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Consultoria psicojurídica: um assessoramento técnico e prático
Marina Kayser Boscardin[1]
Marta Velo Hofmeister[2]
Carlos Eduardo Lamas[3]
RESUMO: De forma concomitante ao processo jurídico, geralmente ocorre um processo emocional, constituído por sentimentos, pensamentos e comportamentos dos envolvidos. Por esse motivo é fundamental que sejam criadas estratégias que permitam a resolução dos aspectos emocionais inerentes ao contexto processual, e a forma mais adequada de fazê-lo é por meio de um assessoramento psicológico especializado. Nesse sentido, a consultoria psicojurídica visa uma resolução mais efetiva e apropriada das questões processuais. Para tanto, o objetivo é fornecer suporte técnico e prático ao advogado e à parte no que tange as questões emocionais suscitadas pelo processo. Assim, evita-se que os advogados acabem por atender uma demanda que ultrapassa os limites da sua atuação ou que as partes tenham a expectativa de resolver questões de cunho psicológico por meio do processo judicial.
Palavras-chave: Psicologia Jurídica. Psicologia Forense. Psicologia e Direito. Consultoria Psicojurídica.
1 INTRODUÇÃO
As primeiras atuações de psicólogos no âmbito judiciário no Brasil foram trabalhos dedicados à elaboração de perícias. O objetivo era elaborar pareceres técnico-científicos no campo da psicopatologia para subsidiar decisões judiciais. Atualmente, o cargo de psicólogo já está consolidado nos Tribunais de Justiça de todo o país – principalmente voltado a questões do direito da infância e da juventude e direito de família. Dessa forma, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) tem buscado delinear e estabelecer os rumos dessa área de atuação (BRITO, 2012).
Assim, a psicologia jurídica (ou forense) ainda é uma disciplina em processo de construção. À medida em que os conhecimentos a respeito dessa área avançam, criam-se conceitos, teorias, técnicas e novas práticas (TRINDADE, 2021). Observando que o direito e a psicologia dedicam sua atuação ao mesmo foco – o comportamento humano e seus desdobramentos –, cada vez mais se reconhece a importância de unir seus conhecimentos a partir de seus diferentes prismas.
Quando um indivíduo busca o ingresso de uma ação judicial, é fundamental que sejam identificados os motivos para tal. Dificilmente a motivação será unicamente jurídica, sem envolver quaisquer aspectos emocionais. Na maioria das vezes, junto à entrada do processo existe uma carga e expectativa emocional que merece atenção. Isso é mais comumente observado em processos de família e processos criminais.
A maioria dos processos judiciais é acompanhada por um processo psicológico que corresponde ao conjunto de sentimentos, pensamentos e comportamentos do(s) envolvido(s). Tal processo é de natureza interna e sua resolutividade depende da personalidade, dos mecanismos conscientes e principalmente inconscientes que são utilizados para a busca do equilíbrio, bem como das estratégias que cada pessoa aciona para lidar com a questão judicial.
Os processos jurídicos e psicológicos não são necessariamente paralelos, mas inter-relacionam-se. Do ponto de vista jurídico, o processo resolve os interesses que podem ser facilmente identificados, pois estarão nomeados ao longo dos autos processuais. Do ponto de vista psicológico, busca-se a solução para questões relativas a um conflito afetivo e emocional, o qual pode não ser tão facilmente identificável.
Afinal, ao contrário do dito popular jurídico que considera que “o que não está nos autos não está no mundo”, esconde-se atrás da cortina jurídica uma imensidão de significantes, que por vezes são intransponíveis aos olhos dos juristas.
Os processos jurídico e psicológico não coincidem nem na sua formulação nem na sua terminação. Assim sendo, o processo judicial pode se resolver com a sentença, porém o processo psicológico tende a seguir se não houver a elaboração dos aspectos emocionais, pois toda a demanda, se escutada para além do pedido literal, carreia uma verdade desconhecida por aquele que pede (NEVES, 2021), em que o judiciário não tem o poder e a capacidade de descortinar e remediar. Ao mesmo tempo, são processos que se influenciam e, assim, os conflitos psicológicos não elaborados podem interferir na resolução da lide processual, e vice-versa.
2 IMPORTÂNCIA DA CRIAÇÃO DE ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO
Uma vez identificada a existência de um processo psicológico atrelado ao processo judicial, é fundamental que sejam criadas estratégias que possibilitem a melhor resolução dos aspectos emocionais. Para isso, é de suma importância que haja por parte dos profissionais da psicologia uma universalização do conhecimento técnico-psicológico, visando uma justiça mais integrada.
Essa ideia vai ao encontro do que é explicitado no Código de Ética Profissional do Psicólogo, uma vez que sua construção buscou “contemplar a diversidade que configura o exercício da profissão e a crescente inserção do psicólogo em contextos institucionais e em equipes multiprofissionais”. Além disso, entre seus princípios fundamentais consta: trabalhar visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades; contribuir para promover a universalização do acesso da população às informações, ao conhecimento da ciência psicológica, aos serviços e aos padrões éticos da profissão.
Na esteira desse entendimento, o Código de Ética do Psicólogo determina que:
Toda profissa?o define-se a partir de um corpo de pra?ticas que busca atender demandas sociais, norteado por elevados padro?es te?cnicos e pela existe?ncia de normas e?ticas que garantam a adequada relac?a?o de cada profissional com seus pares e com a sociedade como um todo (p. 5).
A criação de estratégias psicológicas que atendam à demanda do processo psicológico atrelado ao processo judicial também se justifica a partir do Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa. Tal princípio decorre do art. 5º, LV, da Constituição Federal, e determina que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
O contraditório se refere ao direito que o interessado possui de tomar conhecimento das alegações da parte contrária e contra elas poder se contrapor, podendo, assim, influenciar no convencimento do julgador. A ampla defesa, por outro lado, confere ao cidadão o direito de alegar, podendo se valer de todos os meios e recursos juridicamente válidos, vedando, por conseguinte, o cerceamento do direito de defesa.
Nesse sentido, o assessoramento psicológico se faz fundamental para assegurar que seja feita uma análise técnica de aspectos psicológicos que estejam interferindo no melhor andamento do processo. Tal análise pode se dar por meio de estudo documental, argumentação teórica, avaliação psicológica da parte contratante e/ou verificação de questões emocionais identificadas pelo advogado.
Conforme o art. 4º do Decreto 53.464/64, dentre as funções do psicólogo está “assessorar, tecnicamente, órgãos e estabelecimentos pu?blicos, auta?rquicos, paraestatais, de economia mista e particulares”. Dessa forma, nota-se a demanda latente da regulamentação da atuação do psicólogo jurídico na figura de assessor ou consultor psicojurídico.
3 CONSULTORIA PSICOJURÍDICA
Considerando o já exposto acerca da incontestável existência do processo jurídico e emocional, bem como a importância da universalização do conhecimento psicológico para outros campos de atuação, a psicologia jurídica – posta a serviço dos fins do direito – pode contribuir para tornar a justiça mais sensível, ágil e eficaz, auxiliando a(s) parte(s) a enfrentar as incertezas e os problemas decorrentes do processo judicial.
Quando o advogado estiver perante uma gama de documentos e/ou indícios no comportamento do seu cliente que apontem para aspectos psicológicos que estejam dificultando o deslinde do processo, o psicólogo é o profissional indicado para fazer um levantamento dessas questões, oferecendo uma análise técnica e embasada em evidências. Dessa forma, de acordo com Gottlieb (2000) a consultoria consiste em fornecer ao advogado embasamentos técnicos e científicos de determinada área que subsidie sua atuação jurídica – ou até mesmo para informar aos advogados quanto à não aplicabilidade de seu serviço naquele determinado caso, visando o bem-estar dos envolvidos.
Os consultores serão contratados com o intuito de identificar se a sua posição no que diz respeito a aspectos psicológicos se sustenta tecnicamente (SHAPIRO, 2002). Assim, portanto, o consultor deve se familiarizar com todos os aspectos do caso para poder dar as orientações e subsídios mais abrangentes e úteis (HUSS, 2015).
Nesse sentido, a consultoria psicojurídica tem o propósito de auxiliar na resolução das questões psicológicas inerentes ao processo jurídico, acompanhando tanto as partes, como também o(s) advogados(s), a fim de possibilitar que as questões judiciais sejam resolvidas de forma mais efetiva e condizente.
Na prática, o consultor psicojurídico atuará por meio de atendimentos pontuais à(s) parte(s), sob uma perspectiva múltipla, humanizada e dinâmica, com o objetivo de compreender os sentimentos e aspectos psicológicos envolvidos na questão processual, identificando os comportamentos e expressões emocionais disfuncionais e elaborando um plano de ação a ser posto em prática. O objetivo será sempre focar em demandas advindas do processo, não extrapolando para aspectos que devem ser acompanhados em psicoterapia.
Nesse sentido, importante ressaltar que o trabalho do consultor psicojurídico em nada se confunde com o trabalho de psicoterapia. É indicado e importante, inclusive, que as partes estejam em acompanhamento psicoterápico e, caso não estejam e seja identificada a necessidade, o consultor deverá realizar os devidos encaminhamentos.
A atuação do consultor psicojurídico se dá durante o transcurso de processos judiciais e tem por principal objetivo verificar as questões emocionais suscitadas pelo processo, e que podem estar interferindo em seu andamento. Dessa forma, a consultoria não se trata de psicoterapia, uma vez que é focada somente nos aspectos emocionais referentes ao processo judicial e o contato com o cliente se dará de maneira objetiva, pontual e direcionada.
O psicoterapeuta e o consultor psicojurídico poderão desenvolver trabalhos complementares ao longo de um processo judicial. Além disso, em muitos casos, o segundo poderá ser uma ponte entre o primeiro e o advogado que atua no caso – assim, esses profissionais têm seu trabalho de uma forma integrada em prol do cliente/paciente. Busca-se possibilitar, desta forma, um trabalho efetivamente interdisciplinar.
A atuação do consultor psicojurídico pode se dar em diferentes âmbitos e em diferentes áreas. Em processos de família, por exemplo, é recorrente que as partes insistam por caminhos litigiosos, como mudança da modalidade de guarda, por exemplo, devido a uma dificuldade de elaboração do luto conjugal. Nesses casos, frequentemente inexiste por parte de um ou de ambos os genitores uma diferenciação adequada entre a conjugalidade e a parentalidade.
Já em processos criminais, pode haver dificuldade de elaboração dos supostos fatos e até mesmo uma não aceitação quanto a ser réu em um processo criminal – situação que pode carregar diversos estigmas e estereótipos. Tais questões podem ter forte impacto na saúde mental do acusado, prejudicando a colaboração com a própria defesa, por exemplo.
No âmbito criminal o consultor psicojurídico atuará buscando contribuir para a criação de estratégias de enfrentamento. Nesse sentido, o profissional auxiliará o réu a compreender e até mesmo a aceitar de forma mais assertiva a situação que está vivenciando, criando formas de lidar com as demandas processuais que colaborem com o prognóstico do próprio processo. Uma vez que o réu for capaz de elaborar de forma mais assertiva os eventos que o levaram até ali, terá também mais lucidez e clareza para transmitir sua verdade dos fatos – como em um depoimento, por exemplo.
Nestes espaços, os temas devem ser abordados para além do universo jurídico, sendo imprescindível que a ciência jurídica e os profissionais que a tenham como parâmetro levem também em consideração os influxos provenientes da psicologia. Logo, a atuação de psicólogos em consultoria será determinante na detecção de questões que extrapolam os autos processuais, de forma segura e científica, colaborando para que os atores destas cenas possam ultrapassar estas fases traumáticas de maneira mais consciente e menos dolorosa.
De forma paralela às intervenções com a parte, o consultor psicojurídico mantém contato direto com o advogado, informando sobre os aspectos psicológicos identificados, discutindo ideias e contribuindo para o desenvolvimento de uma estratégia psicojurídica eficaz. Além disso, o contato com o advogado visa minimizar os impactos dos aspectos emocionais do cliente, os quais muitas vezes acabam por interferir em seu trabalho.
A relação do advogado com o cliente é, antes de tudo, uma experiência relacional, exercendo uma atuação que extrapola as questões jurídicas, pois muitas vezes o que realmente lhe importa para entender a demanda objetiva são as questões subjetivas, aquilo que está nas entrelinhas do discurso jurídico.
Quanto mais variáveis ocultas (inconscientes), mais difícil se dá o enlace judicial. Quando o sujeito que busca o judiciário tem uma certa noção do sentimento que está embutido no processo que tramita no fórum, se torna mais fácil de trabalhar as questões jurídicas objeto do litígio. Porém, quando se está diante de um sujeito/parte fechado, que não admite nem mesmo conversar sobre suas emoções, a relação para com o advogado e os atores do judiciário (juízes, promotores, peritos) fica mais complicada.
Assim, a consultoria psicojurídica pode ser uma importante ferramenta para buscar que o sujeito que está inserido em um processo judicial perceba e ajude a entender este lado oculto, que prejudica por muitas vezes a si e o próprio andamento processual.
Outro ponto que se faz importante destacar são as emoções que envolve a relação do advogado com o cliente, que de forma aberta despejam seus sentimentos e desejos na mesa daquele que têm uma formação jurídica. A ideia do jurista sensível, atento à escuta, sem preconceitos ou julgamentos, tem seu limite técnico. Não raras vezes estes profissionais servem como instrumento de gozo do desejo inconsciente do seu cliente, interferindo, de maneira negativa, no processo judicial.
Barrar este gozo, atitude necessária do advogado, somente será possível, por vezes, com uma atuação interdisciplinar, com profissionais ligados à área da saúde, em especial os psicólogos, que poderão, utilizando de suas técnicas, alertar, conversar e instruir esse profissional para que consiga além de ajudar seu cliente, perfectibilizar sua função social que representa interesses públicos.
Já o psicólogo, ao atuar como consultor em um processo judicial, deve sempre realizar seu trabalho de acordo com o que estabelece o Código de Ética Profissional em relação ao sigilo inerente ao seu exercício. Ao expor as suas percepções com outros profissionais, compartilhará “somente informac?o?es relevantes para qualificar o servic?o prestado, resguardando o caráter confidencial das comunicac?o?es, assinalando a responsabilidade, de quem as receber, de preservar o sigilo”[4].
Nessa abordagem, psicólogo e advogado têm comunicação direta com o intuito de traçar um perfil psicodinâmico do cliente, abarcando aspectos jurídicos e emocionais. Assim, a intenção é formar uma espécie de “equipe” com o advogado e com outros profissionais, visando a compreensão integrada da situação.
A atuação, então, se dará por meio do contato com o cliente, com o advogado e com outros profissionais relevantes ao caso, assim como através da análise dos autos processuais. Dessa forma, o intuito será auxiliar o defensor com uma abordagem técnico-psicológica, a qual foge da sua alçada. Com isso, além de permitir uma melhor compreensão de aspectos psicológicos e emocionais, busca-se “diminuir a carga” que muitas vezes acomete os advogados.
O objetivo final da consultoria psicojurídica é favorecer a resolução de ambos os processos (judicial e emocional), evitando que estes se estendam por tempo indeterminado, gerando prolongamento das questões controvertidas e prejuízos desnecessários à(s) parte(s) envolvidas.
3.1 Diferenças da consultoria psicojurídica para outras modalidades de atuação do psicólogo
Assim como nos outros campos de atuação do psicólogo, no contexto jurídico existem diversas formas de desempenhar o trabalho. Por isso, é fundamental diferenciar a consultoria psicojurídica de outras modalidades de abordagem. Especificamente no âmbito jurídico, as principais formas de atuação conhecidas e reconhecidas são a perícia psicológica e a assistência técnica.
As perícias psicológicas são realizadas por psicólogos que exercem a função de peritos. De acordo com Barros, da Rosa e Brazil (2022), o perito é o profissional designado para auxiliar a justiça, que será demandado pelo juízo sempre que o fato da prova depender do conhecimento técnico e científico. O psicólogo perito deve atuar dentro do limite de suas atribuições e exercer sua função com isenção em relação às partes envolvidas.
Já o psicólogo assistente técnico é o profissional da psicologia que poderá ser contratado pela parte, e terá a função de fornecer subsídios técnicos à parte contratante no que diz respeito ao trabalho pericial. Dentro das atribuições do assistente técnico estão a elaboração de quesitos a serem respondidos pelo perito do juízo e formulação de parecer de análise do laudo pericial (FIORELLI, MANGINI, 2021).
O trabalho do perito e do assistente técnico tem por objetivo auxiliar na construção de uma prova técnica em um processo judicial. Quando o juiz identificar questões que estejam para além do seu conhecimento como operador do direito, ele solicitará tal prova para subsidiar suas decisões (ROVINSKI, 2020).
Outra forma de atuação do psicólogo no âmbito jurídico é dentro da chamada advocacia colaborativa. Nesse contexto, o psicólogo atuará junto ao advogado de forma extrajudicial, auxiliando as partes a chegarem a acordos sem a necessidade de ingressar com uma ação. A advocacia colaborativa segue o princípio da multidisciplinaridade, uma vez que entende que os operadores do direito muitas vezes não poderão solucionar conflitos de maneira isolada. Dessa forma, contam com profissionais de diversas áreas, a depender da demanda, sendo a psicologia uma delas (MAZIERO, 2018).
Para além da atuação do psicólogo no âmbito jurídico, é fundamental reforçar a diferença da consultoria psicojurídica e da psicoterapia. Isso porque, apesar de terem alguns pontos em comum, são modalidades que detêm diferenças importantes e por isso não podem ser confundidas.
A psicoterapia é uma abordagem com foco no psiquismo do ser humano, que busca o entendimento de pessoa como um todo, em um conceito de saúde geral (LUDWIG, 2007). Através de diferentes abordagens, técnicas e linhas teóricas, a psicoterapia tem por objetivo, essencialmente, o ajustamento psicossocial do indivíduo de forma integral, levando-o ao autoconhecimento e crescimento no sentido emocional, sem existir, necessariamente, um foco pré-estabelecido.
Aqui, cabe destacar que a psicoterapia é sempre indicada àqueles que estão passando por uma disputa judicial. O indivíduo em acompanhamento psicoterápico terá maiores chances de alinhar adequadamente suas expectativas em relação processo. Além disso, o psicólogo responsável pelo tratamento poderá ter contato direto com o consultor psicojurídico (uma vez autorizado pelo paciente), atuando de forma colaborativa.
Conforme a breve exposição acima, pode-se demonstrar que a consultoria psicojurídica trata de uma forma de atuação distinta das modalidades já existentes e reconhecidas pelo Conselho Federal de Psicologia.
3.2 Exemplos práticos de aplicabilidade da consultoria psicojurídica
Como forma de exemplificar de que forma a consultoria psicojurídica pode ser aplicada na prática, a seguir serão apresentadas breves vinhetas de casos[5]. O primeiro deles referente à área de família, e o segundo à área criminal.
Caso 1
Luiz era casado com Joana, e dessa união tiveram o filho Felipe, atualmente com 10 anos de idade. Pai e filho sempre foram bastante próximos, porém após a separação dos pais, Felipe passou a apresentar gradativo distanciamento e rechaço quanto à figura paterna, sendo diretamente influenciado pela genitora que não aceitava o fim do relacionamento conjugal.
Felipe passou a se recusar a ter qualquer tipo de contato com o pai, de forma gradativamente mais enfática. Esse rechaço fez com que Luiz entrasse em desespero e passasse a apresentar importantes alterações emocionais, incluindo ideação suicida.
A consultoria psicojurídica foi peça importante neste caso, uma vez que – além de realizar o trabalho técnico de análise documental – permitiu o acompanhamento direto das questões emocionais suscitadas pelo processo, e que estavam interferindo até mesmo na relação advogado-cliente. Além do contato das consultoras com o cliente e com o advogado, também foram realizados contatos com a psicoterapeuta de Luiz (com seu consentimento), a fim de integrar o atendimento. A intervenção realizada evitou que Luiz tomasse atitudes extremas, tais como a busca e apreensão da criança, a desistência do processo por exaustão psicológica ou até mesmo que atentasse contra a própria vida.
Caso 2
Miguel, um homem adulto, foi acusado de abusar sexualmente de um adolescente. O réu, que jamais tinha passado por quaisquer problemas judiciais, denotava dificuldade de aceitar a acusação e de buscar formas assertivas de lidar com a situação.
Frente ao inquérito policial e processo com diversos atravessamentos psicológicos e depoimentos, a consultoria psicojurídica auxiliou não apenas realizando uma avaliação psicológica de Miguel, mas também auxiliando, a partir de intervenções pontuais e focadas, a melhor elaborar os eventos e, dessa forma, facilitando a expressão mais assertiva da sua verdade e sua versão dos acontecimentos em depoimento.
Além disso, atuando de forma colaborativa com o advogado e através da análise técnica dos autos processuais foi possível perceber pontos como a consideração de hipótese única ao longo das investigações – o que prejudica e dificulta a ampla defesa e o contraditório.
3.3 Possíveis contribuições da consultoria psicojurídica
Considerando o exposto ao longo desse artigo, a consultoria psicojurídica pode ser benéfica e útil por auxiliar nos seguintes pontos:
- Ao buscar identificar quais os motivos não conscientes que levaram a(s) parte(s) a mover o processo inicial e trabalhando-os, diminui-se a chance de abertura de novos processos;
- Uma vez que cada profissional tem atribuições específicas de acordo com a sua formação, assessorar o trabalho do advogado, são reduzidas as chances de que este se veja obrigado a atender a uma demanda que não lhe compete (saúde mental e aspectos psicológicos) – formando, assim, uma equipe interdisciplinar;
- Fazer a interlocução com profissionais que atendem as partes (p.e. psicólogos/psiquiatras), permitindo o desenvolvimento de um trabalho integrado que melhor atenda às demandas do cliente;
- Identificar questões emocionais graves que podem surgir ao longo de um processo judicial (sintomas depressivos e de ansiedade e ideação suicida, por exemplo) e realizar os devidos encaminhamentos, como forma de contribuir para a minimização do sofrimento gerado às partes;
- Fornecer subsídio técnico-psicológico para manifestações do advogado ao longo do processo, colaborando com o aporte interdisciplinar.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um processo judicial, apesar de ter finalidade delineada e concreta, muitas vezes envolve indivíduos que tendem a criar expectativas que não podem ser atendidas pelo sistema de justiça. Além disso, a carga emocional advinda do processo, se não adequadamente identificada e atendida, poderá influenciar diretamente no deslinde do caso.
A função primordial do consultor psicojurídico será a de assessorar tecnicamente o trabalho do advogado. Para isso, deverá fazer uma análise técnica dos autos processuais, produzir documento baseado na ciência psicológica e/ou fazer atendimentos pontuais com o cliente, realizando intervenções focadas em demandas latentes advindas do processo judicial e realizando os devidos encaminhamentos, quando necessários.
Essa atuação segue ao que rege o trabalho do psicólogo em sua essência, descrito no Código de Ética Profissional do Psicólogo: atender a demandas sociais através de um corpo de práticas de elevados padrões técnicos, trabalhar visando promover saúde e contribuir para promover a universalização do acesso da população ao conhecimento da ciência psicológica.
O drama humano, certamente, não pode ser resolvido com a aplicação pura e simples da letra fria da lei, porque sempre remonta a uma disfunção de ordem existencial, avessa ao conhecimento jurídico e àquilo que os profissionais do direito, por aptidão, podem transpor nos processos judiciais (LEITE, 2018).
De forma interdisciplinar e colaborativa, a consultoria psicojurídica objetiva auxiliar e facilitar o atravessamento dos desafios emocionais e judiciais inerentes a disputas jurídicas, tanto em relação ao cliente quanto ao advogado. Tenta-se, assim, auxiliar a transformar um período essencialmente de crise e conflitos internos e externos em uma etapa o mais saudável possível.
ABSTRACT: Along with the legal process, an emotional process usually takes place, which consists in feelings, thoughts and behaviors of those involved. For this reason, it is essential that strategies are created, allowing the resolution of emotional aspects inherent to the procedural context, and the most appropriate way to do so is through specialized psychological support. A psychojuridical counseling aims at a more effective and appropriate resolution of procedural matters. The goal is to provide technical and practical support to the lawyer and to the party regarding emotional issues due to the process. Thus, it prevents lawyers from dealing with demands that exceed the limits of their professional activities or that the parties have the expectation of solving psychological issues through the judicial process.
Keywords: Legal Psychology. Forensic Psychology. Psychology and Law. Psychojuridical Counseling.
REFERÊNCIAS
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[1] Psicóloga (CRP 07/21107) graduada em Psicologia (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS). Mestre em Psicologia Cognitiva (Escola de Humanidades da PUCRS). E-mail: marinakboscardin@gmail.com
[2] Psicóloga (CRP 07/26955). Mestranda em Direito (Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - URFGS). E-mail: marta.hofmeister@hotmail.com
[3] Advogado (OAB/RS 73976). Presidente do Núcleo Pelotas/RS do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM -Seção RS. Membro do Conselho Subsecciaonal da OAB Pelotas/RS. Presidente da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB Subseção Pelotas/RS. Com formação em psicologia jurídica. E-mail: lamasadvocacia@outlook.com
[4] Art. 6º.
[5] Casos adaptados de eventos reais, sendo todos os nomes fictícios a fim de resguardar o caráter sigiloso.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM