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A ilusão da verdade: como narrativas emocionais podem sabotar processos de família
No âmbito dos processos judiciais, a narrativa desempenha um papel crucial na construção do discurso das partes. Ela constitui o fio condutor que alicerça os fatos, os argumentos e os pedidos apresentados em juízo. No entanto, a depender do conteúdo e da forma como é estruturada, essa narrativa pode ser tanto um poderoso instrumento de convencimento quanto um ponto de fragilidade para quem a invoca.
A narrativa nos processos judiciais não se limita à exposição dos fatos, mas envolve a maneira como esses fatos são interpretados, organizados e contextualizados. Ela reflete não apenas uma versão dos acontecimentos, mas também a forma como essa versão é apresentada, com base nos valores e na percepção da realidade de quem a constrói. Nesse sentido, a narrativa judicial é um meio de persuasão que busca alinhar fatos com a legislação aplicável para levar o julgador a uma conclusão favorável (ou desfavorável).
Em muitos casos, a narrativa se torna a coluna vertebral do processo, sustentando as demais alegações e pedidos. Quando bem construída, ela é capaz de trazer à tona nuances importantes, contextualizar ações e revelar verdades que podem estar escondidas em detalhes aparentemente irrelevantes. No entanto, quando a narrativa é concebida de maneira fragilizada ou com base em fatos incertos ou mal fundamentados, ela pode minar a confiança do julgador naquilo que está sendo apresentado.
O grande risco da narrativa é que, quando ela abraça toda a razão de ser do processo, sua fragilidade pode colocar em xeque o desfecho pretendido. A depender da força que é dada à narrativa central, todas as outras alegações tornam-se dependentes da aceitação daquela versão específica dos fatos. Isso gera uma vulnerabilidade significativa: se a narrativa for questionada ou desconstruída, todo o arcabouço argumentativo que dela depende pode desmoronar.
Um exemplo clássico da importância e do risco da narrativa é encontrado nos processos de guarda e família, onde os relatos pessoais e emocionais das partes são fundamentais. As alegações de maus-tratos, abuso emocional ou alienação parental constituem, em muitos casos, o cerne da narrativa que busca convencer o juiz de que um ambiente não é adequado para as crianças. No entanto, tais alegações, quando não acompanhadas de provas materiais robustas, podem se tornar um ponto fraco.
Narrativas centradas em acusações de maus-tratos ou negligência, por exemplo, embora graves e potencialmente decisivas, carecem de uma base de sustentação sólida, como laudos médicos ou psicológicos, para serem aceitas. Em sua ausência, a narrativa pode ser vista como frágil ou até mesmo manipulativa, o que pode reverter o impacto inicialmente esperado. É nesse ponto que a narrativa pode se voltar contra quem a apresentou.
A vulnerabilidade das narrativas que se concentram em acusações emocionais, sem um suporte probatório claro, reflete um problema estrutural nos processos judiciais: o risco de excessiva dependência de uma única versão dos fatos. Quando o processo inteiro é construído em torno de uma narrativa que depende da aceitação de um relato emocional, sem uma diversificação nas provas e argumentos, ele se torna excessivamente suscetível a críticas e contra-argumentações.
No campo da psicologia jurídica, sabe-se que relatos de abuso ou de violência emocional são, muitas vezes, difíceis de comprovar de forma objetiva. Em razão disso, as narrativas que se baseiam nesses relatos acabam por carregar uma fragilidade inerente, que demanda uma atenção especial para não cair em descrédito. A exigência de que a narrativa seja validada por laudos periciais ou por outras provas contundentes mostra a complexidade desse tipo de argumentação.
Quando uma parte apresenta uma narrativa desse tipo sem a devida base probatória, o risco de ser acusada de alienação parental ou de estar manipulando a situação é grande. Essa inversão pode, por si só, prejudicar seriamente a credibilidade da parte. O que era para ser uma defesa robusta se torna um obstáculo, e a narrativa, em vez de proteger, acaba por prejudicar.
O papel do advogado, ao construir os fatos na peça processual, deve ser de extrema cautela e responsabilidade. Não se trata apenas de relatar os fatos, mas de ponderar quais aspectos da narrativa são passíveis de comprovação e quais podem suscitar dúvidas no julgador. Uma narrativa bem construída é aquela que não depende exclusivamente da aceitação subjetiva dos relatos emocionais, mas se baseia também em provas concretas, depoimentos, documentos e laudos técnicos que a sustentem.
O risco da narrativa em processos judiciais reside, em última análise, na subjetividade da percepção dos fatos. O julgador deve ser convencido, não apenas pela coerência lógica, mas pela força probatória. Se a narrativa se concentra em temas emocionalmente sensíveis, ela precisa ser embasada por uma rede de provas que torne sua desconstrução improvável.
Outro aspecto a ser considerado é que a narrativa, quando não adequadamente fundamentada, pode abrir espaço para que a parte contrária desconstrua e reinterprete os fatos de maneira ainda mais convincente. Isso é particularmente perigoso quando a narrativa central do processo não possui flexibilidade para adaptação. Se a versão apresentada é extremamente rígida e falha em algum ponto, não há espaço para uma estratégia de reposição.
Em casos de guarda, por exemplo, a narrativa de maus-tratos, se não comprovada, pode facilmente ser revertida em uma acusação de má-fé ou tentativa de manipulação do judiciário. Esse risco aumenta quando a parte contrária consegue demonstrar que as acusações são exageradas ou sem fundamento.
Nos casos em que a narrativa emocional ocupa o centro do processo, a expectativa de verdade se torna ainda mais elevada. O julgador, ao analisar um relato de abuso ou violência, estará atento não apenas à consistência interna do discurso, mas também à verossimilhança das provas apresentadas. O desequilíbrio entre a narrativa e a prova pode ser fatal para o sucesso da demanda.
Narrativas excessivamente dependentes de acusações ou de relatos emocionais muitas vezes demonstram uma fragilidade estrutural, que só se evidencia quando a parte contrária começa a contrapor os fatos. O que parecia ser uma versão irrefutável pode se revelar insuficiente, uma vez que os argumentos emocionais nem sempre possuem a força necessária para superar as contradições probatórias.
Assim, a narrativa processual deve sempre ser construída com a precaução de diversificar as fontes de prova, não se limitando a relatos subjetivos ou emocionais. A conexão entre narrativa e realidade probatória é essencial para garantir que o processo não se torne vulnerável à desconstrução.
Por fim, a narrativa no processo judicial deve ser encarada como uma ferramenta de estratégia consciente, onde o equilíbrio entre emoção, relato e prova é fundamental para o sucesso. O excesso de dependência de uma única versão dos fatos, sem o suporte necessário, pode ser o maior obstáculo para a própria vitória processual.
Autor: Igor Emanuel da Silva Gomes, advogado, professor, especialista em Direito Civil e Processual Civil pela FGV, especialista em Direito Notarial e Registral, autor de 5 obras jurídicas e diversos artigos. @igoremanuel_oficial (Instagram). igoremanuel.adv@gmail.com (e-mail).
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