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A reforma do Código Civil e os alimentos familiares - Propostas para a extinção dos alimentos
Seguindo na análise de algumas das propostas formuladas pela Comissão de Juristas nomeada no âmbito do Senado Federal para a Reforma do Código Civil, tratarei neste texto do conteúdo de algumas proposições relativas à extinção dos alimentos familiares, havidos entre cônjuges, conviventes e parentes.
Como se sabe, a primeira situação a ser destacada de extinção dessa obrigação pode ocorrer havendo uma mudança estrutural drástica no binômio ou trinômio alimentar, a fundamentar ação de exoneração de alimentos. Essa ação, ao lado da ação revisional de alimentos, está autorizada pelo art. 1.699 da atual codificação privada, que assim dispõe: "se, fixados os alimentos, sobrevier mudança na situação financeira de quem os supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao juiz, conforme as circunstâncias, exoneração, redução ou majoração do encargo". Em relação a esse caput não é feita qualquer proposta de sua modificação, que apenas atinge os novos parágrafos nele incluídos, como ainda se verá.
Tem-se entendido que a sentença de exoneração ou revisão do valor alimentar retroage à data da citação na ação correspondente. Nessa linha, a Súmula n. 621 do STJ, editada ao final de 2018: "os efeitos da sentença que reduz, majora ou exonera o alimentante do pagamento retroagem à data da citação, vedadas a compensação e a repetibilidade". Ademais, a simples alteração do binômio ou trinômio alimentar, por si só, não enseja a modificação do valor alimentar ou a sua atribuição posterior ao cônjuge. Nesse sentido, entende o Superior Tribunal de Justiça que "a concessão do pensionamento não está limitada somente à prova da alteração do binômio necessidade-possibilidade, devendo ser consideradas outras circunstâncias, tais como a capacidade potencial para o trabalho e o tempo decorrido entre o seu início e a data do pedido de desoneração" (STJ, REsp 1.829.295/SC, 3.ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 10.03.2020, DJe 13.03.2020). Esses entendimentos tendem a ser mantidos, pois retirados da atual redação do art. 1.699 da Lei Geral Privada.
Nos casos envolvendo os menores de dezoito anos, crianças e adolescentes, a obrigação alimentar é extinta quando esses atingem a maioridade. Porém, tem-se entendido há tempos que essa extinção não ocorre de forma automática, sendo necessária uma ação de exoneração para tanto. Nessa linha de pensamento, o Superior Tribunal de Justiça editou, em 2008, a sua Súmula n. 358, estabelecendo que "o cancelamento de pensão alimentícia de filho que atingiu a maioridade está sujeito à decisão judicial, mediante contraditório, ainda que nos próprios autos".
Ressalve-se, contudo, que a obrigação alimentar do genitor pode continuar, tratando-se de filho universitário, até que ele encerre os seus estudos e cesse a situação de dependência. Nesse sentido consolidou-se o Superior Tribunal de Justiça, constando a seguinte assertiva na Edição n. 65 da sua ferramenta Jurisprudência em Teses, dedicada aos alimentos: "é devido alimentos ao filho maior quando comprovada a frequência em curso universitário ou técnico, por força da obrigação parental de promover adequada formação profissional" (Tese n. 4). No mesmo sentido, no âmbito da doutrina, na IV Jornada de Direito Civil foi aprovado o Enunciado n. 344, determinando que "a obrigação alimentar originada do poder familiar, especialmente para atender às necessidades educacionais, pode não cessar com a maioridade".
Todavia, ressalve-se que o próprio Superior Tribunal de Justiça tem entendido que os pais não são obrigados a custear o ensino pós-universitário do filho, como no caso de curso de especialização, mestrado ou doutorado. Nesse sentido, vejamos o que se extrai de decisão publicada no Informativo n. 484 da Corte:
"(...). O estímulo à qualificação profissional dos filhos não pode ser imposto aos pais de forma perene, sob pena de subverter o instituto da obrigação alimentar oriunda das relações de parentesco, que objetiva preservar as condições mínimas de sobrevida do alimentado. Em rigor, a formação profissional completa-se com a graduação, que, de regra, permite ao bacharel o exercício da profissão para a qual se graduou, independentemente de posterior especialização, podendo assim, em tese, prover o próprio sustento, circunstância que afasta, por si só, a presunção iuris tantum de necessidade do filho estudante. Assim, considerando o princípio da razoabilidade e o momento socioeconômico do país, depreende-se que a missão de criar os filhos se prorroga mesmo após o término do poder familiar, porém finda com a conclusão, pelo alimentado, de curso de graduação. A partir daí persistem as relações de parentesco que ainda possibilitam a busca de alimentos, desde que presente a prova da efetiva necessidade. Com essas e outras considerações, a Turma deu provimento ao recurso para desonerar o recorrente da obrigação de prestar alimentos à sua filha" (STJ, REsp 1.218.510/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 27.09.2011).
Em verdade, há omissão legislativa a respeito dessas hipóteses, o que revela uma situação jurídica insegura a respeito do pagamento dos alimentos aos filhos, sobretudo quando atingem a maioridade mas ainda necessitam de ajuda financeira de seus ascendentes. Por isso, é preciso melhorar o texto da lei, com o fim de trazer mais segurança jurídica e estabilidade a respeito do tema, o que está sendo proposto pelo Projeto de Reforma do Código Civil elaborado pela Comissão de Juristas.
Nesse contexto, reitere-se a sugestão de manter o caput do seu art. 1.699, com a inclusão de dois novos parágrafos. Nos termos do § 1º, "nas hipóteses de alimentos pleiteados por crianças e adolescentes, cessa a obrigação alimentar com a maioridade, mas é do alimentante o ônus de pleitear a cessação do pagamento". Portanto, como hoje já entende a jurisprudência superior, e como está na Súmula n. 358 do Tribunal da Cidadania, a maioridade cessa a obrigação de alimentos, mas não de forma automática, cabendo ao devedor o ônus de pleitear a extinção, em demanda própria.
Ademais, consoante o seu projetado § 2º, "atingida a maioridade por pessoa apta ao trabalho, o direito de pleitear alimentos será prorrogado por tempo razoável para que encerre a sua formação educacional, compreendida como aquela necessária à conclusão de curso de ensino superior, técnico ou profissionalizante". Confirma-se, portanto, o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência, aqui antes exposto, assegurando-se o pagamento dos alimentos ao filho até o encerramento de curso de ensino superior, e não além disso.
Com outro tema de relevo a respeito da extinção dos alimentos, estabelece atualmente o caput do art. 1.708 do Código Civil que o casamento, a união estável ou o concubinato do credor e alimentando faz cessar o dever de prestar alimentos. Sobre o concubinato, há um enunciado doutrinário da III Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça, totalmente justo e lógico, o de número 265, que determina: "na hipótese de concubinato, haverá necessidade de demonstração de assistência material pelo concubino a quem o credor de alimentos se uniu". O que o enunciado doutrinário ressalva é que a sua mera existência em relação ao credor de alimentos não tem o condão de gerar a extinção da obrigação alimentar. Por óbvio, é necessário provar o sustento por parte do concubino, caso, por exemplo, de um homem casado.
O parágrafo único do art. 1.708 do Código Privado tem redação muito interessante e polêmica, tendo sido muito debatido nos mais de vinte anos de sua vigência, e com relação direta ao princípio da boa-fé objetiva. Enuncia o comando legal em questão que "com relação ao credor cessa, também, o direito a alimentos, se tiver procedimento indigno em relação ao devedor".
A principal previsão a ser debatida no texto é a menção ao procedimento indigno, que faz cessar a obrigação alimentar, sem mencionar em qual montante. A grande dúvida é saber como preencher esse conceito legal indeterminado, o que gerou muitas discussões nos últimos anos, quanto ao seu correto preenchimento. Com essa finalidade, foi aprovado na III Jornada de Direito Civil o Enunciado n. 264, em que se estabelece que "na interpretação do que seja procedimento indigno do credor, apto a fazer cessar o direito a alimentos, aplicam-se, por analogia, as hipóteses dos incisos I e II do art. 1.814 do Código Civil".
A partir desse enunciado doutrinário, interpretado restritivamente, apenas gerariam a extinção da obrigação alimentar o homicídio doloso, ou sua tentativa, praticado pelo credor contra o devedor, a calúnia ou outro crime contra a honra, como está consagrado nos últimos comandos citados, que tratam da indignidade sucessória. Por uma questão lógica, o inc. III do último comando legal citado foi excluído de aplicação pelo Enunciado n. 264, por não ter pertinência para o tema dos alimentos.
Outro dispositivo do Código Civil que trata da indignidade de forma indireta, utilizando a palavra ingratidão, é o art. 557, que enuncia a revogação da doação se o donatário: a) atentar contra a vida do doador ou cometer crime de homicídio doloso contra ele; b) cometer ofensa física contra o doador; c) injuriar gravemente ou caluniar o doador; d) recusar-se a prestar alimentos ao doador, que deles necessitava. Substituindo as expressões doador por credor e donatário por devedor, tem-se sustentado que essa regra relativa à doação também pode auxiliar no preenchimento do procedimento indigno tratado no parágrafo único do art. 1.708 da Lei Privada.
O objetivo de uma interpretação restritiva é impedir a aplicação do parágrafo único do art. 1.708 do Código Civil em hipóteses nas quais o ex-cônjuge ou ex-companheiro que recebe os alimentos tenha relacionamentos amorosos com outras pessoas, após a dissolução da união com a pessoa que lhe paga os alimentos. E diante de todas as divergências relativas ao comando, novamente em prol da segurança jurídica, a Comissão de Juristas nomeada para a Reforma do Código Civil propõe mudanças substanciais para o preceito, que hoje são mais do que necessárias, diante das dificuldades e dos intensos debates práticos sobre o preenchimento da ideia de comportamento indigno.
Inicialmente, altera-se substancialmente a atual redação do caput, para que não haja qualquer possibilidade do pleito dos alimentos pós-divórcio, o que é igualmente consagrado pela projeção do novo art. 1.704, que será analisado por mim em outro texto. Nesse contexto, o novo art. 1.708 passará a ter a seguinte redação: "o direito de receber alimentos poderá ser extinto ou reduzido, caso o credor tenha causado ou venha a causar ao devedor danos psíquicos ou grave constrangimento, incluindo as hipóteses de violência doméstica, perda da autoridade parental e abandono afetivo e material. Parágrafo único. A extinção total ou parcial do direito aos alimentos dependerá da gravidade dos atos praticados".
De acordo com a Subcomissão de Direito de Família - formada por Pablo Stolze Gagliano, Maria Berenice Dias, Rolf Madaleno e pelo Ministro Marco Buzzi -, almejou-se afastar qualquer debate sobre a culpa na questão de alimentos. Vejamos as suas justificativas:
"A proposta do artigo e parágrafos tem por objetivo reunir em uma normativa conjunta os casos que determinam a perda do direito alimentar, por indignidade, ou mesmo a fixação de alimentos naturais, por força de alguma conduta praticada pelo credor contra o devedor. Evita-se a indesejável menção a 'culpa', adotando-se redação mais objetiva. A ideia proposta está prevista atualmente no parágrafo único do artigo 1.708 do CC, de forma bastante incipiente. Por outro lado, o código trata da culpa do cônjuge pelo fim de relacionamento conjugal como uma hipótese de 'redução' do direito de alimentos, prevendo que o culpado receberá os alimentos naturais, ou seja, somente recursos necessários à sua subsistência, o que, como dito, não é adequado. Tendo em mente a premente necessidade de se afastar a questão da culpa pelo fim de relacionamento conjugal como fato a ser valorado na fixação de alimentos, busca-se então substituir tal regime por uma cláusula mais objetiva, passível de abarcar melhor uma vasta gama de casos, a serem analisados ao prudente critério do julgado".
De fato, têm total razão os juristas, sendo certo que a menção à violência doméstica como geradora da extinção dos alimentos atende à proteção e à tutela dos direitos das mulheres, um dos fundamentos do Anteprojeto.
Por seu turno, a redução do valor dos alimentos, de acordo com a gravidade da conduta, é retirada do Enunciado n. 345, da IV Jornada de Direito Civil, que tem a seguinte redação: "o 'procedimento indigno' do credor em relação ao devedor, previsto no parágrafo único do art. 1.708 do Código Civil, pode ensejar a exoneração ou apenas a redução do valor da pensão alimentícia para quantia indispensável à sobrevivência do credor". Com isso, abre-se a possibilidade de graduar a gravidade dos atos para que não ocorra sempre a extinção da obrigação de alimentos, o que virá em boa hora, suprindo uma lacuna hoje existente.
Como se pode notar por este texto, as proposições aqui analisadas apenas trazem para o a norma o entendimento hoje majoritário da doutrina e da jurisprudência nacionais, resolvendo-se alguns dos dilemas, teóricos e práticos verificados nos mais de vinte anos de vigência da codificação privada de 2002.
Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
Publicação oficial: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/420518/a-reforma-do-codigo-civil-e-os-alimentos-familiares
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