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Divisão periódica de lucros de quotas de sociedade limitada através de tutela de urgência em ação de divórcio
Ana Beatriz Viana , advogada, pós graduada em Direito Tributário pela FGV. Atuação em direito das famílias e sucessões, com ênfase em demandas relacionadas a patrimônio.
RESUMO: O presente artigo trata sobre a possibilidade de concessão de tutela de urgência em ação de divórcio litigioso com partilha de bens, para divisão periódica de lucros à cônjuge casado sob o regime de comunhão parcial de bens e meeiro de quotas de sociedade limitada, sendo deferido o direito do cônjuge não sócio ao recebimento dos dividendos na proporção da sua meação sobre as quotas, até que seja realizada a apuração dos haveres, que só pode ser feita após a sentença de partilha no divórcio. Tal medida é acautelatória e visa evitar que o cônjuge não sócio sofra prejuízo exacerbado, necessitando aguardar todo o deslinde do processo de divórcio litigioso para que após a sentença de partilha promova a apuração dos haveres, enquanto o cônjuge sócio recebe de forma exclusiva os frutos da pessoa jurídica que, por força do regime de bens, é comum. Pretende-se, neste artigo, demonstrar que tal possibilidade é amparada pelo ordenamento jurídico e já vem sendo admitida pela jurisprudência pátria ao longo dos últimos anos.
PALARAS-CHAVES: Divórcio – sociedade limitada – quotas – dividendos
ABSTRACT: The following article deals with the possibility of granting emergency relief in a contested divorce action with division of assets, for the periodic division of profits to the married spouse under the regime of partial community of assets and sharecropper of shares in a limited company, being deferred the right of the non-member spouse to receive dividends in accordance to their shares, until the assets are determined, which can only be done after the sharing decision in the divorce. This measure is precautionary and aims to prevent the non-partner spouse from suffering an exacerbated loss, needing to wait for the full outcome of the litigious divorce process so that after the sharing decision, the assets can be determined, while the partner spouse receives exclusively the fruits of the legal entity that, due to the property regime, is common. The goal of this article is to demonstrate that this possibility is supported by the legal system and has already been accepted by Brazilian jurisprudence over the last few years.
KEYWORDS: Divorce – limited liability company – shares – dividends
Como se sabe, no regime da comunhão parcial de bens, amparado pelo art. 1.658 do Código Civil, os bens adquiridos onerosamente por qualquer dos cônjuges durante a constância do casamento, serão objeto de partilha na hipótese de um divórcio.
Com efeito, no referido regime, na hipótese de um dos cônjuges ter adquirido onerosamente quotas de sociedade limitada após a constância do casamento, tais quotas serão objeto de partilha no divórcio.
Nesse caso, não há discussão quanto ao direito do cônjuge não sócio de receber a meação a que faz jus sobre a quota do cônjuge sócio. Discussão há, todavia, sobre a forma que o cônjuge não sócio receberá tal meação. Isto porque, em regra, salvo disposição em contrário no contrato social da empresa, não se admitirá o ingresso do cônjuge na sociedade, por força do princípio do affectio societatis, segundo o qual ninguém é obrigado a associar-se. Ou seja, uma vez que um dos cônjuges adquira quotas de limitada na constância do casamento, havendo o divórcio, o cônjuge não sócio não se tornará sócio da empresa, mas se tornará detentor do direito à meação sobre o valor patrimonial da quota pertencente ao cônjuge sócio.
Neste sentido, o divórcio do cônjuge sócio não confere ao seu ex-cônjuge o direito de ingressar na sociedade, mas tão somente de receber a meação sobre as quotas de titularidade daquele que é sócio na limitada. Contudo, a forma como essa meação será paga é objeto de grandes controvérsias doutrinárias, já que atualmente existem dois dispositivos legais aplicáveis.
O artigo mais antigo que trata sobre a questão é o 1.027 do Código Civil/2002, que assim prevê: “os herdeiros do cônjuge de sócio, ou o cônjuge do que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade”.
Por sua vez, o art. 600 do Código de Processo Civil/2015, parágrafo único, prevê: “o cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento, união estável ou convivência terminou poderá requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio”.
A discussão doutrinária e jurisprudencial gira em torno da aplicabilidade de tais artigos, eis que existem teorias que sustentam que o artigo do CPC, por ser posterior, revogou o do Código Civil, de modo que a forma do cônjuge não sócio requerer a meação a que faz jus sobre as quotas objeto de partilha seria através de processo de apuração de haveres, a ser ajuizado após a sentença de partilha do divórcio, a fim de que seja investigado o valor da quota pertencente ao cônjuge, que deverá indenizar o ex consorte com metade do valor equivalente, não havendo mais que se falar, portanto, em divisão periódica de lucros ao ex cônjuge até que se liquide a sociedade, como dispõe o art. 1.027 do Código Civil. Sobre o tema, leciona o escritor Rafael Camon:
Embora o dispositivo assegure direito à concorrência na divisão periódica dos lucros, sempre houve descontentamento a respeito da proibição de o não sócio exigir o imediato pagamento da expressão pecuniária das cotas titularizadas pelo sócio. Isto porque, permitir que ele pedisse a dissolução total da sociedade, seria algo extremamente egoístico, pois faria um direito individual preponderar sobre o direito social da continuidade e preservação da empresa, reconhecido como um verdadeiro princípio implícito em nossa Constituição Federal. Por outro lado, aguardar-se a liquidação da sociedade é algo que poderia se tornar insustentável no caso concreto, até porque isso poderia nem vir a ocorrer, caso os demais sócios não tivessem tal intenção. (CALMON, 2024, p. 209).
De acordo com o referido autor, o art. 600 do CPC, revogou o art. 1.027 do CC, na medida em que, aquele, ao contrário deste, permite que o ex-consorte do sócio exija a parte que lhe caiba na cota social sem necessitar pedir a dissolução total da sociedade ou aguardar a sua liquidação, o fazendo através do processo de apuração de haveres, que deve ser ajuizado após a sentença de divórcio que reconheça o direito do cônjuge não sócio à meação sobre as quotas.
Outras teorias, todavia, propõem uma interpretação sistemática dos dois artigos, afastando a possibilidade de revogação tácita do art. 1.027 do Código Civil, já que o art. 600, parágrafo único do CPC, dispõe que o cônjuge “poderá” requerer a apuração de haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada pelo sócio, ou seja, trata-se de uma possibilidade facultada ao cônjuge, que poderia também escolher pela divisão periódica de lucros até a liquidação da sociedade, nos moldes do que prevê o Código Civil.
Outro resultado da interpretação sistemática dos dois artigos seria a possibilidade do cônjuge requerer a divisão periódica de lucros, até que se liquide a sociedade ou até que seja findada a apuração de haveres, após a sentença de divórcio que reconhece o direito do ex cônjuge à meação sobre as quotas da sociedade limitada. Essa nos parece a teoria mais acertada. Convém citar a lição da professora Natália Cristina Chaves sobre o tema:
O art. 600, parágrafo único do CPC, dispõe que o cônjuge de sócio poderá requerer a apuração de haveres sociais, e não que deverá. Trata-se, pois, de uma faculdade, e não de uma imposição legal. Destarte, enquanto não realizada a apuração dos haveres sociais a que o ex cônjuge de sócio tem direito, em virtude de quotas sociais recebidas na partilha de bens conjugais, ele poderá exercer os direitos patrimoniais decorrentes das titularidades das aludidas quotas, incluindo-se o direito ao recebimento de dividendos. (CHAVES, 2018, P. 289).
Cumpre ressaltar que este artigo não se propõe a aprofundar tais teorias, mas sim chamar atenção para a possibilidade, que já vem sendo admitida pela jurisprudência, de concessão de tutela de urgência nos autos da própria ação de divórcio com partilha de bens, para divisão periódica de lucros de sociedades limitadas na proporção das quotas do cônjuge meeiro.
Isto porque, como se sabe, a sentença que confirma a meação do ex- cônjuge, não raros casos demora muito a ser proferida, em razão da própria natureza do processo de divórcio de litigioso, que exige uma longa discussão de mérito, o que prejudica o cônjuge não sócio, que precisará esperar longos anos para poder receber o valor a que faz jus sobre as quotas do ex-consorte, o que facilita, inclusive, possibilidade de fraude à partilha, já que neste tempo o cônjuge sócio pode operar manipulações patrimoniais a fim de falsear o real valor das quotas objeto de partilha.
Com efeito, até que a sentença de divórcio seja proferida, conferindo ao cônjuge meeiro a possibilidade de apurar os haveres da sociedade, a fim de investigar o valor da quota da qual é meeiro e requerer o pagamento da metade equivalente, é razoável que aquele receba os lucros da limitada na constância do processo de divórcio, na proporção da meação a que faz jus.
Assim, a concessão da tutela de urgência para a percepção dos lucros pelo ex-cônjuge é uma medida acautelatória, que garante ao meeiro o recebimento dos frutos proporcionais às quotas a que possui direito, até que apure os haveres, após sentença de mérito no divórcio, e receba o equivalente pecuniário.
Cumpre ressaltar que os requisitos necessários para a concessão da tutela de urgência, nos moldes do art. 300 do CPC, quais sejam, probabilidade do direito e perigo da demora, geralmente estão presentes, já que a probabilidade do direito pode ser demonstrada pelo contrato social, que comprova que, tendo sido as quotas adquiridas onerosamente após a data do casamento por um dos cônjuges, faz jus o outro à respectiva meação.
O perigo da demora, por sua vez, pode ser demonstrado pelo prejuízo que o cônjuge pode sofrer em seu patrimônio caso deixe de auferir os lucros das quotas cuja meação faz jus, necessitando esperar uma longa análise de mérito que lhe garanta o direito à meação, e lhe possibilite o ajuizamento de processo de apuração dos haveres, o que pode demorar anos, e pode facilitar manipulações patrimoniais pelo cônjuge sócio com o fim de frustrar a partilha do ex.
A jurisprudência pátria tem amparado a referida tese, conforme se vê dos julgados abaixo colacionados:
Agravo de instrumento. Divórcio litigioso. Partilha de bens. Decisão que concedeu em parte a tutela de urgência, determinando o repasse à requerente de metade dos lucros da empresa constituída na constância da sociedade conjugal. Inconformismo do réu. Não cabimento. Empresa constituída na constância do matrimônio. Bem a princípio integrante da comunhão, conforme o art. 1.660, I, do CC. Direito do cônjuge divorciado à percepção periódica dos lucros, até que se ultime a partilha. Aplicação do art. 1.027 do CC. Decisão mantida. Recurso a que se nega provimento.(TJ-SP - AI: 21852942820228260000 Porto Ferreira, Data de Julgamento: 17/04/2023, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/04/2023) – grifo nosso.
AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL COM PARTILHA DE BENS, GUARDA, REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS – ACESSO AO FATURAMENTO DA EMPRESA CONSTITUÍDA NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL – FIXAÇÃO DE PRO LABORE – POSSIBILIDADE – DECISÃO MODIFICADA – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Cabível a concessão da tutela antecipada quando presente a verossimilhança das alegações e, prescindível dilação probatória para verificar a possibilidade de divisão dos lucros mensais auferidos pela empresa constituída durante a união estável. Enquanto os bens do casal não são partilhados, concorre o outro consorte à divisão periódica dos lucros referente à parte que lhe couber nas quotas sociais da empresa constituída durante a união estável, nos termos do artigo 1.027 do Código Civil . Na hipótese, se revela razoável o deferimento da tutela de urgência para determinar que o recorrido pague mensalmente o valor à recorrente, a título de pro labore, mormente quando comprovado o volume de negócios realizados pela empresa em data anterior a dissolução da união estável.(TJ-MT - AI: 10132336420238110000, Relator: DIRCEU DOS SANTOS, Data de Julgamento: 25/10/2023, Terceira Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 31/10/2023)
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL C\C PARTILHA - PEDIDO DE REFORMA EM CONTRARRAZÕES - VIA INADEQUADA - NÃO CONHECIMENTO - AQUISIÇÃO DE QUOTAS SOCIAIS DE SOCIEDADE EMPRESÁRIA - ALEGAÇÃO DE ANTERIORIDADE DA SOCIEDADE - CONTRATO SOCIAL PROVA A AQUISIÇÃO NO PERÍODO DA UNIÃO ESTÁVEL - PRESUNÇÃO DE VERACIDADE DO INSTRUMENTO LEGAL DE CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE NÃO DESCONSTITUÍDA - PARTILHA DEVIDA - ART. 1.027 DO CCB - DIREITO AO RECEBIMENTO DOS LUCROS ATÉ A INDENIZAÇÃO PELAS QUOTAS DEVIDAS - POSSIBILIDADE - RECURSO NÃO PROVIDO. 1. O instrumento processual adequado à impugnação da sentença é a apelação (artigo 1.009, CPC), razão pela qual não se conhece de irresignação formulada em contrarrazões a fim de obter a reforma do pronunciamento judicial, exceto quando se tratar de questão de ordem pública, passível de conhecimento a qualquer tempo e grau de jurisdição. 2. É o contrato social o instrumento formal adequado a comprovar a data do ingresso de novo sócio na sociedade empresária, devendo ser considerada a data nele consignada de aquisição das quotas sociais para fins de aferição do direito da ex-companheira à partilha. 3. Comprovado que as quotas sociais foram conquistadas durante a união estável, afasta-se a tese de incomunicabilidade. 4. Nos termos do disposto no art. 1.027 do CCB, a ex-companheira não pode exigir desde logo a parte que lhe couber na quota social, devendo concorrer à divisão periódica dos lucros até que seja indenizada pela parte que detém da sociedade, o que deverá ser apurado em liquidação de sentença. (TJ-MG - AC: 10042160023554002 Arcos, Relator: Afrânio Vilela, Data de Julgamento: 18/05/2021, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 27/05/2021) – grifo nosso.
Com efeito, defende-se que, a despeito do disposto no art. 600 do CPC acerca da possibilidade do ex-cônjuge de sócio requerer a apuração dos seus haveres na sociedade, sem necessidade de aguardar a liquidação da empresa ou de pedir a sua dissolução, entende-se que ainda é possível a aplicação do art. 1.027 do CC no que diz respeito à divisão periódica de lucros, ou seja, ao recebimento de dividendos até que seja ou liquidada a sociedade ou apurado os haveres, recebendo o cônjuge o equivalente pecuniário à metade do valor da quota.
Com esta interpretação, protege-se o direito do ex-conjuge do sócio de sociedade limitada, cujas quotas são objeto de partilha, já que o consorte não sócio concorrerá, no decorrer do processo de divórcio litigioso e até que os haveres sejam apurados, à divisão periódica dos lucros na proporção das quotas a que faz jus, não ficando assim o cônjuge sócio na condição extremamente vantajosa de auferir de forma unilateral os frutos do patrimônio comum enquanto se aguarda a sentença de partilha com posterior apuração de haveres.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 março 2015.
CALMON, Rafael. Manual de Partilha de bens: no divórcio e na dissolução da união estável. 5 ed. São Paulo: SaraivajUR, 2024. 392 P.
CHAVES, Natalia Cristina. Casamento, divórcio e empresa: questões societárias e patrimoniais. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2018. 320 p.
MATO GROSSO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento em Ação de Reconhecimento e Dissolução de União Estável nº 1013233-64.2023.8.11.0000. Partes: P.B.F.S x D.A.F.S. Data de Julgamento: 25/10/2023, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 31/10/2023. Disponível em: < Tribunal de Justiça do Mato Grosso TJ-MT - Agravo de Instrumento: AI 1013233-64.2023.8.11.0000 | Jurisprudência (jusbrasil.com.br)>. Acesso em: 10 de junho de 2024.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação em Ação de Dissolução de União Estável nº 1.0042.16.002355-4/002. Partes: J.E.T x H.A.T. Data de Julgamento: 18/052/2021, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: 27/05/2021. Disponível em: < Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJ-MG - Apelação Cível: AC 0023554-39.2016.8.13.0042 Arcos | Jurisprudência (jusbrasil.com.br) >. Acesso em: 10 de junho de 2024.
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento em Divórcio Litigioso nº 21852942820228260000. Partes: L.V.L.D.S x S.M.D.M. Data de Julgamento: 17/04/2023, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/04/2023. Disponível em: <Tribunal de Justiça de São Paulo TJ-SP - Agravo de Instrumento: AI 2185294-28.2022.8.26.0000 Porto Ferreira | Jurisprudência (jusbrasil.com.br) >. Acesso em: 10 de junho de 2024.
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