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Incesto: um pacto de silêncio
De um modo geral, a forma de chamar a atenção sobre alguma coisa - principalmente de fatos que não se quer ver ou de realidades que não se quer enxergar - é trazer números ou relatar casos concretos.
No entanto, em tema ligado à sexualidade, os dados jamais espelham a verdade. Quando o assunto se refere a crimes sexuais, crimes que acontecem dentro do lar, crimes cometidos contra crianças por pais, padrastos, tios, avós, etc., os números são sempre subdimensionados.
Trata-se de fato cujo nome ninguém sequer gosta de pronunciar. Aliás, é delito que nem nome tem e até parece que não existe, pois nem se encontra tipificado no Código Penal.
Este crime de que ninguém fala, que ninguém quer ver chama-se incesto!
O abuso sexual contra crianças e adolescentes é um dos segredos de família mais bem guardados, sendo considerado o delito menos notificado. Tudo é envolto em um manto de silêncio, por isso é muito difícil estabelecer uma estimativa que permita uma idéia a respeito de números.
Assim, é difícil se ter uma idéia dessa perversa realidade.
Os americanos, que têm a mania de proceder a levantamentos e fazer estatísticas, avaliam que apenas 10 a 15% dos casos de incesto são revelados. Ainda assim, os números são chocantes: 20% das mulheres e entre 5 a 10% dos homens foram vítimas de abuso sexual na infância ou na adolescência. Outro dado: o menor número de relações abusivas envolvendo meninos como vítima decorre da dificuldade da denúncia, em virtude da discriminação, ou seja, a vítima pode ser rotulada de homossexual.
Não há nenhum motivo para acreditar que esses números não refletem a realidade brasileira. Aqui, só há informações a partir do registro de ocorrências levadas a efeito depois da denúncia, e os dados apurados não são menos impactantes:
90% dos delitos são cometidos por homens que as vítimas amavam, respeitavam, neles confiando;
69,6% dos agressores é o próprio pai;
29,8% é o padrasto;
0,6% é o pai adotivo;
não há registro de abuso por parte de pais homossexuais.
Esses números acabam com alguns mitos: nem o vínculo de sangue nem a orientação sexual têm qualquer significado. Também revelam que o perigo está muito mais dentro de casa, e as crianças são sempre advertidas a terem cuidado com os estranhos: não falar com ninguém na rua, não aceitar balas ou bebidas e muito menos carona de quem não se conhece.
Não faz parte de nossa cultura prevenir os filhos que não deixem ninguém fazer com eles o que os namorados fazem. Sequer as inadequadas cenas de sexo explícito que invadem diariamente a televisão são aproveitadas para fins educacionais. Fica um clima de constrangimento, um silêncio embaraçoso, e a cena é chancelada como aceitável. Como a criança não tem capacidade para estabelecer limites, não consegue reconhecer quem são os atores que podem participar dessas encenações na vida real.
Cabem, agora, os exemplos prometidos.
Denunciado o incesto, normalmente a vítima é institucionalizada enquanto o abusador fica solto, à espera do julgamento do processo criminal, pois, quando o indiciado tem residência fixa e trabalha, não permanece preso durante a instrução do processo.
O sentimento da vítima torna-se bastante ambivalente: sente-se culpada, pois, de um modo geral, é pela mãe responsabilizada pelo esfacelamento da família ou é acusada de ter provocado o abuso. Aliás, essa é a forma que a genitora encontra de livrar-se da culpa por não se ter dado conta do que estava acontecendo. É mais fácil culpar a filha.
Além do sentimento de culpa, surge na vítima a percepção do abandono, pois é ela quem perde a família. Fica em um abrigo enquanto o abusador, muitas vezes, continua convivendo com a família. Claro que isso gera na vítima uma enorme revolta, pois tem a sensação de ser a única punida: está presa enquanto o seu agressor está solto.
Dois episódios verdadeiros retratam as seqüelas geradas por essa situação.
Primeiro exemplo. Institucionalizada a vítima, o pai continuou solto, convivendo com a mãe e as outras irmãs. A vítima ficou com um enorme sentimento de revolta, porque se sentiu a única punida, além de ter a certeza de que o genitor passou a manter contato sexual com as outras filhas. Após um ano e meio em que permaneceu abrigada, seu pai foi condenado por estupro presumido, à pena de seis anos. Mas ela sequer tomou consciência dessa condenação, pois perdeu completamente o controle mental e até hoje está internada em um nosocômio por distúrbios psíquicos. O réu, depois de cumprir uma parcela da pena, foi solto e voltou a residir com a família.
No segundo exemplo, a filha também foi institucionalizada, e a mãe separou-se do pai. Ele acabou absolvido por falta de provas, fato, aliás, dos mais comuns. Por culpar a filha, a mãe abandonou-a no abrigo onde estava internada. Quando completou 18 anos, precisou sair do abrigo e, como não tinha para onde ir, foi procurar o genitor - o único referencial de afeto que lhe sobrou, achando que saberia defender-se dele.
Esses relatos levam a questionar se institucionalizar a vítima é a solução. Será que, nessa espécie de delito, a forma de punir o réu é colocá-lo na cadeia ou a melhor saída é punir a vítima afastando-a da família?
Quem sabe a solução não esteja na chamada justiça restaurativa?
Já está mais do que provado que o encarceramento não é a forma de recuperar ninguém, principalmente em se tratando de delito sexual contra menores. São os réus discriminados pela população carcerária, que tem um código de honra e não tolera a convivência com eles.
O indispensável que não só o réu como também a vítima e todos os componentes da família sejam submetidos a acompanhamento psicológico. Neste tipo de delito, das poucas certezas que existe é que a vítima certamente será um abusador.
Evidentemente, a solução não é fácil.
Todos continuam a tratar da família como comercial de margarina, o modelo de família feliz, bem-estruturada, a sagrada família, que deve ser preservada como a célula mãe da sociedade.
Por ser praticado no silêncio do lar, o incesto é um crime que todos escondem, parece ser um fato sobre o qual ninguém pode falar, que não se deve discutir. É um crime que todos insistem em não ver, pois ninguém acredita que existe.
Está na hora de acabar com o pacto de silêncio e enfrentar esse que é um dos crimes mais democráticos, pois atinge a família de todas as classes sociais e níveis culturais.
Nesse tipo de delito, a polícia acaba sendo conivente com o infrator, pois sempre procura culpabilizar a vítima, e o altíssimo índice de absolvições gera a consciência da impunidade. O juiz quer testemunhas para ter certeza da existência de crime que acontece entre quatro paredes e busca provas materiais quando não há vestígios. Não dá valor aos laudos sociais e psicológicos que, de forma eloqüente, mostram que os danos psíquicos são a mais evidente prova da prática do crime.
Há uma enorme dificuldade de emprestar credibilidade à palavra da vítima. Quando são crianças, costuma-se pensar que elas usam da imaginação ou que foram induzidas pela mãe a mentir. Quando são adolescentes, acredita-se que elas provocaram o abusador, seduziram-no, insinuaram-se a ele, justificando, assim, a prática do delito. Mostram os juízes uma certa excitação ao inquirirem as vítimas e sempre perguntam se elas sentiam prazer, como se esse fato tivesse alguma relevância para a configuração do delito. Com isso, a responsabilidade pelo crime passa a ser atribuída à vítima, e não ao réu. E, de uma maneira surpreendente, a absolvição por falta de provas é o resultado na imensa maioria dos processos.
Olvidam-se todos que o incesto é um crime cujo início é marcado por uma relação de afeto, um vinculo de confiança. São práticas que começam com carinhos, toques e carícias que a vítima recebe de uma pessoa que ela ama, que ela respeita e à qual deve obediência.
Todas as pessoas gostam de carinho, principalmente crianças, que não têm como imaginar a intenção de ordem sexual. Afinal, criança não tem malícia. Aliás, faz parte de sua vivência ver gestos afetivos na televisão, nos filmes, nas praças, e isso gera uma erotização prematura da vítima, que é despertada precocemente para a sexualidade. Assim, a correspondência afetiva e até o gozo, que não pode ser chamado de prazer de ordem sexual, não podem ser atribuídos à vítima, que a isso foi induzida de forma indevida.
Ao depois, tal delito não é praticado com o uso de violência, e, quando a vítima se dá conta de que se trata de uma prática erótica, simplesmente o crime já se consumou. A vítima é pega de surpresa e surge o questionamento de quando foi que tudo começou, vindo junto a vergonha de contar o que aconteceu, o sentimento de culpa de, quem sabe, ter sido conivente. Surge, então, o medo de não ser acreditada. Afinal, o agressor é alguém que ela quer bem, que todos querem bem, que a mãe e toda a família amam e respeitam, pois geralmente é um homem honesto e trabalhador, sustenta a família, é benquisto na sociedade e respeitado por todos. Quem daria credibilidade à palavra da vítima?
O abusador passa a cobrar o silêncio e a cumplicidade da vítima, colocando em suas mãos a mantença da estrutura da família e a sua própria liberdade. Leva-a a acreditar que a genitora vai ficar com ciúme, pois ele a ama mais do que à mãe, e ninguém vai entender esse amor "especial". Muitas vezes, a vítima sujeita-se em virtude da ameaça do abusador de que ele passará a manter relações incestuosas com as outras filhas menores, o que inibe a denúncia. Resta o medo de provocar o esfacelamento da família e, com isso, gerar dificuldades a todos. Assim, receia ser afastada de casa, tendo de ir para um abrigo. Também teme ser acusada de ter seduzido o agressor, ser questionada de por que não denunciou antes. Assim, cala por medo de ser considerada culpada pelo que aconteceu.
No atual processo penal, a vítima é ouvida mais de uma vez e, em cada depoimento, revive os fatos, sofrendo nova violência. É revitimizada cada vez que precisa relatar perante estranhos tudo o que aconteceu. No fim, como já está cansada de repetir a mesma história, de ser sempre perguntada sobre aquilo que quer esquecer, mente para terminar logo com tudo aquilo. Essas contradições geralmente ensejam um juízo de absolvição por ausência de prova...
Assim, mesmo vencendo todas essas barreiras, a denúncia do incesto não leva nem à prisão provisória do abusador nem muito menos garante sua condenação.
Talvez não caiba aqui perguntar por que ocorre o incesto. Mas é óbvio que o modelo da família patriarcal, em que o homem exerce o poder, e todos os seus membros lhe devem obediência, facilita a ocorrência do incesto, que acaba por merecer a chancela da própria família, da sociedade e do Estado. Concorre também para isso o sentimento de menos valia que sempre cercou a mulher, historicamente considerada propriedade do homem.
Ainda que seja uma prática que acompanha a história da humanidade, parece estar havendo um aumento da violência sexual incestuosa. Essa impressão, no entanto, não é verdadeira. O que está ocorrendo é uma maior visibilidade da violência contra a mulher.
A condição de absoluta sujeição a que sempre foram submetidas as mulheres fez com que todos os temas do universo feminino também ficassem submersos. A mulher foi educada para ser obediente, dócil, recatada. Foi criada para casar, sabendo que deveria sempre ceder ao desejo sexual do marido, submetendo-se ao débito conjugal.
Como as mulheres sequer tinham acesso à educação, não havia como seu interior ser revelado. A participação das mulheres no mundo das letras permitiu que elas passassem a denunciar a violência sexual de que historicamente sempre foram vítimas, inclusive desde a tenra idade no ambiente doméstico. Por isso, não se pode negar o decisivo papel do movimento feminista, que, ao buscar a igualdade, fez emergir tudo o que havia de podre no reinado feminino do lar.
Com o desenvolvimento da sociedade, o homem passou a ter maior participação no cuidado com os filhos, e essa aproximação vem despertando o sentimento paternal de modo mais intenso, o que leva ao afastamento do desejo de ordem sexual.
Mas algo precisa ser feito.
Está na hora de romper o pacto de silêncio.
É necessário por um fim à erotização precoce da infância deve acabar, pois isso banaliza a sexualidade e torna as crianças presas mais fáceis do abuso sexual.
E a responsabilidade é nossa.
Quando falo nossa, estou referindo-me a todos que participam desta família, que se chama IBDFAM e que conseguiu mudar o perfil do Direito de Família. Pluralizamos o próprio conceito de família. Passou-se a falar em Direito das Famílias, para mostrar que merecem reconhecimento todas as estruturas de convívio marcadas pelo vínculo de afetividade.
Resgatamos a imagem do profissional que lida com a Família. Fomos nós quem mostrou a necessidade de trazer a interdisciplinaridade para dentro da Justiça, como instrumento indispensável para lidar com o ramo mais humano do Direito.
Abraçamos inúmeras bandeiras, mudamos muitos conceitos, trouxemos a Justiça para bem mais perto da realidade da vida.
Agora temos de arrancar de vez a venda da Justiça.
É preciso tratar não só com a família que aparece nas propagandas de margarina: todos alegres e felizes desde manhã cedo... Precisamos chamar a atenção da sociedade de que a família não é exclusivamente um lugar de afeto, um lugar seguro, a sagrada família, que a todos protege. É necessário desencadear uma grande campanha de conscientização da própria família para os problemas que existem dentro da família.
Vamos romper o círculo do silêncio.
A Constituição Federal assegura, com absoluta prioridade, proteção integral a crianças e adolescentes. Isso significa que elas se tornaram sujeitos de direito, isto é, têm o direito de serem ouvidas, de serem acreditadas. E a proteção integral nem sempre está garantida quando se fecha a porta da casa.
É preciso sensibilizar os meios de comunicação, capacitar professores, realizar congressos, cursos e palestras, fazer campanhas nas escolas.
Enquanto a sociedade não acreditar que existe o abuso sexual intrafamiliar, não vai sequer enxergar o que muitas vezes está na sua frente. A professora não vai perceber o que está retratado em um desenho, nem a mãe vai dar a devida importância a uma lágrima. Ninguém vai saber buscar ajuda.
É mister dar efetividade à determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente que torna obrigatória a notificação, ao Conselho Tutelar, de casos de maus tratos contra crianças e adolescentes (ECA, art. 13). A omissão de médicos e professores constitui infração administrativa sujeita a pena de multa (ECA, art. 245).
Mas é necessário urgentemente proibir os conselheiros tutelares e os policiais civis ou militares de ouvirem as vítimas. Não devem chamá-las, não podem inquiri-las. De todo descabido que crianças e adolescentes alvo de abuso sexual sejam questionadas na sede dos conselhos ou no recinto da delegacia, enquanto, muitas vezes, o abusador aguarda do lado de fora. A vítima terá de enfrentá-lo na saída, pois vão voltar para casa. Ela não sabe se a mãe vai dar crédito às suas palavras. Assim, ao receber qualquer denúncia de abuso os conselheiros tutelares precisam encaminhar a vítima ao Juizado da Infância e Juventude. A polícia, ainda que instaure o inquérito policial, não deverá ouvi-la no recinto da delegacia. Deve solicitar que ela seja ouvida por um técnico e em ambiente adequado.
Também é necessário capacitar os conselheiros tutelares, pois eles precisam acompanhar de perto todos os casos em que há qualquer indício envolvendo abuso sexual. Como inúmeras vezes não ocorre a prisão do abusador nem a vítima é institucionalizada, os conselheiros precisam fazer visitas domiciliares regulares, pois as vítimas precisam sentir-se seguras.
Recomendável a criação de juizados ou varas especializadas para os processos em que crianças e adolescentes são vítimas de abuso sexual. Essas varas devem centralizar todas as demandas que decorrem desse fato, não só a ação criminal contra o agressor. Também ali cabe tramitar os processos de competência do ECA bem como os afeitos à jurisdição de Família: destituição do poder familiar, guarda, visitas, alimentos, etc. Mas é preciso qualificar os magistrados, agentes do Ministério Público e defensores para trabalharem nesses juizados especializados.
Cabe ao IBDFAM recomendar aos Tribunais de Justiça de todos os Estados a instalação desses juizados bem como, a exemplo do que já existe no Rio Grande do Sul, da sala denominada "Depoimento sem Dano". Trata-se de um ambiente adequadamente equipado, em que a vítima é ouvida por um psicólogo ou assistente social. O depoimento é acompanhado por vídeo, na sala de audiência, pelo juiz, pelo representante do Ministério Público, pelo réu e seu defensor, que dirigem as perguntas, por meio de uma escuta, a quem está ouvindo a vítima e insere o questionamento durante a conversa. O DVD com o depoimento é anexado ao processo. Assim, a vítima é ouvida uma única vez e seu depoimento pode ser assistido inclusive no Tribunal quando do julgamento do recurso.
As vítimas sabem que sua manifestação está sendo acompanhada, e o mais surpreendente desta experiência é que elas, ao final, sempre acabam fazendo um pedido, um apelo: pedem justiça!
A este pedido não podemos deixar de responder.
A responsabilidade de dar uma resposta é de todos nós: precisamos acabar com o mito do silêncio, com a consciência da impunidade, com a imagem idealizada da família feliz.
Vamos continuar a fazer o que fizemos até agora desde que resolvemos criar o IBDFAM: lutando por uma Justiça mais justa.
Maria Berenice Dias é vice-presidente nacional do IBDFAM e desembargadora do Tribunal de Justiça do RS. |
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