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“Sharenting”: a superexposição de conflitos intrafamiliares envolvendo crianças e adolescentes na Internet e suas consequências jurídicas
Laís Mello Haffers[1]
Maria Fernanda Vaiano[2]
O termo “sharenting”, corresponde ao aglutinamento das palavras em língua inglesa “share” (compartilhar) e “parenting” (parentalidade), para fazer alusão a prática excessiva de compartilhamento na internet, por pais ou responsáveis, de imagens e informações sobre a vida da criança ou adolescente, seu cotidiano e até mesmo de conteúdo de processo judicial em que o tutelado é o infante. O universo digital traz, portanto, novos contornos aos atritos familiares.
A exposição que antes estava limitada a participação em programas de televisão, por exemplo, na rede mundial de computadores ganhou uma dimensão estrondosamente maior, sobretudo, com a popularização das redes sociais, não sendo possível prever o alcance da informação, por quanto tempo a publicação se pendurará ou sequer controlar efetivamente o que é exposto. As postagens cujo assunto remetem a menores de idade têm consequências ainda incertas para o seu desenvolvimento, podendo comprometer a sua intimidade, a sua vida privada, a sua segurança, a sua honra, e o direito à sua imagem.
O cenário se intensifica ainda mais quando o conteúdo postado se refere a dados de processo judicial, com a finalidade de atingir o outro genitor, cuja premissa de segredo de justiça norteia a demanda judicial justamente para salvaguardar as partes. Submeter os conflitos intrafamiliares, expondo a vida dos filhos e a íntima relação familiar como um todo, ao crivo do “tribunal da internet”, carrega consigo, na maioria das vezes, discursos de ódio e outras manifestações prejudiciais ao desenvolvimento sadio dos infantes.
Ao assim fazerem, esses pais (ou responsáveis) além de violarem o segredo de justiça previsto no artigo 189 do Código de Processo Civil, ofendem também o artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente, isto é – vale frisar à exaustão –, a intimidade/imagem/privacidade da criança que, obviamente, ainda não tem condições de consentir ou não com tamanha exposição, tornando-se instrumento para obter likes e visualizações em meio a disputa judicial perpetuada por seus genitores.
A Convenção sobre os Direitos da Criança também resguarda tal direito no âmbito internacional, ao dispor que: “Nenhuma criança deve ser submetida a interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida particular, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem a ataques ilegais à sua honra e à sua reputação” (art. 16). Sobre o tema, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) publicou artigo acerca dos danos sofridos pelas crianças devido à exposição feita pelos pais em redes sociais[3]:
A exposição exagerada de informações sobre crianças representa uma ameaça à intimidade, vida privada e direito à imagem, como dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Somado a isso, todo conteúdo publicado na internet gera dados que, no futuro, podem ser desaprovados pelos filhos, por entenderem que sua vida privada foi exposta indevidamente durante a infância [...]
O coordenador do Grupo de Trabalho de Saúde Mental da SBP, o médico Roberto Santoro, alerta que o sharenting traz perigos objetivos e subjetivos ao desenvolvimento da criança: “Acho que a gente tem que partir primeiro de uma questão de princípio. A vida da criança não pertence aos pais. Eles são promotores do desenvolvimento da criança e do adolescente e têm que zelar por esse desenvolvimento, para que ocorra de uma maneira coerente e equilibrada, rumo a uma idade adulta em que a pessoa consiga se realizar plenamente de acordo com os seus potenciais” [...]
Já na opinião do médico Santoro, não há como minimizar os riscos da exposição exagerada de crianças na internet. Para ele, esse público não deve ser exposto nas redes.
É legítima, pois, a preocupação quanto à exposição exacerbada de um menor de idade nas redes sociais. Os interesses da criança devem se sobrepor a quaisquer outros, e a ambos os genitores compete preservar o filho do conflito parental, razão pela qual a prática do sharenting se distancia do exercício adequado da parentalidade responsável disposta no artigo 229 da Constituição da República.
Os próprios cânones atuais garantem a proteção dos infantes neste sentido, ao prever, tanto no artigo 227 da Constituição Federal, quanto nos artigos 17 e 100, V, do Estatuto da Criança e do Adolescente tutela aos direitos e meios efetivos de cuidado quando da violação de aspectos inerentes à exposição da criança e do adolescente. Inclusive, o sharenting, em alguns casos, pode acarretar responsabilidade parental, uma vez que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos, mesmo em face dos próprios pais, dada a adoção da proteção integral.
Nos termos do art. 5º, inciso X da Lei Maior: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Também no Código Civil há tutela da matéria quando, em seus artigos 20 e 21, o legislador atrela a imagem humana ao direito de personalidade, que desfruta de proteção e estabelece que a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a essa norma.
Há que se ter em mente também que o artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece como dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Ainda, nas ocasiões de superexposição, a Lei Estatutária prevê a possibilidade de aplicação de infração administrativa (art. 249). Não obstante, havendo descumprimento da providência jurisdicional, é possível a fixação de astreintes a fim de que a tutela específica seja efetivada, de forma a compelir os condenados ao adimplemento, com supedâneo no artigo 536 do Código de Processo Civil.
Ademais, há também dois enunciados em que o melhor interesse e o respeito aos direitos fundamentais da criança e do adolescente assumem posição de pedra angular, podendo estes auxiliarem o operador do Direito na atuação de casos de sharenting, cumprindo papel de diretrizes interpretativas:
Enunciado 39 do IBDFAM - A liberdade de expressão dos pais em relação à possibilidade de divulgação de dados e imagens dos filhos na internet deve ser funcionalizada ao melhor interesse da criança e do adolescente e ao respeito aos seus direitos fundamentais, observados os riscos associados à superexposição.
Enunciado 691 da IX Jornada de Direito Civil – A possibilidade de divulgação de dados e imagens de crianças e adolescentes na internet deve atender ao seu melhor interesse e ao respeito aos seus direitos fundamentais, observados os riscos associados à superexposição.
Por último, a exposição virtual dos filhos pode também caracterizar um ato ilícito, passível de responsabilização dos pais, já que caracterizado o exercício disfuncional da função parental, em consonância ao estabelecido nos artigos 186 e 187 do Código Civil. Para além da reparação civil, é igualmente cabível as tutelas contra o ilícito previstas no artigo 497, parágrafo único, do Código de Processo Civil e artigos 12 e 20 do Código Civil, para que sejam adotadas medidas que visem a exclusão, limitação de conteúdo ou alcance das postagens.
Portanto, na hipótese da reprovável conduta de um genitor que expõe o filho na internet não cessar, poderão ser adotadas providências judiciais com a finalidade de coibir a veiculação da sua imagem. A título exemplificativo, poderá o infrator ser advertido, ter suspensa a convivência com o tutelado, convertida a guarda em seu desfavor, condenado a pagar multa, condenado a indenizar o lesado etc. Além disso, a conduta pode ser tipificada como hipótese de violação a direito da criança e do adolescente, sujeita a penalidades pertinentes.
[1] Mestra em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro da Comissão de Família e Sucessões da OAB Campinas. Advogada no Vaiano Advogados.
[2] Mestranda em Direito Empresarial na Fundação Getúlio Vargas (FGV). MBA – Direito da Economia e da Empresa, Fundação Getúlio Vargas (FGV). Membro do Grupo de Estudos de Empresas Familiares da Fundação Getúlio Vargas – DIREITO SP (GEEF – FGV – Direito SP). Membro da Comissão de Estudos de Família e Sucessões do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Sócia Fundadora do Vaiano Advogados.
[3] Conforme se extrai em consulta ao site: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-09/exposicao-excessiva-de-criancas-em-redes-sociais-pode-causar-danos
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