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Flexibilização do direito real de habitação vidual: caráter humanitário e social
Carlos Eduardo Elias de Oliveira
Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024).Advogado, parecerista e árbitro. Pós-Doutorando em Direito Civil (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito (UnB). Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-Advogado da União. Ex-Assessor de Ministro do STJ. Pós-graduado em Direito Notarial e Registral. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Instagram: @profcarloselias. E-mail: carloseliasdeoliveira@yaho.com.br
1. Introdução
Neste artigo, apontamos estestrês parâmetros a serem observados para a flexibilização do direito real de habitação vidual[1], previsto no art. 1.831 do Código Civil:
(1) proteção do viúvo de avançada idade;
(2) proteção a longos relacionamentos conjugais ou convivenciais; e
(3) proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros.
Para facilitar, transcrevemos o referido dispositivo:
Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.
A reflexão vemem momento oportuno. É que, na terça-feira passada (24/09/2024), fruto de elevada sensibilidade e da vasta experiência que singularizam os Ministros da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), nasceu interessantíssimo julgado sobre o tema (STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 24/09/2024).
O julgado tratou de uma situação absolutamente excepcional de flexibilização do referido direito vidual, a demonstrar que, por vezes, o magistrado precisa imprimir interpretação restritiva a dispositivos pelo fato de a lei dizer mais do que queria (plus dixit quamvoluit).
O caso foi relatado pela experiente Ministra Nancy Andrighi e contou com a adesão unânime dos igualmente experientes Ministros Humberto Martins, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro.
À vista disso, é extremamente conveniente aprofundar o debate sobre a mitigação do direito real de habitação vidual, especialmente para afastar eventual ilação que leitores mais eufóricos e incautos poderiam tirar no sentido de que o STJ teria infertilizado esse instituto.
A esses mais afoitos reportamosuma advertência feita pela Ministra Nancy Andrighi durante o seu voto. Após realçar que a flexibilização feita no caso é absolutamente excepcional, fruto das particularidades do caso concreto, a Ministra alertou, in verbis:
.... eu procurei gravar e fixar bem a excepcionalidade. Para não dizerem que eu estou rechaçando o direito de habitação, (...) eu repeti na ementa duas vezes [a excepcionalidade]. Logo, na excepcional situação examinada, deve-se flexibilizar o direito real de habitação em favor dos herdeiros.[2]
Passamos a expor os parâmetros a serem observados para a flexibilização do direito real de habitação vidual, levando em conta o recente julgado do STJ. Além da leitura do julgado e de acompanhar a sessão de julgamento, consultamos o inteiro teor dos autos para maior precisão da base fática julgada pelo STJ.
Por fim, embora não seja o foco deste artigo, apontamos que, em casos de flexibilização do direito real de habitação vidual, parece-nos absolutamente necessário respeitar o ambiente de dúvida jurídica razoável. Desse modo, somente após a decisão judicial definitiva, é que se poderá invocar qualquer efeito decorrente de posse de boa-fé. Sobre o tema, reportamo-nos a outro artigo nosso[3].
2. Parâmetros para a flexibilização do direito real de habitação vidual
De modo extremamente excepcional, o direito real de habitação vidual pode ser flexibilizado quando, à luz das particularidades do caso concreto, não coadunar com seu caráter humanitário e social.
É preciso verificar cada caso concreto, pois o afastamento do direito real de habitação vidual é excepcionalíssimo. Não se pode esvaziar hermeneuticamente o texto do art. 1.831 do CC banalizando essa flexibilização, sem que haja uma mudança legislativa efetiva[4].
Entendemos que três parâmetros devem ser levados em conta:
(1) proteção do viúvo de avançada idade;
(2) proteção a longos relacionamentos more uxorio; e
(3) proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros.
O parâmetro da proteção do viúvo de idade avançada veda a mitigação do direito real de habitação quando o viúvo tiver idade avançada, independentemente da condição financeira sua ou dos demais herdeiros.
Para tal efeito, consideramos pessoa de idade avançada aquela com idade superior a 55 anos. Isso, porque essa idade é fruto da média aritmética de três referências legislativas indicativas de idade avançada: a idade mínima do viúvo para a vitaliciedade da pensão por morte[5], a idade mínima para aposentadoria[6] e a idade indicada pelo Estatuto da Pessoa Idosa[7]. Trata-se da idade em que a pessoa presumidamente já reclama maior estabilidade patrimonial por conta do próprio ciclo natural da vida.
De fato, a proteção da pessoa de idade avançada não é apenas por razões patrimoniais, mas também emocionais e psicológicas. Afastar o direito real de habitação do art. 1.831 do CC para sujeitar uma pessoa de avançada idade ao transtorno de ter de buscar uma nova moradia contraria o próprio caráter humanitário desse direito. Não é razoável acrescer a uma pessoa de idade avançada já combalida pela perda do cônjuge mais uma dor: a de ter de sair da casa em que vivia.
Além disso, considerando que o direito real de habitação se extingue com a morte e tendo em vista a expectativa de vida média dos indivíduos, a verdade é que esse direito do viúvo não representará grande peso aos demais herdeiros. Diferente seria se o viúvo fosse jovem.
Por fim, temos ainda de levar em conta que estamos a tratar de sucessão mortis causa: os demais herdeiros nada estariam a receber se o falecido tivesse sobrevivido mais tempo. Não é razoável forçar interpretação restritiva do art. 1.831 do CC para beneficiá-los em detrimento de quem viveu mais intimamente com o falecido até seu último dia, dedicando-se com trabalhos de cuidado em seu favor. Aliás, a própria conservação do imóvel deve também ser atribuído a esse trabalho invisível (o trabalho de cuidado) exercido pelo viúvo, ainda mais quando se tratar de mulher, que ainda cumula as tarefas de cuidado na prática social brasileira.
O segundo parâmetro é o da proteção a longos relacionamentos more uxorio(conjugais ou convivenciais), segundo o qual não se deve flexibilizar o direito real de habitação do art. 1.831 do CC quando o viúvo tiver mantido um longo relacionamento com o falecido.
Consideramos longo relacionamento aquele com mais de 21 (vinte e um) anos. Isso, porque, presumidamente nesse lapso de tempo, o casal terá dedicado os seus maiores esforços em prol da família, com eventual criação de filho. O tempo de 21 anos é tomado emprestado da legislação previdenciária, que estima essa idade como parâmetro para extinção da pensão devida a filhos menores do casal[8].
Nesses casos, é irrelevante se o viúvo tem ou não condições financeiras de arcar com outra moradia.
Isso, por dois principais motivos.
De um lado, o direito real de habitação do art. 1.831 do CCprotege o vínculo afetivo com um local que guarda memórias profundas da família. Nas palavras de Flávio Tartuce, citado pela Ministra Nancy Andrighi, esse direito resguarda o “vínculo afetivo e psicológico estabelecido pelos cônjuges ou companheiros com o imóvel em que, no transcurso de sua convivência, constituíram não apenas uma residência, mas um lar” (voto neste julgado: STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 24/09/2024).
De outro lado, o direito legal é um reconhecimento da sua longa dedicação ao falecido e ao lar. Essa dedicação, inclusive, pode ter colaborado até mesmo para o falecido ter conseguido preservar ou conquistar o patrimônio. De fato, os trabalhos de cuidado não podem ser desprezados pelo Direito das Sucessões, dentro do paradigma atual de prestígio à Economia do Cuidado[9]. Eventual desventura financeira dos demais herdeiros – que presumidamente decorre de suas escolhas ou de sua falta de sorte – não pode ser invocada para derrubar o direito de quem, por longos anos, às custas de sacrifícios pessoais, dedicou-se ao cuidado mais íntimo do falecido.
O terceiro parâmetro é o da proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros.
À luz desse parâmetro, a flexibilização do direito real de habitação não deve acontecer quando os demais herdeiros dispuserem de situação financeira confortável ou quando esses herdeiros estiverem em situação de vulnerabilidade por conta de uma escolha por uma vida de poucas responsabilidades (como no caso de filhos que desprezaram as oportunidades de estudos e de trabalho que receberam de seus pais por preferirem um caminho de menor responsabilidade).
Isso, porque não soa condizente com a equidade forçar uma interpretação restritiva do art. 1.831 do CC para beneficiar o capricho dos demais herdeiros em detrimento do viúvo. É irrelevante se o viúvo também está em condições financeiras confortáveis. Esse parâmetro dialoga com o princípio da proteção simplificada do luxo[10], com o princípio de amparo às pessoas vulneráveis[11] e com os primados de autonomia privada.
3. Compatibilidade da jurisprudência do STJ com os três parâmetros de flexibilização do direito real de habitação vidual
O STJ caminha no sentido acima, conforme o único julgado do STJ que flexibilizou o direito real de habitação (STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 24/09/2024).
Não é possível generalizar nada, porque só há um julgado do STJ, e a 4ª Turma ainda haverá de se manifestar. Seja como for, enxergamos que o referido julgado indica um pendor do STJ em seguir os três parâmetros que indicamos acima.
Nesse julgado, por unanimidade, os Ministros rejeitaram o direito real de habitação vidual sobre um imóvel de classe média[12] em que a viúva residia com o falecido.
A viúva era uma jovem senhora de 52 anos que não tinha filhos e que havia ficado com uma expressiva e vitalícia pensão por morte (o falecido era procurador federal) após 16 anos de casamento.
O único bem financeiramente relevante no espólio era esse imóvel, adquirido pelo falecido por herança no curso do casamento[13].
Com isso, o STJ beneficiou os dois únicos filhos do falecido, que ficaram com a propriedade plena da integralidade do imóvel[14]. Eles não dispunham de imóvel próprio e viviam de aluguel com os 5 netos (ainda menores de idade à época do falecimento).
Foi decisivo, no julgamento, o fato de, ao tempo da abertura da sucessão, tanto o fato de os filhos estarem em situação patrimonial vulnerável quanto o fato de a viúva ser uma jovem senhora com uma pensão vitalícia elevada e com idade próxima aos filhos unilaterais do falecido. Em princípio, como o direito real de habitação só se extinguiria com a morte da viúva, os filhos do falecido dificilmente fruiriam efetivamente do bem que receberam por herança.
Entendemos que a flexibilização do direito real de habitação vidual aí observou os três parâmetros que defendemos: (1) a viúva não era pessoa de idade avançada, ou seja, não tinha mais de 55 anos; (2) o seu casamento durou menos de 21 anos; e (3) os demais herdeiros estavam em situação de vulnerabilidade financeira sem que tenha havido capricho deles.
[1] A palavra “vidual” significa relativo a viuvez.
[2] Fala da ministra durante a sessão de julgamento às 2h21min deste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=0oKrKqzEK64.
[3]OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Dúvida jurídica razoável como excludente de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa e de outros remédios contra ilícitos civis: comentários a um julgado do STJ. In: Revista IBERC, v. 3, n. 1, p. 1-19, jan-abr de 2020-P (Disponível em:https://revistaiberc.responsabilidadecivil.org/iberc/article/view/102/83).
[4]A propósito de eventual mudança legislativa, o Anteprojeto de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/24) sugere que o referido dispositivo passe a ser textual em condicionar a subsistência do direito real de habitação do viúvo à sua incapacidade financeira em custear uma moradia digna sem prejuízo do próprio sustento. O texto sugerido é este: Art. 1.831. Ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente queresidia com o autor da herança ao tempo de sua morte, será assegurado, qualquer que seja o regime de bens e sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação, relativamente ao imóvel que era destinado à moradia da família, desde que seja o único bem a inventariar. § 1º Se ao tempo da morte, viviam juntamente com o casal descendentes incapazes ou com deficiência, bem como ascendentes vulneráveis ou, ainda, as pessoas referidas no art. 1.831-A caput e seus parágrafos deste Código, o direito de habitação há de ser compartilhado por todos. § 2º Cessa o direito quando qualquer um dos titulares do direito à habitação tiver renda ou patrimônio suficiente para manter sua respectiva moradia, ou quando constituir nova família (Disponível em: https://legis.senado.leg.br/atividade/comissoes/comissao/2630/).
[5] 44 anos (art. 222, VII, “6”, da Lei nº 8.112/1990; art. 77, § 2º, V, “6”, da Lei nº 8.213/1991).
[6] 62 anos para mulher e 65 anos para o homem, o que dá uma média de 62,5 anos (art. 40, III; art. 201, § 7º, I, da CF).
[7]60 anos (art. 1º da Lei nº 10.741/2003).
[8] Art. 77, § 2º, II, da Lei nº 8.212/1991; art. 221, IV, da Lei nº 8.112/1990.
[9] Para aprofundamento: Para aprofundamento: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, maio 2024 (Disponível em: www.senado.leg.br/estudos).
[10]OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto para Discussão nº 254). Disponível em: www.senado.leg.br/nepleg. Acesso em 4 dezembro 2018.
[11]OLIVEIRA, Carlos E. Elias de.Princípio do amparo às pessoas vulneráveis no Direito Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/415857/principio-do-amparo-as-pessoas-vulneraveis-no-direito-civil. Publicado em 25 de setembro de 2024.
[12] Tratava-se de um imóvel no famoso bairro Glória, Rio de Janeiro.
[13] Dados obtidos dos autos: data do óbito: 15/09/2004; Data de nascimento da viúva, do falecido, do filho1 e do filho2: 22/07/1952, 21/08/1936, 31/01/1984 e 13/10/1965. Data do casamento: 20/01/1988.
[14] A Corte de origem não reconheceu direito hereditário à viúva sobre o imóvel, apesar de ela ser casada no regime da comunhão parcial de bens. Adotou entendimento superado do art. 1.829, I, do CC.
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