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Ser mãe, ser pai, ser casal parental: o que não é proibido é permitido
Curioso sucesso de influenciadores digitais que dão conselhos, trazem palavras de afeto, e até passam bronca fazendo as vezes de mãe e de pai. Fenômeno estranho? Nem tanto em uma sociedade em mudança, mas também quase que infantilizada, em que a falta de modelos claros do que é ser mãe e ser pai pode levar à busca de pais ideais, pais fetiche. E daqui a algum tempo até os influenciadores correm o risco em serem substituídos por pais da inteligência artificial. Um outro risco nem tão distante…
Mas o que tais influenciadores têm a ver com o Direito de Família? Vamos lá. O Poder Judiciário em várias partes do mundo tem sido confrontado com demandas das mais diversas, muitas vezes escondidas nas entrelinhas das disputas pela guarda e convivência com os filhos. Disputas que aparentemente se resolveriam com a guarda compartilhada — só que não. E as entrelinhas desses embates escondem questões mais básicas do quê fazer com relação à criação e educação dos filhos. Um efeito colateral dos divórcios? Pais desamparados? Um efeito de uma sociedade “descoordenada”? E mais: é função do Poder Judiciário amparar, educar e coordenar? Pensemos.
É claro que as questões relativas à criação e à educação não assolam somente àqueles que buscam o Poder Judiciário. Mas elas se exacerbam e pegam uma carona nos litígios conjugais e parentais. Por sua vez, o Poder Judiciário corre o risco de extrapolar sua função ao tomar para si expectativas que não lhe concernem.
E, em uma cultura intantilizante, em que se patologiza e se confunde o que é natural da vida em família — conflitos e impasses — é temerário que o Poder Judiciário assuma, mesmo que secundariamente, uma pseudo função paterna, prescritiva e educativa, ao tentar organizar a vivência ideal de cada família. Nessa linha corre o risco até de se assemelhar à função, também indevidamente assumida, pelos influenciadores.
Vamos às lides e os dispositivos para com elas lidar
O sistema de justiça tem diversos dispositivos para lidar com os impasses em relação aos filhos, em tempos de interdisciplinaridade em que a subjetividade entrou em cena e a afetividade passou a ser um valor jurídico.
Temos as perícias psicossociais, que além de avaliativas — sua função principal —, podem ser também interventivas, e podem ser um recurso utilizado não só para esclarecer, mas, quando possível, para sensibilizar e resgatar a funcionalidade das famílias. Temos as Oficinas de Parentalidade — com a finalidade de sensibilizar aos pais —; a Mediação Interdisciplinar — com a finalidade de melhorar a comunicação e a assunção das responsabilidades —; o Divórcio Colaborativo — com a finalidade de evitar o litígio e estabelecer a colaboração na solução de impasses e organização dos relacionamentos, com o concurso de profissionais de diversas áreas —; os Planos de Parentalidade — com o objetivo de que os próprios pais formulem compromissos em relação ao exercício da guarda e da convivência —; os Acompanhamentos Terapêuticos — com a finalidade de manter, facilitar e fortalecer os vínculos e prevenir disfunções.
A maioria desses institutos têm por base permitir, e alguns incentivar, a elaboração por parte dos pais das situações de impasse, e, quiçá, transformar os conflitos que alimentam uma lide judicial, trazendo para a cena os sujeitos envolvidos, trabalhando, assim, o protagonismo e a possibilidade de responsabilização na condução de suas questões. Se isso ocorrer maior é a chance de pacificação, e que as lides não se multipliquem e retornem à cena judicial, o que é bastante comum.
Tais institutos são uma aposta em um posicionamento distinto daquele que é encenado com uma excessiva judicialização e consequente expectativa de que a “solução” seja trazida pelo outro idealizado — o “pai autoridade” — o Poder Judiciário. Posição infantilizada, que retira de cada um a necessidade em assumir sua posição desejante.
É muito importante sensibilizar o par parental para as consequências de seus litígios, acolhendo e buscando compreender seu sofrimento, e colaborando para estabelecer uma comunicação mais eficaz entre eles. Nesse caminho é mais provável que um processo judicial possa trazer reflexões a respeito de seus lugares, papéis e funções. Se assim o for, o resultado pode ser o de que o impasse seja elaborado e resolvido; mas é um resultado impossível de se garantir.
Inegável, nestas situações, é o sentimento de impotência dos operadores do direito e da saúde que com os pais colaboram. E fruto da impotência e mesmo angústia e sofrimento que as lides trazem, há outros caminhos que, a nosso ver, pretendem ser um atalho, quase mágico, e que pode gerar curtos-circuitos nas relações familiares.
Um exemplo, é acreditar que as lides judiciais se resolvam por meio do encaminhamento à psicoterapia, que por certo têm grande valor. Tivemos ainda a fase- que esperamos seja passado — das constelações familiares. E, agora, vemos modalidades mais próximas de couching, que visam dirigir o exercício das funções materna, paterna, e do par parental, ou mesmo que pretendem educar aos pais. E todo o cuidado é pouco quando se trata de educação e/ou coordenação.
Lembremos do Princípio da Menor Interferência do Estado. O Princípio do Superior Interesse da Criança e do Adolescente não pode estar à serviço de ideologias, e mesmo de boas intenções que firam a autonomia da família. Seja como for o Poder judiciário não pode transcender sua função.
Em razão de as famílias procurarem o socorro judicial, não se pode valer, mesmo que inconscientemente, de sua fragilidade para tentar ensiná-los a serem pais. Tal caminho pode soar como recomendação compulsória ou até punitiva – se assim não o for – uma vez que vinda do Poder Judiciário.
Não só as famílias são plurais, mas o exercício da função materna, paterna e parental — do casal de pais — é plural. E, da mesma forma como ao considerarmos a diversidade das composições familiares estamos evitando os preconceitos e as ideologias, o mesmo princípio deve valer para as referidas funções. Não nos parece possível ensinar alguém a ser mãe, pai, casal parental em um contexto judicial sem ferir liberdades, a menos que absolutamente necessário.
Sensibilizar sim, mas mesmo neste caso todo o respeito é pouco. Lembremos que, há muito pouco tempo, apregoava-se com deveriam ser e se comportar as mulheres, os homens e os casais conjugais.
Em tempos de valorização dos afetos a interdisciplinaridade não pode ser confundida com um discurso de um saber totalizante, como se esse total pudesse existir. O grande desafio atual é exatamente o de deixar cair os modelos e soluções únicas, aceitando o declínio do universal e introduzindo a dimensão singular, própria do desejo.
E, finalmente, não se devem descartar os riscos das ideologias quer progressistas, quer conservadoras e mesmo retrógradas — um risco um tanto atual.
A lei e o difícil exercício da liberdade em ser pai, em ser mãe, em ser par parental
Ponderamos que pelo fato de que alguns institutos do Direito de Família não terem clareza, como o da guarda compartilhada, eles podem propiciar maior interferência do Estado. São institutos que, por óbvio, não têm caráter educativo ou ideológico e que deixam em aberto a pluralidade dos arranjos familiares — uma conquista, mas que se acompanha de angústia.
Há uma amplitude em como se define uma guarda compartilhada em termos de quem e como devam ser exercidas as funções, se há ou não residência principal, o tempo e forma de convívio, etc.. E a essas “cláusulas abertas” atendem grande parte dos dispositivos citados anteriormente (perícias, oficina de parentalidade, mediação interdisciplinar, planos de parentalidade, acompanhantes terapêuticos), em um movimento de sensibilização e de responsabilização dos pais.
É o movimento inverso de o Poder Judiciário assumir funções que não lhe cabem. Já dispositivos educativos e prescrições existenciais podem funcionar simbolicamente como pais ideais, pais fetiche, se utilizados indiscriminadamente.
Direito a ser humano
Importante lembrar que vivemos em nossa contemporaneidade um momento em que, aceitar os limites, as diferenças, as dificuldades e as fragilidades de cada um tem sido difícil. Ao priorizar a produtividade corremos o risco em homogeinizar, ao privilegiar a excelência e o sucesso medido por ideais inalcançáveis quando se trata dos relacionamentos, colocamos em risco nossa característica principal: a singularidade com que cada um responde e se posiciona na vida.
Cada família tem a sua singularidade que deve ser respeitada.
Crescente o número de influenciadores, livros/manuais, e de profissionais de diversas especialidades, que que tentam sensibilizar aos pais, o que pode ser válido, desde que não se negue a dimensão humana que escapa sempre ao encaixe perfeito de regras e técnicas. É isso que nos faz humanos!
Claudia Pretti
é psicanalista, psicóloga clínica e jurídica, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, vice-diretora de Relações Interdisciplinares do IBDFam.
Giselle Câmara Groeninga
é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.
Publicação oficial: https://www.conjur.com.br/2024-nov-10/ser-mae-ser-pai-ser-casal-parental-o-que-nao-e-proibido-e-permitido/
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