Artigos
Representação continuada para proteção futura, em paralelo ao testamento vital
Paulo Lôbo
Diferentemente das espécies de testamentos previstas no Código Civil de 2002, desenvolve-se à sua margem a utilização de uma modalidade de testamento, para que produza efeitos não após a morte do testador, mas enquanto estiver vivo, nos momentos que antecedem à morte, ou quando estiver inconsciente em virtude de doença ou intervenção cirúrgica.
Mediante ato expresso, público ou particular, a pessoa declara que não deseja o prolongamento artificial de sua vida, dependente de aparelhos, remédios ou nutrição forçada, ou que, em situações em que venha a perder a consciência de modo prolongado, seus negócios sejam geridos por determinada pessoa e segundo determinadas instruções.
Esse ato tem sido denominado de testamento vital (living will, testement de vie). Foi idealizado pelo advogado americano Luis Kutner, ativista dos direitos humanos e um dos fundadores da Anistia Internacional, no fim da década de 1960, e redundou no Patient Self Determination Act (PSDA), de 1991, lei federal americana que reconhece o direito à autodeterminação do paciente ao living will e ao durable power of attorney for health care (instituição de um procurador para tomar em nome do paciente inconsciente as decisões relativas aos tratamentos e procedimentos de saúde).
Em comum com o testamento, o ato tem natureza de declaração de última vontade. Em diferença com o testamento típico, sua finalidade é a de que os efeitos dessa declaração se deem quando ainda estiver vivo o declarante. Mas isso não constitui óbice legal, uma vez que há hipóteses previstas em que o testamento pode produzir efeitos antes da morte do testador, como o reconhecimento de filiação, ou a designação de tutor ou curador.
O testamento vital enquadra-se nos fundamentos gerais do negócio jurídico, no direito brasileiro. É negócio jurídico unilateral sujeito a condição suspensiva, isto é, o advento de causa, mesmo transitória, que impeça o declarante de exprimir livremente sua vontade. Sua validade é assegurada pelo direito brasileiro, pois, para sua realização, supõe-se a capacidade do agente, a inexistência de forma legal determinada e a licitude do objeto (Código Civil, art. 104), além de não ser resultante de defeito do negócio jurídico (Código Civil, art. 171). No que concerne ao testamento, a aplicação analógica desse instituto é adequada.
No plano da Constituição, encontra fundamento no art. 1º, III (dignidade da pessoa humana), no art. 5º, caput (direito à liberdade), e no art. 5º, III (garantia contra tratamento desumano e degradante). O testamento vital é, pois, negócio jurídico válido de última vontade, haurido da autonomia privada do declarante. A fundamentação ética é relevante e deve ser entendida como de ordem pública. Registre-se o pioneirismo da Lei n. 10.241/1994, do Estado de São Paulo, que dispôs sobre o direito dos usuários dos serviços de saúde do Estado, permitindo que o usuário ou seu representante legal possa exercer o direito de recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para prolongar a vida.
Na perspectiva da filosofia do direito, alguém que esteja ansioso por assegurar que sua vida não seja então prolongada por tratamento médico preocupa-se exatamente por pensar que o caráter de toda sua vida estaria comprometido caso a prolongassem, devendo ser respeitada sua autonomia, segundo Ronald Dworkin, em Domínio da Vida.
Esse é o campo da ortotanásia, ou seja, o direito de viver e morrer em seu tempo adequado e normal, sem sofrimento, quando não há mais condições de a pessoa manter-se viva, segundo os dados atuais de ciência, sem utilização de métodos extraordinários e desproporcionais. Como disse o escritor Jack London, “a verdadeira função do ser humano é viver, não existir. Por isso, não vou desperdiçar os meus dias tentando prolongá-los”. Essa situação dramática recebeu destaque internacional quando o Papa João Paulo II, em 2005, pediu para desligar os equipamentos, de modo a que pudesse morrer em seus aposentos, fora do ambiente hospitalar e dos tratamentos médicos, deixando-se concluir naturalmente o ciclo biológico da vida.
A Suprema Corte norte-americana, em Cruzan by Cruzan v. Director, Missouri Department of Health, de 1990, admitiu o direito de pessoas capazes a rechaçar um tratamento médico que mantenha a vida, como consequência do princípio da liberdade e da privacidade.
O testamento vital pode ser usado em quadros terminais, ou seja, quando a pessoa sofre de um problema grave e incurável e que não responde mais a tratamentos capazes de modificar o curso da doença. O testamento vital apenas deve ser desconsiderado em virtude de mudança das circunstâncias que estiveram presente no momento de sua feitura (rebus sic stantibus), como a evidente desatualização da vontade do outorgante em face do ulterior progresso dos meios terapêuticos, ou se se comprovar que ele não desejaria mantê-lo, em respeito à sua autonomia, presumida na primeira hipótese, expressa na segunda.
Também se insere no âmbito do testamento vital a destinação do próprio corpo, após a morte. Nesse sentido, decidiu o STJ (REsp 1.693.718), que não há exigência de formalidade específica acerca da manifestação de última vontade do indivíduo sobre a destinação de seu corpo após a morte, sendo possível a submissão do cadáver ao procedimento de cremação, em atenção à vontade manifestada em vida
No campo estrito da deontologia profissional, há resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre a matéria. Porém, as normas deontológicas são cânones de conduta profissional, voltadas exclusivamente para a atividade médica, não sendo de observância cogente por parte dos terceiros, sejam eles pacientes ou familiares destes. Os médicos podem recomendá-las, mas não as exigir de seus pacientes. A resolução optou pela denominação de “diretivas antecipadas de vontade”, mas há inteira continência com o testamento vital, com as características que apontamos, sendo este preferencial àquela denominação.
A resolução do CFM estabelece regra problemática, que viola a autonomia do paciente, pois deposita em juízo de valor do médico a observância ou não do testamento vital, ao estabelecer que o médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica. Não cabe ao médico, ou estabelecimento hospitalar, ou familiar a tomada de tal decisão, mas sim ao Poder Judiciário, relativamente à validade ou não do testamento vital e à sua conformidade com o ordenamento jurídico do país, aplicável a todos. Normas deontológicas esgotam-se no âmbito da ética profissional, não refletindo em interesses e direitos das pessoas em geral.
Uma das legislações mais amplas sobre essa matéria foi adotada em Portugal pela Lei n. 25/2012, que estabelece o regime das diretivas antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde, sob a forma de testamento vital, regula a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital. Podem constar do documento as disposições que expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante, tais como a de não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais; a de não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou desproporcionado, ou a alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte; a de receber os cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu direito a uma intervenção global no sofrimento determinado por doença grave ou irreversível, em fase avançada, incluindo uma terapêutica sintomática apropriada; a de não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase experimental; a de autorizar ou recusar a participação em programas de pesquisa científica ou ensaios clínicos. A lei portuguesa estabeleceu prazo de cinco anos para a eficácia do testamento vital, o que reduziu, desarrazoadamente, sua utilidade.
Em paralelo e conexão ao testamento vital, o direito encaminha-se para plena recepção da representação continuada para proteção futura, com objetivo de nomeação de pessoa com plenos poderes para decisões e escolhas relativas aos interesses econômicos e existenciais do representado, inclusive sobre saúde e vida. No âmbito da União Europeia, a Recomendação (2009) 11, do Conselho da Europa, conceitua continuing powers of attorney como mandato dado por adulto capaz com o propósito de que ele permaneça válido e eficaz na ocorrência de sua incapacidade superveniente, fundado na autodeterminação da pessoa. A lei francesa de 2007 denomina-o “mandato de proteção futura”. A Suíça adotou em janeiro de 2013 lei “para proteção dos adultos”, com idênticas finalidades, incluindo as diretivas antecipadas sobre cuidados com a saúde, sem exigências de formas, podendo ficar sob custódia do médico assistente ou de parentes.
No Brasil, o mandato extingue-se pela mudança de estado que inabilite o mandante a conferir os poderes (Código Civil, art. 682, II e III). Contudo, há as regras gerais dos arts. 115 e 116 do Código Civil, os quais preveem que “os poderes de representação conferem-se por lei ou pelo interessado” e que “a manifestação de vontade pelo representante, nos limites de seus poderes, produz efeitos em relação ao representado”.
Essas normas legais aplicam-se a qualquer forma de representação utilizada pelo representado, no exercício de sua autonomia privada, ou à representação legal, não se lhes aplicando as restrições específicas do mandato, constituindo fundamento legal suficiente da representação continuada para proteção futura.
Paulo Lôbo é doutor em Direito pela USP, professor emérito da UFAL, membro fundador do IBDFAM, ex-conselheiro do CNJ e autor de obras em direito civil.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM