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Conversas Interdisciplinares: um prosa sobre as perícias psicossociais
“O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós”.
Clarice Lispector
Em meio ao feriado de Finados, vivemos um encontro especial: O grupo de conversas interdisciplinares do IBDFAM. Antes de qualquer coisa, era o desejo de estar ali que nos movia. Era um desejo vivo, pulsante, de aprendizado e partilha.
Em torno de temas profundos, cada um ali trazia mais do que palavras: trazia sua presença, a vontade de crescer, entender e transformar, com o intuito de atravessar esse momento em que estamos "desbussolados", um tempo que alguém nomeou como "virada de era".
O tema abarca sujeito, perícias, judiciário, demanda, família. Esse encontro carrega em si um desejo: visitar, estudar, entender e redesenhar esse espaço, no qual as perícias não apenas preencham uma formalidade, mas atuem com o protagonismo que a função merece.
Nomear é dar sentido, é oferecer um caminho. O que dizer da perícia, hoje, não é apenas um ato de avaliar ou diagnosticar; ela se torna um trabalho de mediação entre o indivíduo e um sistema em transformação. Funciona como um olhar especializado e ético que deve trazer a realidade subjetiva do avaliado para o campo das decisões objetivas. E, para isso, a perícia precisa reconhecer a multiplicidade de fatores — sociais, emocionais, culturais — que influenciam o sujeito e o contexto atual.
Poderíamos entrar no mérito de se os estudos sociais, psicossociais ou biopsicossociais, realizados no curso de processos judiciais, têm ou não natureza jurídica de perícia, ou, ainda, avaliar os elementos de construção e revisão dos processos de avaliação, como a formulação de pareceres e recomendações, análise da contextualidade de dados, sigilo e ética profissional, documentação de laudos específicos, objetividade e limitações na coleta de dados, testemunha e declaração de terceiros, distinção entre psicólogo clínico, parecerista, assistente técnico e perito judicial, termo de assentimento livre e esclarecido, dentre outros.
Mas, para além disso, conversar sobre perícias é também um convite à transdisciplinaridade. Falar da escuta da criança, da escuta dos envolvidos, em minha perspectiva só se faz possível com a intercessão de saberes. Não basta olhar apenas para comportamentos pontuais, mas sim compreender as tramas de poder, ciúme e controle que atravessam as relações entre pais, filhos e ex-parceiros. Muitas vezes, nesse espaço nebuloso, a criança se instala e emerge como um sinalizador dessa condição. Ela denuncia as frustrações e problemas que lhe são projetados pelos pais. É crucial reconhecer a interseção que afeta todos os envolvidos. E é esse elo invisível que atravessa os corpos e perpassa todos que precisamos rever e nos ater para que possamos reconhecer a dinâmica e o lugar que cabe a cada um.
No universo jurídico, peritos e assistentes técnicos frequentemente se veem em um lugar delicado. São convocados, sim, mas nem sempre evocados ou ouvidos em sua profundidade e potencial. Conhecer os limites da perícia, suas observações e competências diferentes e suas respostas exige uma abordagem transdisciplinar que ofereça o suporte necessário para uma interpretação mais ampla e precisa. A transdisciplinaridade possibilita e enriquece essa perspectiva, ao mesmo tempo que torna indispensável estabelecer limites entre as diferentes áreas. Cada olhar — seja o do assistente social, do psicólogo, do psicanalista — carrega em si a história e a formação de quem observa, um repertório que, inevitavelmente, influencia a percepção. O olhar "pericial", para além de técnico, é ético e contextualizado, reconhecendo que não há uma verdade fixa, mas sim uma "verdade" situada. A complementaridade entre olhares revela nuances importantes, enriquecendo o processo de entendimento e intervenção.
Quando falamos de “processo” aqui, não nos referimos ao termo estritamente processual, mas sim a algo contínuo e dinâmico, um caminho de construção e resolução conjunta. A palavra “processo” poderia ser traduzida, nesse contexto, como “trajetória”. Mas esse processo se movimenta entre a técnica e o direito, mediando uma linguagem que muitas vezes é de difícil “tradução”. Muitas vezes, o problema começa antes da resposta: não sabemos ao certo qual é a demanda, quiçá a pergunta, e até mesmo a leitura da resposta pode se perder em meio a interpretações limitadas.
Trazemos à tona a importância do enquadre: qual a questão a ser respondida, os métodos e instrumentos adotados, o tempo e espaço, os limites de atuação, a interação entre os participantes — uma espécie de bússola que orienta a condução do procedimento. O enquadre não é uma limitação; é, ao contrário, uma abertura, uma moldura flexível que permite enxergar além dos autos, na profundidade das interações e nos significados que emergem dessa troca.
A questão não é apenas metodológica, mas de complementaridade. É essa soma de perspectivas, essa convergência entre o subjetivo e o objetivo, entre o dinâmico e o metódico, que permite construir uma visão mais rica e detalhada. Somente por meio dessa integração de olhares é possível captar a complexidade de uma realidade humana que, por natureza, é multifacetada e não cabe em uma única lente.
A imparcialidade se fortalece quando há espaço para diferentes disciplinas e perspectivas. Em casos complexos, é essencial que assistentes sociais, psicólogos, psicanalistas e outros profissionais colaborem, compartilhando suas leituras, ainda que sejam distintas. Essa convergência permite um entendimento mais amplo e reduz o risco de que uma única visão subjetiva defina o caminho.
A máxima jurídica de que “o que não está nos autos, não existe” nos lembra da necessidade de registrar formalmente cada observação, mas o trabalho que discutimos transcende a simples formalidade. É necessário que as provas sejam não apenas analisadas, mas “autorizadas” pelo juiz, no sentido de que ele possa lê-las de forma mais ampla e complexa. Não se trata de uma leitura literal, mas de uma leitura que consiga apreender a dinâmica e os sentidos latentes dentro de uma relação familiar. É uma leitura que, idealmente, transcende o texto, adentrando o campo da interação, das intenções, do não dito – algo que uma simples mensagem de WhatsApp ou um relatório frio de perícia não captaria.
Esses materiais só adquirem real valor interpretativo quando situados no contexto da interação viva entre o profissional e todos periciandos envolvidos. Eles são fragmentos de uma realidade que, por si sós, podem ser limitados, mas que, quando utilizados como parte de um processo in loco, revelam dinâmicas mais profundas.
O verdadeiro desafio é comunicar essa visão de forma que ela ressoe com cada representante envolvido, permitindo que diferentes olhares conversem entre si e componham uma narrativa com mais inteireza e humanidade, propiciando uma conclusão que contemple a singularidade de cada família.
Rita Andréa Guimarães de Carvalho Pereira
Psicanalista -mediadora
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