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Retrospectiva 2024: Legislação em Direito de Família
Jones Figueirêdo Alves
1. Acerca da intervenção do Estado na vida familiar, com um estudo da legislação a respeito, Carolina Morais Garcia (SP), ofereceu importante análise sobre a contribuição legislativa indutora no Direito de Família. Refletiu, com pertinência ímpar:
“Com a intenção de proporcionar uma boa organização da sociedade e manter esta com um padrão já definido, o Estado intervém nas famílias através das leis, protegendo os indivíduos e impedindo conflitos de interesses.
A interferência do Estado na família é justificada pelo fato da família ser a sociedade em si, e ser parte integrante desta como socialização do ser humano. A família, ao mesmo tempo em que é privada, também é pública, pois faz parte fundamental da sociedade, tendo direitos à proteção da sociedade e do Estado” (01)
2. De efeito, 2024 ofereceu, no plano legislativo, leis que refletem a evolução e a adaptação do Direito de Família às novas configurações sociais e às necessidades de proteção das pessoas no contexto familiar.
2.1. A primeira delas, a Lei nº 14.826, de 20 de março de 2024, instituiu a parentalidade positiva e o direito ao brincar como estratégias de prevenção à violência contra crianças. Define a parentalidade positiva como um processo de criação baseado no respeito, acolhimento e não violência, atribuindo ao Estado, à família e à sociedade o dever de promover apoio emocional e educação não violenta para crianças de até 12 anos. (02)
A lei seguiu o estudo da UNICEF Brasil (Fundo das Nações Unidas para a Infância) que em março de 2023, editou a Cartilha “O Cuidado Integral e a Parentalidade Positiva na Primeira Infância”, com material conceitual sobre o modelo de cuidados. Incentiva-se o modelo “Nurturing Care” (Atenção e Cuidado Integral), para “apoiar a compreensão das ações necessárias para a promoção do desenvolvimento integral em todas as fases da infância, principalmente na primeira infância”. (03)
O documento tem seu uso “durante as formações sobre prevenção e resposta às violências na primeira infância, voltadas aos profissionais de saúde, educação infantil e assistência social participantes da iniciativa Unidade Amiga da Primeira Infância (Uapi)”. Destina-se, ainda, como “leitura complementar da formação online para os profissionais do Centro de Referência de Assistência Social (Cras), participantes do Selo UNICEF”.
Valiosos estudos contribuem para a dinâmica da importante lei transformadora, valendo referir:
(i) a Palestra “Parentalidade Positiva na Primeira Infância” promovida em 20.08.24, pela EJUG - Escola Judicial de Goiás, com o prof. Vital de Donet, detentor de experiência internacional em políticas públicas na área do direito das Crianças e da educação infantil (04);
(ii) as obras “Amar e brincar: Fundamentos esquecidos do humano”, do neurobiólogo chileno Humberto Maturana, criador da teoria da autopoiese e da biologia do conhecer, e Gerda V. Zoller; e “Parentalidade Consciente: Como o autoconhecimento nos ajuda a criar nossos filhos”, do neurocientista Daniel Siegel e da especialista em educação infantil Mary Hartzell (por todas).
(iii) Os instrumentos jurídicos do Conselho da Europa relativos às Políticas de Família e Direitos das Criança, com as Recomendações do Comitê de Ministros (2006) (05) e por decisivo,
(iv) O Relatório Final do Grupo de Trabalho sobre Parentalidade da Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância (FPPI) do Congresso Nacional, e do Familia Talks, apresentado em data de 16.12.2024, com importantes recomendações. Uma delas, a da criação de grupo de estudos para o estabelecimento de um Índice de Parentalidade no Brasil (06).
2.2. Seguiram-se as Leis nº 14.847, de 25 de abril, nº 14.857, de 21 de maio e nº 14.899, de 17 de junho. A primeira dispondo sobre o atendimento de mulheres vítimas de violência em ambiente privativo e individualizado nos serviços de saúde prestados no âmbito do Sistema Único de Saúde; a segunda
tendo por objetivo determinar o sigilo do nome da ofendida nos processos em que se apuram crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher e a terceira, cuidando sobre a elaboração e a implementação de plano de metas para o enfrentamento integrado da violência doméstica e familiar contra a mulher, da Rede Estadual de Enfrentamento da Violência contra a Mulher e da Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência.
Mais três diplomas normativos essenciais na urgente esfera de proteção à mulher. (07)
2.3. Segue-se a Lei nº 14.905, de 28 de junho, que alterou o Código Civil para dispor sobre atualização monetária e juros, que entre diversos tratos no tema, introduziu parágrafo único ao art. 389, prevendo que “na hipótese de o índice de atualização monetária não ter sido convencionado ou não estar previsto em lei específica, será aplicada a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), apurado e divulgado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou do índice que vier a substituí-lo.” (08)
A Lei de Alimentos (Lei 5.478/1968) não estabelece índice próprio de atualização monetária para as dívidas alimentares e diante da ausência de “índice oficial regularmente estabelecido”, como referido pelo art. 1.710 do Código Civil, cuido entender, a teor do art. 1.710 do Código Civil, pelo emprego do IPCA como índice de atualização. Não mais adequada a utilização do INPC, ao qual sempre se alinhou o STJ. Demais, atendendo o caráter especial da dívida de alimentos, como sustenta Flávio Tartuce (09) e os princípios de preservação do valor real da obrigação alimentar, tem-se por não prevalecer o entendimento firmado no REsp. nº 1.705.669-SP.
2.4. A Lei nº 14.950, de 02 de agosto, apresentou alteração legislativa ao Estatuto da Criança e do Adolescente, acrescentando parágrafo único ao seu artigo 12, no sentido de garantir à criança e ao adolescente o direito de visitação à mãe ou ao pai internados em instituição de saúde. (10)
2.5. Outra alteração legislativa foi trazida pela Lei nº 14.979, de 18 de setembro, com nova redação ao § 5º do artigo 50 do ECA, no sentido da criação e implemento de cadastros estaduais, distrital e nacional de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e de pessoas ou casais habilitados à adoção. Torna obrigatória para a autoridade judiciária a consulta aos referidos cadastros. De vigência imediata, sublinho oportuna a alteração como política judiciária aos mecanismos da adoção no país. (11)
2.6. No dia 9 de dezembro, a Lei nº 15.040/2024, o“Marco Legal dos Seguros”, estabeleceu normas para o seguro privado, revogando dispositivos relacionados à matéria no Código Civil e no Decreto-Lei nº 73/1966. Um marco regulatório do direito securitário no país. (12)
O jurista Conrado Paulino da Rosa dedicou-lhe importante estudo destacando tratar-se de “alteração legislativa importante e pertinente para profissionais atuantes em Direito de Família e Sucessões, haja vista que a contratação de seguros é uma das ferramentas de planejamento sucessório disponíveis para quem deseja proteger seus dependentes e organizar sua sucessão”.
Em percuciente análise apontou acertos e desacertos do novel diploma, criticando o tratamento discriminatório que o Marco Legal conferiu à união estável em face do casamento, em conferindo hierarquização que não deveria haver entre as famílias conjugais ou convivenciais; “especialmente após a apreciação dos Temas 498 e 809 pelo Supremo Tribunal Federal”. (13)
2.7. Ainda ao final deste ano, tivemos a Lei nº 15.046, de 17 de dezembro, que autoriza a criação do Cadastro Nacional de Animais Domésticos, relativo a animais que se destinam à companhia ou são criados como de estimação. (14) O modelo comum do cadastro a ser adotado será fornecido pela União aos Estados, Distrito Federal e aos Municípios e o cadastro, onde houver, deverá ser disponibilizado para acesso público pela rede mundial de computadores.
Curioso a lei referir que o cadastro deverá conter a identificação (CI e CPF) do “proprietário”, quando a terminologia seria a de “tutor” do animal, como tem sido amplamente adotada para enfatizar a responsabilidade e o cuidado necessários na relação com os animais.
Diversas leis municipais como a Lei n° 8.015/2023, do Rio de Janeiro, tornam obrigatória a inclusão dos animais de estimação no Registro Geral de Animais – RGA, do Município.
Impende que haja um diploma jurídico dos animais de estimação, à nível nacional, como sucede em Portugal.
O regime jurídico dos animais português oferece notável acervo normativo, a partir da Lei de Protecção aos Animais (Lei nº 92/1995, de 12 de setembro), suscitando regulação dos animais de companhia, dos animais potencialmente perigosos, daqueles com fins econômicos ou militares, os de caça, os destinados à investigação cientifica e, ainda, os cães-guia (Dec. Lei nº 118/1999, de 14 de abril).
Tratando do divórcio, o Código Civil português, com as alterações da Lei 8/2017, de 3 de março, dispõe em seu artigo 1.793º-A no sentido de que "os animais de companhia são confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal".
Na Suíça (2002), é previsto em Direito de Família (artigo 651º, al. a, Código Civil), nos casos de dissolução de casamento, de união de fato ou de partilha da herança, que "o tribunal pode adjudicar o animal em litígio à parte que garanta a sua melhor acomodação e tratamento". Norma de direito sucessório (artigo 482º, nº 4) confere um ônus de cuidar do animal, tornando-o beneficiário de uma disposição mortis causa.
Em nosso país, o Projeto de Lei nº 62/2019, da Câmara dos Deputados (15), remetido ao Senado em 19.12.2022, dispõe sobre a guarda dos animais de estimação nos casos de dissolução litigiosa da sociedade e do vínculo conjugal entre seus possuidores, limitando-se a essas circunstâncias. No caso, o bem-estar animal será motivo determinante de prevalência e definição para as hipóteses de sua guarda singular ou compartilhada.
3. Noutro giro, as legislações estaduais convergiram para otimizar o desempenho legislativo em favor das famílias. Significativo destacar:
3.1. Em Pernambuco, o Decreto nº 56.660, de 24.05.2024 (15) regulamentou o “Programa de Cuidados em Família Extensa”, instituído pela Lei nº 18.433, de 22.12.2023 (16) integrante da Política de Assistência Social do Estado de Pernambuco. Trata-se de importante programa destinado a crianças e adolescentes em situação de violação de direitos ou de risco social e pessoal, e em casos em que se fizer necessário o afastamento do convívio com seus genitores ou responsáveis, para a colocação da criança ou do adolescente em família extensa ou ampliada. Tem apresentado excelentes resultados e sua experiência poderia ser replicada em outros estados do país.
3.2. Em Sergipe, instituído pela Lei nº 9.375, de 24.01.24, o Dia Estadual de Valorização da Família, é celebrado aos 21 de outubro de cada ano, com a data inserida no Calendário Oficial de Eventos do Estado. Foi enfatizou que essa reflexão do dia “deve levar ao investimento em políticas públicas que promovam, entre tantas carências familiares, a igualdade de posição entre os cônjuges; assistência social à infância e juventude; resolução dos problemas do desemprego; acesso à educação; e condições dignas de moradia, gerando estruturas sociais que permitam às famílias marginalizadas atingirem condições mínimas de estabilidade”. De fato.
Anota-se que no plano nacional, em 21 de outubro, é celebrado o Dia Nacional de Valorização da Família, instituído pela Lei nº 12.647, de 17.05.2012.
3.3. Em Mato Grosso, a Lei nº 12.387 de 8 de janeiro de 2024, ofereceu benefícios para a agroindústria familiar, impulsionando o crescimento e a competitividade desse setor na economia estadual. Tamanha a sua importância, o governo em sua estrutura administrativa conta com uma Secretaria de Estado de Agricultura Familiar (SEAF). A propósito, a lei federal nº 14.828, de 20.03.2024, alterou a Lei nº 11.326, de 24.07.2006 (Lei da Agricultura Familiar), para ampliar o âmbito do planejamento e da execução das ações da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais.
Bem de ver que 2024 foi bastante proativo a incluir no ordenamento jurídico um novo álbum legal em acertada dinâmica do direito familista. Assim seja em 2025.
Referências:
- GARCIA, Carolina Morais. A Intervenção do Estado na Vida Familiar – Um estudo da legislação a respeito. Instituto de Biociências da Universidade Estadual paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Rio Claro (2011). Web: https://repositorio.unesp.br/server/api/core/bitstreams/bd487066-2cb0-4dd9-a1b5-a9d6af4cb26a/content
(02) Web: https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-14.826-de-20-de-marco-de-2024-549316819 A Lei foi oriunda do Projeto de Lei nº 2.861/2023, de autoria da deputada Laura Carneiro (RJ).
(03) Web: Altafim, E.R.P., Souza, M., Teixeira, L., Brum, D., Velho, C. O Cuidado Integral e a Parentalidade Positiva na Primeira Infância. Brasília, DF: Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Web: https://www.unicef.org/brazil/media/23611/file/o-cuidado-integral-e-a-parentalidade-positiva-na-primeira-infancia.pdf
(04) YouTube: https://www.youtube.com/live/KtKNM3VAT4M
(05) Web: https://rm.coe.int/politica-de-apoio-a-parentalidade-positiva/16806a45f1
(07) Web:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14847.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14899.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14857.htm
(08) Web: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14905.htm
(09) Web: TARTUCE, Flávio e all. Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudencia, 4ª ed., Gen/Forense, 2022, pp. 1508-1509.
(10) Web: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14950.htm
(11) Web: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14979.htm
(12) Web: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-15.040-de-9-de-dezembro-de-2024-600541511
(13) ROSA, Conrado Paulino da. Marco Legal dos Seguros e a injusta desigualdade entre as entidades familiares. Consultor Jurídico, 17.12.2024. Web: https://www.conjur.com.br/2024-dez-17/marco-legal-dos-seguros-e-a-injusta-desigualdade-entre-as-entidades-familiares/?utm_source=chatgpt.com
(14) Web: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-15.046-de-17-de-dezembro-de-2024-602570494
(15) ALEPE Legis.
Web: https://legis.alepe.pe.gov.br/texto.aspx?tiponorma=6&numero=56660&complemento=0&ano=2024&tipo=&url=
(16) ALEPE Legis.
Web: https://legis.alepe.pe.gov.br/texto.aspx?tiponorma=1&numero=18433&complemento=0&ano=2023&tipo=&url=
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Jones Figueirêdo Alves é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Advogado, Consultor e parecerista.
Artigo veiculado no Consultor Jurídico em 29.12.20424
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