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Desafios da Herança Digital na Preservação da Reputação de Figuras Públicas Falecidas
Guilherme Thiodoro: Acadêmico do 10º período do Curso de Direito, Rede de Ensino Doctum – Juiz de Fora/MG.
Resumo: A herança digital emergiu como um elemento crucial no cenário das plataformas de redes sociais, onde não apenas gera lucro, mas também atua como um acervo que documenta a trajetória pessoal dos indivíduos ao longo de suas vidas. Por meio de um estudo qualitativo, este artigo explora os desafios específicos da herança digital quando se trata de figuras públicas. A pesquisa foca na gestão complexa da herança digital, abordando aspectos como o comportamento online dos herdeiros e a preservação adequada das obras digitais. Além disso, o estudo examina as implicações legais e éticas envolvidas na administração da herança digital, discutindo como essas questões impactam a reputação e o legado de figuras públicas. O artigo também sugere diretrizes para melhorar a gestão e regulamentação da herança digital, visando uma abordagem mais eficaz e equilibrada para enfrentar esses desafios contemporâneos.
Palavras-chave: Herança Digital; Direito Sucessório; Figuras Públicas; Preservação Digital.
Abstract: Digital heritage has emerged as a crucial element in the landscape of social media platforms, where it not only generates profit, but also acts as a collection that documents the personal trajectory of individuals throughout their lives. Through a qualitative study, this article explores the specific challenges of digital heritage when it comes to public figures. The research focuses on the complex management of digital heritage, addressing aspects such as the online behavior of heirs and the adequate preservation of digital works. Furthermore, the study examines the legal and ethical implications involved in managing digital inheritance, discussing how these issues impact the trust and legacy of public figures. The article also suggests guidelines to improve the management and regulation of digital heritage, shifting towards a more effective and balanced approach to addressing these contemporary challenges.
Keywords: Digital Heritage; Inheritance Law; Public Figures; Digital Preservation.
Introdução:
Com a crescente digitalização da sociedade, o Direito Sucessório enfrenta novos desafios, especialmente no que se refere à herança digital. Este conceito abrange os ativos intangíveis de uma pessoa, como perfis de redes sociais e dados financeiros, que ganham relevância significativa no caso de figuras públicas. A presença digital dessas personalidades tem um impacto que transcende o valor econômico, influenciando a percepção pública e a preservação de seu legado.
Apesar dos esforços legislativos para adaptar o Código Civil a esses novos ativos, ainda existem lacunas na regulamentação, particularmente no que diz respeito à administração ética e legal dos bens digitais de figuras públicas. A falta de diretrizes claras pode levar a abusos e à gestão desrespeitosa dos ativos digitais, comprometendo tanto a memória pública quanto os direitos de personalidade.
Portanto, é essencial estabelecer normas específicas para a herança digital, garantindo uma administração adequada que respeite a dignidade e o legado das figuras públicas, equilibrando os interesses dos herdeiros com a preservação da memória e da integridade dos ativos digitais.
Herança Digital:
O Direito Sucessório, enquanto ramo jurídico em constante evolução, está se adaptando aos avanços tecnológicos e à crescente digitalização da sociedade. Nesse contexto, observa-se um movimento em direção ao reconhecimento da herança digital, que abrange a transmissão de bens e ativos que não possuem existência física, mas que são essenciais no mundo virtual.[1]
A herança digital, por ser um conceito pouco destacado no cenário jurídico atual, ainda é abordada de forma limitada pelo Código Civil. Segundo a legislação vigente, entende-se que os bens digitais podem ser tratados de maneira análoga aos bens físicos, que já são regulamentados pelo direito sucessório. No entanto, atualmente, a ausência de uma regulamentação em vigor específica para a herança digital pode gerar ambiguidades e dificuldades na gestão desses ativos intangíveis após o falecimento de uma pessoa.[2]
Atualmente, o anteprojeto de lei que visa revisar e atualizar a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil, propõe uma regulamentação e um conceito mais preciso sobre o que é considerado um bem digital no contexto sucessório:
Art. 1.791-A. Os bens digitais do falecido, de valor economicamente apreciável, integram a sua herança.
§ 1º Compreende-se como bens digitais, o patrimônio intangível do falecido, abrangendo, entre outros, senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais, contas, arquivos de conversas, vídeos e fotos, arquivos de outra natureza, pontuação em programas de recompensa ou incentivo e qualquer conteúdo de natureza econômica, armazenado ou acumulado em ambiente virtual, de titularidade do autor da herança.
§ 2º Os direitos da personalidade e a eficácia civil dos direitos que se projetam após a morte e não possuam conteúdo econômico, tais como a privacidade, a intimidade, a imagem, o nome, a honra, os dados pessoais, entre outros, observarão o disposto em lei especial e no Capítulo II do Título I do Livro I da Parte Geral, bem como no Livro de Direito Civil Digital.
§ 3° São nulas de pleno direito quaisquer cláusulas contratuais voltadas a restringir os poderes da pessoa de dispor sobre os próprios dados, salvo aqueles que, por sua natureza, estrutura e função tiverem limites de uso, de fruição ou de disposição.
Contudo, apesar do crescente interesse do legislativo em regulamentar a questão sucessória dos bens digitais, ainda não foram estabelecidos limites éticos claros para a administração desses bens após a morte do falecido. Há uma preocupação evidente quanto à distribuição do patrimônio entre os herdeiros, sejam eles legítimos ou testamentários, mas os limites de uso dos bens herdados permanecem indefinidos. O mesmo ocorre com o artigo 1.912 do anteprojeto de lei do Código Civil:
Art. 1.912.
Parágrafo único. Podem ser objeto de legado bens corpóreos e incorpóreos, inclusive aqueles de natureza existencial.
Art. 1.918-A. O legado de bens digitais pode abranger dados de acesso a qualquer aplicação da internet de natureza econômica, perfis de redes sociais, canais de transmissão de vídeos, bem como dados pessoais expressamente mencionados pelo testador no instrumento ou arquivo do testamento.
§ 1º É possível a nomeação de administrador aos bens digitais, sob a forma de administrador digital, por decisão judicial, negócio jurídico entre vivos, testamento ou codicilo.
§ 2º Se houver administrador digital, nomeado pelo autor da herança ou por decisão judicial, ficam os bens digitais submetidos à sua administração imediata até que se ultime a partilha, com a obrigação de prestação de contas.
Figuras Públicas:
É válido ressaltar que o conceito de herança digital transcende a mera questão econômica. Os bens digitais possuem um valor emocional significativo, refletindo os registros e memórias da pessoa que faleceu. Esses ativos digitais, que podem incluir fotos, vídeos, mensagens e perfis em redes sociais, carregam consigo uma carga afetiva importante para os familiares e amigos do falecido. A gestão e a transmissão desses bens digitais, portanto, não devem ser encaradas apenas sob a perspectiva financeira, mas também como uma forma de preservar e honrar a memória e o legado pessoal deixado por aqueles que partiram.[3]
Quando o tema da herança digital envolve figuras públicas, o legado e a memória dessas personalidades assumem uma responsabilidade ainda maior. O cenário digital, que desempenha um papel crucial na formação de opinião e na influência da massa, amplifica o impacto das ações relacionadas a essas figuras. As redes sociais, por sua vez, têm uma importância significativa na influência sobre o consumo, especialmente quando envolvem influenciadores digitais. A relevância dessas plataformas na dinâmica do capitalismo é notável, mas a falta de uma regulamentação adequada pode comprometer a preservação da memória e da cultura de pessoas falecidas.[4]
Mesmo após o falecimento de figuras públicas, muitas contas continuam ativas, com ações realizadas pelos administradores das contas relacionadas às interações no Instagram dos perfis das cantoras Marília Mendonça (@mariliamendoncacantora), Gal Costa (@galcosta) e Rita Lee (@ritalee_oficial). As publicações, que podem ser tanto públicas quanto removidas, bem como as curtidas e as movimentações de pessoas que seguem ou deixam de seguir essas contas, criam a sensação de que essas pessoas falecidas ainda estão presentes no meio digital.
No ambiente virtual, a internet possibilita a formação de uma subjetividade que parece "desencarnada", onde os indivíduos se tornam desconectados do tempo e da história. Essa dinâmica inclui a interação com representações de pessoas falecidas como se ainda estivessem vivas, revelando uma forma de subjetividade que não mantém uma conexão real com o passado ou com a presença física das pessoas.[6]
Da mesma forma, a empresa Facebook oferece a possibilidade da transformação de contas de pessoas já falecidas em memorial no Instagram. As contas transformadas em memorial servem como um espaço para recordar a vida de uma pessoa falecida e apresentam características específicas. Uma vez que uma conta é convertida para esse status, ninguém pode acessar a conta para realizar alterações. A expressão "Em memória de" será exibida ao lado do nome da pessoa no perfil. As publicações anteriores, incluindo fotos e vídeos compartilhados pelo falecido, permanecem visíveis ao público com o qual foram originalmente compartilhadas, mas não podem ser modificadas. Além disso, as contas como memoriais não aparecem em seções como o “Explorar”. Após a transformação em memorial, não é possível alterar fotos de perfil, comentários em postagens, configurações de privacidade, ou a lista de seguidores e pessoas seguidas.[5]
Conclusão:
Considerando que a herança digital não pode ser analisada exclusivamente sob a ótica econômica, é fundamental reconhecer a complexidade e a importância da preservação da memória de figuras públicas nas redes sociais. Esta responsabilidade vai além de aspectos financeiros e envolve a proteção dos direitos de personalidade dos indivíduos falecidos.
No entanto, a legislação atual, incluindo o anteprojeto em discussão, ainda não define claramente os limites éticos e legais para a administração das contas de redes sociais de pessoas falecidas pelos herdeiros. A falta de uma regulamentação específica cria uma lacuna significativa, permitindo que a gestão dessas contas seja feita de maneira subjetiva e muitas vezes desrespeitosa.
Sem diretrizes claras, os herdeiros têm a liberdade de publicar e remover conteúdo das contas dos falecidos sem uma supervisão adequada. Isso não só afeta a integridade da memória e do legado digital dos indivíduos, como também abre espaço para a violação dos direitos de personalidade. A ausência de regulamentação pode resultar em abusos, como a divulgação de informações privadas ou a modificação de conteúdo que não refletem a vontade do falecido.
Portanto, é imperativo que se estabeleçam normas e diretrizes claras para a gestão de contas de redes sociais após o falecimento de uma pessoa. Tais regulamentações devem assegurar que a preservação da memória e do legado digital seja feita de maneira ética e respeitosa, protegendo os direitos de personalidade e evitando possíveis abusos por parte dos herdeiros ou de terceiros. A criação de um marco regulatório específico contribuirá para um equilíbrio adequado entre o direito à privacidade dos falecidos e as necessidades dos herdeiros, garantindo que a herança digital seja tratada com a dignidade e o respeito que merece.
[1] TARTUCE, Flávio. Herança digital e sucessão legítima: primeiras reflexões. Online at Migalhas website (link), accessed on, v. 20, 2018. Acesso em: 14 set. 2024.
[2] FIGUEIREDO DE LIMA CALDAS, L. M.; RODRIGUES MEDEIROS MITCHELL DE MORAIS, R. M. HERANÇA DIGITAL BENS VIRTUAIS COMO PATRIMÔNIO SUCESSÓRIO. Revista de Estudos Jurídicos do UNI-RN, [S. l.], n. 3, p. 121, 2019. Disponível em: https://revistas.unirn.edu.br/index.php/revistajuridica/article/view/657. Acesso em: 14 set. 2024.
[3] VASCONCELOS, Nícolas de Pinho; SOUZA, Cássio Bruno Castro. HERANÇA DIGITAL NO DIREITO SUCESSÓRIO. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, [S. l.], v. 10, n. 6, p. 4333–4351, 2024. DOI: 10.51891/rease.v10i6.14755. Disponível em: https://periodicorease.pro.br/rease/article/view/14755. Acesso em: 14 set. 2024.
[4] BARBOSA, Nathalia Sartarello. O reflexo da sociedade do hiperconsumo no Instagram e a responsabilidade civil dos influenciadores digitais. Revista Direitos Culturais, v. 13, n. 30, p. 73-88, 2018. Acesso em: 14 set. 2024.
[5] PREFACE to Representative Poetry Online Version 2.0. 1996. Disponível em: [https://www.facebook.com/help/instagram/231764660354188]. Acesso em: 14 set. 2024.
[6] MOREIRA, Jacqueline de Oliveira. Mídia e Psicologia: considerações sobre a influência da internet na subjetividade. Psicologia para América Latina, n. 20, p. 0-0, 2010. Acesso em: 14 set. 2024
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