiciais anteriores e manifestações técnicas, para lavrar uma ata notarial detalhada, garantindo segurança jurídica ao ato de reversão.
Posteriormente, a ata foi apresentada ao registro de imóveis competente, que ainda está em qualificação registral para prática da averbação do cancelamento da doação e a reversão da titularidade do bem ao doador, sem a necessidade de um processo judicial. Este ato pioneiro demonstrou não apenas a eficiência da ata notarial como título registral, mas também a capacidade dos tabeliães de promover segurança jurídica e celeridade no cumprimento da lei.
Por fim, o presente caso envolvendo a Associação de Construção Comunitária Santa Luzia exemplifica a aplicação prática de dispositivos legais que visam assegurar o cumprimento de finalidades sociais em doações com encargo. A utilização da ata notarial como instrumento para formalizar a reversão demonstra a evolução do direito notarial e registral brasileiro, promovendo celeridade, eficiência e segurança jurídica. Esse episódio reflete o compromisso do poder público e dos tabeliães com a preservação do patrimônio público e o atendimento ao interesse coletivo.
O Procedimento Prático
Para que a ata notarial seja utilizada nesse contexto, alguns requisitos devem ser observados:
1. Análise do Instrumento de Doação
Verificar se o contrato de doação contém cláusula resolutiva expressa, vinculando a permanência da doação ao cumprimento do encargo.
2. Reunião de Provas
Apresentar ao tabelião documentos que comprovem o inadimplemento, como notificações formais, pareceres técnicos ou relatórios de órgãos competentes.
3. Lavratura da Ata
O tabelião, com base nas provas apresentadas, lavra uma ata notarial certificando o descumprimento do encargo. Conforme o caso, uma visita ao local dos fatos é necessária.
4. Registro no Cartório de Imóveis
A ata notarial, revestida de fé pública, é prenotada no registro de imóveis competente, onde o cancelamento da doação é averbado na matrícula.
Vantagens e Segurança Jurídica
A utilização da ata notarial para reverter doações oferece vantagens evidentes, como celeridade, redução de custos e desjudicialização do procedimento. Ademais, a fé pública do tabelião confere à ata presunção de veracidade, garantindo segurança jurídica às partes envolvidas e ao próprio registrador de imóveis.
O caso do 1º Tabelião de Notas de Santo André destaca a eficácia dessa abordagem. Contudo, é fundamental que o tabelião aja com cautela, analisando criteriosamente os documentos apresentados e fundamentando adequadamente a certificação. Nos casos de dúvida ou conflito, a via judicial permanece como opção, até a regra, nos casos de litigiosidade.
Conclusão
A ata notarial, enquanto instrumento de desjudicialização, demonstra-se cada vez mais versátil e indispensável no direito notarial e registral brasileiro. Sua aplicação para reverter doações feitas à municipalidade por descumprimento de encargo representa mais um avanço rumo à eficiência e à modernização do sistema jurídico.
[1]Especialista em direito notarial e registral pela EPM, Desembargador aposentado (TJ/SP), atualmente é Oficial de Registro de Imóveis do 2º Ofício de Cianorte – Paraná.
[2]Doutor e Mestre em Direito pela USP, Desembargador aposentado, Ex-Corregedor Geral da Justiça, Ex-Presidente (TJ/SP) e Reitor da Uniregistral.
[3]Mestre em Direito pela USP, especialista em direito civil pela USP e em direito notarial e registral pela EPM, ex-advogado e 1º Tabelião de Notas de Santo André/SP.
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