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A perspectiva da paternidade socioafetiva
Ana Carolina Schmidt de Oliveira, Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC/Campinas) e UNIR, Espanha. Especialista em Dependência Química pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Especialista e Mestre em Psicologia Legal e Forense pela Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), Espanha. Mestranda em Psicologia Sanitária pela Universidad a Distancia de Madrid (UDIMA), Espanha.
Thaiéle Teixeira, Psicóloga inscrita no CRP/RS sob nº 07/39.939. Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Mestranda em Psicologia no grupo de pesquisa Avaliação e Intervenção no Ciclo Vital (AICV) na PUC/RS. Pós-graduanda em Psicologia Jurídica com ênfase em Perícia Psicológica no Instituto de Pós-Graduação e Graduação (IPOG). Atua nas áreas de Psicologia Clínica, como Psicoterapeuta, e Psicologia Jurídica, como Assistente Técnica e Consultora Psicojurídica na Vida Mental Perícias.
Elise Karam Trindade, Psicóloga inscrita no CRP/SP sob nº 06/205.826. Graduada em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Especializada em Técnicas Psicoterápicas Psicanalíticas com crianças e adolescentes pela Universidade de Coimbra (NUSIAF), Portugal. Diplomada em Estudos Avançados pela Universidade da Extremadura (DEA), Espanha. Doutoranda na área de Intervenção Psicológica, Saúde e Educação no Instituto Superior Miguel Torga, Portugal. Especialista em Psicologia Forense pelo Instituto de Medicina, Estudos e Desenvolvimento (IMED). Neuropsicóloga pelo Hospital Albert Einstein, São Paulo. Membro Fundadora da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica (SBPJ). Coordenadora da Equipe de Psicologia Jurídica da Vida Mental Perícias.
Hewdy Lobo Ribeiro, Psiquiatra Forense, da Infância e da Adolescência e Psicoterapeuta com titulações pela Associação Brasileira de Psiquiatria e regularmente inscrito no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP 114.681, RQEs 300.311, 300.314 e 300.313). Ex-Membro da Comissão de Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria. Ex-Médico Colaborador do ProMulher no Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo. Ex-Conselheiro no Conselho Penitenciário de São Paulo. Ex-Perito Psiquiatra no Tribunal de Justiça de São Paulo e Perito Convidado no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
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O desenvolvimento humano perpassa por diferentes etapas do ciclo vital, desde a infância, adolescência, adultez até o envelhecimento. Por isso, deve ser entendido como uma globalidade e que tem sido abordado a partir dos aspectos: físico-motor, intelectual, afetivo-emocional e social.
Com isso, desde o nascimento a criança passa por mudanças biológicas e psicológicas que permitem que ela desenvolva novas habilidades para interação com o ambiente.[1]
Os primeiros anos de vida são importantes para o desenvolvimento saudável da criança, devido à intensa atividade cerebral, que são fruto da interação entre as características biológicas, as experiências da criança com seu meio e a interação com seus cuidadores. Assim, considera-se que são os pais aqueles que passam maior parte do tempo com seus filhos, por isso, eles precisam estar atentos para essas etapas do ciclo vital.[2]
Nesse sentido, além dos pais, o acompanhamento de crianças e do processo de desenvolvimento deve ser realizado também pelos professores, os pediatras e os demais profissionais.
De acordo com Pfeifer e Sant´anna[3] são esperadas muitas habilidades para a criança desenvolver desde seu nascimento, dentre elas: sustentar a cabeça, o tronco, sentar-se sozinho, rolar, engatinhar, brincar de se esconder, reconhecer a voz do outro, andar, dentre outras esperadas ao longo da primeira infância. Com o tempo, as habilidades aumentam e se tornam mais robustas e presente em diferentes ocupações do dia a dia, tais como brincar, praticar atividades de vida diária e realizar tarefas escolares.
No entanto, além das habilidades esperadas que a criança desenvolva na infância, é fundamental que ela tenha autonomia e supervisão dos cuidadores para explorar as coisas do seu ambiente e se sinta segura no ambiente em que está. Assim, nesta fase, o mais importante é que os pais estabeleçam um vínculo seguro com seus filhos.
O papel dos cuidadores pode ser realizado por pai e mãe biológico ou outras pessoas que possam exercer essa função com responsabilidade e dedicação. Para Aberastury[4], o pai representa a possibilidade de o equilíbrio pensado como regulador da capacidade da criança investir no mundo real. Por isso, a presença paterna na família é diferente e complementar à materna. A falta de um modelo na educação, masculino ou feminino, poderá implicar em desequilíbrio na educação do filho.
Diante disso, a presença do pai na vida de um filho é tão fundamental quanto a presença da mãe, quando se pensa em um bom desenvolvimento socioemocional da criança, sob vários níveis e circunstâncias, pois não só complementa como reforça o modelo dado pela mãe, no qual os dois assumem os papéis de autoridade (impondo regras e punições) e dos afetos (fornecendo carinhos e recompensas)[5].
Segundo Ramos Filha[6], a paternidade não depende de uma exclusividade origem biológica, mas é necessariamente socioafetiva, o que permite revelar-se por origens não biológicas, dessa forma, o autor afirma que:
A paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não biológica.
Isto posto, segundo Schimidt[7], o que procura o reconhecimento da paternidade socioafetiva de maneira jurídica, por expressa a intenção de afeto, zelo e proteção, detém condição que supera a parentalidade determinada apenas pela biologia, uma vez que a base das relações familiares é o afeto. Em consonância, Faria e Goulart[8] acrescentam que a filiação socioafetiva é fundamentada no ato público de revelar afeição e solidariedade reiterada em ações cotidianas.
As características basilares da paternidade socioafetiva para o reconhecimento no procedimento judicial e extrajudicial resumem-se na posse de filho e na superação do laço sanguíneo biológico. A primeira diz respeito ao ato público adotado pelo genitor afetivo em reconhecer perante a sociedade os direitos e deveres da filiação[9].
Na sociedade moderna há mudanças quanto aos modelos de estruturas familiares, como mães e pais solos, casais com filhos de relacionamentos anteriores, dentre outros. Neles a parentalidade socioafetiva, é reconhecida como aquela que prioriza o afeto em relação à genética e que se refere a uma filiação delineada pela posse do estado de filho[10].
Nesse ínterim, o campo jurídico se propôs a acompanhar as novas dinâmicas, prevendo uma jurisprudência que as contemplem ao considerar a existência de um instituto familiar em casos em que há relações de afetividade construídas e comprovadas por meio de estudos técnicos psicossociais[11].
Maria Berenice Dias[12] discorreu, nesse sentido, que o afeto de uma relação socioafetiva é fruto de convivência familiar, não de laços sanguíneos. Dessa forma, ela define o estado de filho como:
Assim, a posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado. (DIAS, 2021, p. 76)
Em termos jurídicos, observa-se que essa paternidade é referenciada como uma filiação civil de origem divergente da consanguinidade, conforme prescrito no artigo 1.593 do Código Civil[13]:
O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
Assim foram organizados sete princípios da legislação brasileira que preveem a socioafetividade nas relações[14]:
- Dignidade da pessoa humana art. 1º, III, da Constituição Federal;
- Solidariedade art. 3, I da Constituição Federal;
- Reconhecimento da união estável art. 226, §3º da Constituição Federal;
- Proteção à família monoparental e dos filhos adotivos art. 226, §4º da Constituição Federal;
- Paternidade responsável art. 226, §4º da Constituição Federal;
- Adoção como escolha afetiva art. 227, §5º da Constituição Federal; e
- Igualdade entre os filhos independente da origem art. 227, §6º da Constituição Federal.
No julgamento do Recurso extraordinário 898.060-SC do STF e da análise de Repercussão Geral 622, foi evidenciada a parentalidade socioafetiva como modelo de parentesco e filiação reconhecidos que deve ser observada à igual nível da parentalidade biológica. Por conseguinte, para elucidar o marco deste Recurso, segue um trecho do voto do Ministro Relator Luiz Fux:
A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais; (ii) pela descendência biológica; ou (iii) pela afetividade. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele que utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio)[15]
Cabe ressaltar que tornar-se mãe ou tornar-se pai não é um talento natural. É, antes, um processo social e cognitivo que, mais do que intuitivo, é uma habilidade aprendida. De acordo com Cardoso, Silva e Marín[16], a parentalidade envolve quatro dimensões:
(1) assumir a responsabilidade do exercício efetivo do papel;
(2) otimizar o crescimento e o desenvolvimento da criança;
(3) integrar a criança na família; e,
(4) agir de acordo com os comportamentos esperados de alguém que é mãe/pai.
A habilidade parental é um processo contínuo de aprendizado e crescimento recíproco. As famílias com as crianças são únicas e as habilidades parentais podem variar de acordo com diferentes contextos culturais, sociais e familiares.
O termo “capacidades parentais” ou “competências parentais” se refere ao conjunto de conhecimentos, de habilidades e de atitudes que facilitam e otimizam o desempenho do papel parental, garantindo o potencial máximo de crescimento e de desenvolvimento da criança[17].
No âmbito da parentalidade, os conhecimentos e as habilidades parentais podem ser entendidos como a compreensão do desenvolvimento da criança e a familiaridade com as tarefas parentais, relacionadas com as decisões em torno dos cuidados, com a capacidade de avaliar e de interpretar os comportamentos da criança, com o desempenho das tarefas parentais e com a interação com a criança[18].
As capacidades parentais vão se adequando ao longo do desenvolvimento dos filhos, em que os pais precisam atender as necessidades de seus filhos de forma que eles se construam como seres humanos capazes de viver e conviver na relação com outros.
Ao exercer as competências parentais - que são embasadas em um conjunto de saberes implícitos e explícitos acerca das necessidades dos filhos e das responsabilidades dos pais - os pais buscam cumprir a dimensão afetiva do cuidado aos filhos, associada ao cuidado físico, material, educacional e linguístico[19]. Os comportamentos socialmente habilidosos dos pais incluem dar amor, afeto, comunicação efetiva, estabelecimento de regras e outros similares.
No contexto de perícias e assistência técnica psiquiátrica forense e psicológica jurídica, a avaliação da capacidade parental analisa para além das condições psicológicas e emocionais dos pais, os aspectos socioafetivos da paternidade, ressaltando a qualidade do vínculo e da interação entre pai e filho e possíveis repercussões do afastamento entre estes, a curto e longo prazo.
[1] DA ROSA TANCREDI, Cleunice Carvalho et al. O desenvolvimento infantil. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, v. 8, n. 1, p. 1801-1813, 2022.
[2] DE MORAES, Gisela Tebaldi Guedes; DO NASCIMENTO, Ladislau Ribeiro; DE ALMEIDA TAMAROZZI, Giselli. Marcos do desenvolvimento infantil e sua relação com o diagnóstico precoce de transtorno de espectro autista. Humanidades & Inovação, v. 9, n. 24, p. 288-300, 2022.
[3] PFEIFER, L. I.; SANT’ANNA, M. M. M. O brincar em tempos de pandemia da covid-19: reflexões sob a perspectiva da terapia ocupacional/Playing in Covid-19 pandemic times: reflections from the occupational therapy perspective. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional REVISBRATO, v. 6, n. 1, p. 834-844, 2020
[4] ABERASTURY A. A paternidade. In: Aberastury A, Salas EJ, eds. Paternidade: um enfoque psicanalítico. Porto Alegre:Artes Médicas; p.41-87, 1991.
[5] MONDARDO AHE, Valentina DD. Psicoterapia infantil: ilustrando a importância do vínculo materno para o desenvolvimento da criança. Psicol Reflex Crit.,11(3):621-30, 1998.
BENCZIK, Edyleine Bellini Peroni. A importância da figura paterna para o desenvolvimento infantil. Rev. psicopedag., São Paulo , v. 28, n. 85, p. 67-75, 2011.
[6]RAMOS FILHA, I. G. S.. Paternidade socioafetiva e a impossibilidade de sua Desconstituição posterior. Monografia (graduação) apresentada à banca examinadora do Centro Superior do Amapá – CEAP, como exigência parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Macapá: CEAP, 2008.
[7] SCHIMIDT, S. S.. Paternidade Socioafetiva: o Sentimento Constitucional para a Família Contemporânea. 108 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Universitário de Marília, Fundação de Ensino “Eurípides Soares da Rocha”, Marília, 2015
[8] FARIA, M. L., G.. Leandro Henrique Simões. Multiparentalidade. Letras Jurídicas, n.2, p. 165-170, 2014.
[9] CLAUDIO, V. et al. Edição 22 -nov/dez 2021 PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E SEUS EFEITOS SOCIO-AFFECTIVE PATERNITY AND ITS EFFECTS. [s.l: s.n.].
[10] SANTOS, N. R. A. dos. Parâmetros legais e sociais da família socioafetiva. 2021.
[11] RODRIGUES, J. A. C., e DE JESUS, W. T. Parentalidade Socioafetiva e Multiparentalidade. Revista do Curso de Direito do Centro Universitário Brazcubas, 3(2), 112-132, 2019.
[12] DIAS, M. B.. Manual de Direito das Famílias - 14. ed. rev.. ampl. e atual. - Salvador: Editora JusPodivm, 2021.
[13] BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
[14] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
[15] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 898.060/DF, 2017, Rel. Min. Luiz Fux. Julgado em 22.9.16
[16] CARDOSO, A.; SILVA, A. P.; MARÍN, H. Competências parentais: construção de um instrumento de avaliação. Revista de Enfermagem Referência, n. 4, p. 11-20, 2015.
[17] RIBAS JR., R.; BORNSTEIN, M. Parenting knowledge: Similarities and differences in brazilian mothers and fathers. Interamerican Journal of Psychology, 39(1), 5-12, 2005.
[18] RIBAS JR., R.; MOURA, M.; BORNSTEIN, M. Cognições maternas acerca da maternidade e do desenvolvimento humano: Uma contribuição ao estudo da psicologia parental. Revista Brasileira de Crescimento & Desenvolvimento Humano, 17(1), 104-113, 2007.
[19] RIBEIRO, J. P.; DA SILVA, M. R. S.; CEZAR-VAZ, M. R. Compreendendo o exercício das competências parentais na família monoparental chefiada pelo pai. Ciência, cuidado e saúde, v. 10, n. 3, p. 490-497, 2011.
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