Artigos
Autonomia patrimonial para cônjuges acima de 70 anos
[1]Sara Teixeira dos Santos
[2]Erik Silverio Coser
RESUMO
O assunto abordado por este trabalho é, principalmente, o regime patrimonial de bens, inclusive, como é possível o exercício da autonomia privada quando trata-se de cônjuges acima 70 (setenta) anos, especialmente à luz da imposição do regime de separação obrigatória de bens. Para esse propósito, serão realizados estudos com base em leis, decisões judiciais, doutrinas e artigos científicos. Este estudo examina, inclusive, princípios constitucionais, como dignidade da pessoa humana e liberdade individual, contrapondo-os às medidas estabelecidas aos idosos contra possíveis abusos patrimoniais. Além disso, esta monografia menciona a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e sua influência sobre o entendimento jurídico do regime de bens para pessoas nessa faixa etária. Por meio de uma análise crítica, é buscado o equilíbrio da necessidade de proteção com relação à autonomia dos idosos e, também, à autonomia privada.
Palavras-chave: autonomia patrimonial; cônjuges idosos; proteção jurídica; regime de bens.
ABSTRACT
The subject addressed by this work is, mainly, the patrimonial property regime, including how it is possible to exercise private autonomy when it comes to spouses over 70 (seventy) years of age, especially in light of the imposition of the mandatory separation regime of assets. For this purpose, studies will be carried out based on laws, court decisions, doctrines and scientific articles. This study also examines constitutional principles, such as human dignity and individual freedom, comparing them to the measures established for the elderly against possible property abuse. Furthermore, this monograph mentions the recent decision of the Federal Supreme Court (STF) and its influence on the legal understanding of the property regime for people in this age group. Through a critical analysis, a balance is sought between the need for protection in relation to the autonomy of the elderly and, also, private autonomy.
Keywords: patrimonial autonomy; elderly spouses; legal protection; property regime.
1. INTRODUÇÃO
A autonomia da vontade é um princípio fundamental do Direito Civil, que garante aos indivíduos a liberdade de tomar decisões sobre seus próprios interesses, incluindo a escolha do regime de bens no casamento. No entanto, essa autonomia encontra limites legais, especialmente quando se trata da proteção de indivíduos considerados vulneráveis, como os idosos. No Brasil, o Código Civil estabelece que pessoas com 70 anos ou mais são obrigadas a adotar o regime de separação obrigatória de bens ao contrair matrimônio, conforme disposto no artigo 1.641, inciso II. Esta imposição visa proteger o patrimônio dos cônjuges idosos, prevenindo possíveis abusos e fraudes.
A presente pesquisa tem como objetivo analisar a tensão entre a autonomia patrimonial dos cônjuges com mais de 70 anos e a proteção jurídica proporcionada pela imposição do regime de separação obrigatória de bens. Serão examinadas as implicações jurídicas, sociais e econômicas dessa norma, bem como as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que impactam essa questão. A análise pretende proporcionar uma visão crítica sobre a adequação e a eficácia dessa medida legal, ponderando a necessidade de proteger os idosos contra abusos e a importância de respeitar a liberdade de escolha dos indivíduos.
Com base no pensamento de John Locke (1973), naquele contexto, a propriedade privada sendo evidenciada como um direito natural inalienável, faz-se entender que, a autonomia e liberdade dos cônjuges, como a capacidade de, de maneira livre e autônoma, decidirem como desejam administrar seus bens durante o matrimônio. A pesquisa abordará os argumentos a favor e contra a imposição do regime de separação obrigatória, considerando as consequências patrimoniais e sucessórias para os cônjuges.
Dessa forma, neste trabalho, será realizada uma revisão da jurisprudência relevante e proposta uma reflexão sobre a necessidade de ajustes legais que atendam de forma mais equilibrada e justa às demandas individuais, com o objetivo de contribuir para o debate sobre a proteção patrimonial dos idosos e a autonomia da vontade no Direito Civil brasileiro.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. Do pacto nupcial
O casamento é regulamentado por normas imperativas, as quais são consideradas de ordem pública. Isso porque, conforme o artigo 226 da Constituição Federal de 1988, o Estado reconhece a família como a base fundamental da sociedade.
Nesse sentido, vale ressaltar que Rosa Maria de Andrade Nery (2014) explica que a Constituição Federal implementa um sistema de proteção para a formação da família, determinando que o casamento civil deve ser igualitário, monogâmico e formalmente reconhecido. Portanto, com o propósito de legitimar os vínculos interpessoais, o legislador simplifica o processo de transformação da convivência estável em matrimônio.
O pacto nupcial, neste contexto, surge como uma ferramenta jurídica que permite aos cônjuges estabelecerem, de forma prévia, regras sobre a administração e a divisão de seus bens durante o casamento e em casos de separação ou divórcio. Segundo Martins (2019), o pacto nupcial é um instrumento que oferece autonomia aos cônjuges para regulamentar questões patrimoniais, proporcionando segurança e prevenção de conflitos futuros.
Como salienta Maria Berenice Dias (2017), o casamento muitas vezes parece assemelhar-se a um contrato de adesão, no qual a vontade dos noivos é moldada pelas regras estabelecidas por lei. Com isso, entende-se que, ao decidirem unir suas vidas pelo matrimônio, os noivos se deparam com uma série de requisitos a serem cumpridos, exigências essas, que são claramente delineadas pela legislação.
Seguindo essa linha de raciocínio, é evidente que o casamento vai além de uma simples união baseada em afeto, destinada a formar uma família. Na realidade, trata-se de um pacto formalizado por meio de um conjunto de normas rígidas que ambas as partes devem obedecer integralmente, segundo seus requisitos.
Dessa maneira, antes de formalizarem o matrimônio, é necessário que os noivos deliberem sobre como organizarão sua gestão patrimonial conjunta, estabelecerão suas finanças individuais e determinarão a propriedade dos bens que vierem a adquirir durante o casamento. Para isso, há o regime patrimonial de bens, instituído pelo Código Civil.
2.1. Introdução ao regime de bens no casamento
O regime de bens no casamento é uma instituição jurídica que define como os bens dos cônjuges serão administrados e distribuídos durante a união e, eventualmente, após a ocorrência da dissolução do casamento. O Código Civil de 2002, estabelece os regimes que o casal pode adquirir no momento do casamento ou, até mesmo, durante o casamento. São os seguintes: comunhão parcial de bens, comunhão universal de bens, separação de bens e, por último, participação final nos aquestos.
Explicando sucintamente acerca de cada regime, o de comunhão parcial de bens é o padrão legal, aplicado automaticamente na ausência de um pacto antenupcial. Nele, os bens adquiridos após a celebração do casamento são comuns ao casal, exceto aqueles recebidos por herança ou doação, que permanecem como patrimônio individual de cada cônjuge, na forma do artigo 1658 do Código Civil (Brasil, 2002).
Quanto ao regime de comunhão universal de bens, conforme previsto no art. 1667 do Código Civil (Brasil, 2002), todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, assim como suas dívidas, são comuns. Este regime exige a formalização de um pacto antenupcial para ser validado. De acordo com o pensamento de Venosa (2019), a comunhão universal implica em uma comunhão completa de patrimônio, incluindo bens adquiridos antes do casamento.
O regime de separação total de bens, por sua vez, na forma do art. 1641 Código Civil (Brasil, 2002), mantém os patrimônios dos cônjuges completamente separados, tanto os adquiridos antes quanto os adquiridos após o casamento. Cada cônjuge mantém a administração exclusiva dos seus bens.
Já a participação final nos aquestos, previsto no art. 1672 do CC/02 (Brasil, 2002), é um regime híbrido, onde durante o casamento, cada cônjuge administra e possui seus próprios bens, mas em caso de dissolução do casamento, os bens adquiridos onerosamente durante a união são partilhados igualmente.
Os regimes de bens, mencionados acima, são fundamentais para a proteção dos direitos patrimoniais dos cônjuges, como também para a clareza das relações econômicas durante e após o casamento. Conforme o pensamento de Dias (2020), a escolha adequada do regime de bens pode prevenir conflitos e assegurar uma distribuição justa do patrimônio em caso de divórcio.
2.3. Da decisão do regime de bens
Quando ocorre a escolha do regime de bens no casamento, emerge a necessidade crucial de os cônjuges decidirem como organizarão seus patrimônios durante a união. Maria Berenice Dias (2017), afirma que a escolha do regime de bens permite aos casais definir como será a administração e a partilha de seus bens ao longo do matrimônio. Essa decisão não apenas impacta questões financeiras presentes, mas também futuras, influenciando, inclusive, aspectos como herança e responsabilidades patrimoniais.
Seguindo o pensamento de Carlos Roberto (2014), os fundamentos do direito patrimonial de família repousam sobre três princípios, tais são: variedade de regime de bens, mutabilidade de regimes e, por último, da liberdade de escolha.
O primeiro, da variedade de regime de bens, faculta aos cônjuges a escolha entre quatro modalidades de regime patrimonial, que são os de comunhão universal, comunhão parcial, separação total e participação final nos aquestos. Além de selecionar dentre esses quatro regimes, os cônjuges também têm a possibilidade de combinar as normas de diferentes modalidades mencionadas anteriormente.
Quanto ao princípio da mutabilidade de regimes, encontra-se estipulado no artigo 1.639, §2º do Código Civil. Nele, é garantido ao casal a possibilidade de modificar o regime patrimonial escolhido após o matrimônio, visando adaptá-lo à situação atual do casal. Vale mencionar que, essa autorização, dependerá diretamente de autorização judicial e os cônjuges deverão provar que tal pedido é de acordo entre as partes e que não haverá danos a terceiros.
Já com relação ao princípio da liberdade de escolha, sendo este um de grande significância neste trabalho, garante aos cônjuges a possibilidade de elegerem o regime de bens do casamento conforme sua vontade, mediante a celebração de pacto antenupcial. Contudo, essa autonomia, infelizmente não é absoluta, pois embora a legislação brasileira permita ao casal escolher entre os regimes mencionados e combinar suas normas, não é garantido que suas escolhas sejam sempre acatadas.
O Código Civil (2002) regula todas as normas do matrimônio e especifica claramente em seu artigo 1.521 quais são os casos em que o casamento não pode ser celebrado. Nessas circunstâncias específicas, o casamento será nulo perante o ordenamento jurídico e, caso as pessoas envolvidas naquela disposição legal estejam em uma determinada união estável, ela não será equiparada e nem poderá ser posteriormente convertida em casamento.
Existem, no entanto, certas situações em que o legislador determina que os nubentes não devem contrair matrimônio, não por haver algum impedimento legal, mas sim porque há alguma razão que suspende a celebração do casamento naquele momento. Essas hipóteses encontram-se no art. 1523 do Código Civil (2002).
Nesse sentido, verifica-se que o intuito do legislador da hipóteses dos incisos é de proteger tanto os cônjuges, como a família, da posterior confusão patrimonial que poderá ser gerada, caso aconteça o casamento.
As hipóteses do art. 1523, são as circunstâncias nas quais o legislador determina que o casamento não deve acontecer, por ora. No entanto, se os noivos desejarem prosseguir com a união, apesar da existência de uma causa suspensiva, o Código Civil permite que o casamento seja válido, desde que seja observado o regime de bens imposto, que é o da separação obrigatória. Para isso, o art. 1641, Código Civil (2002) assim dispõe:
“Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010)
III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.”
Observando o mencionado artigo acima, verifica-se que o Código Civil estabelece, em determinadas situações, que os cônjuges só poderão contrair matrimônio sob o regime de separação de bens. Ou seja, as pessoas mencionadas nesse dispositivo legal, ao se casarem, não terão a liberdade de escolher o regime de bens, que será obrigatoriamente o de separação de bens.
Vale dizer que, alguns dos juristas, interpretam essa regra como sendo de ordem pública, no entanto, outros acreditam que ela possui um caráter punitivo. Segundo esta última visão, os cônjuges que, mesmo contra a orientação legal, decidirem formalizar a união, serão penalizados com a imposição do regime de separação obrigatória de bens.
Portanto, não é necessário que os futuros cônjuges redijam um pacto antenupcial, como seria exigido para um regime de separação convencional, pois o regime aplicável a eles será sempre o de separação obrigatória de bens. Vale ressaltar que qualquer tentativa de afastar essa norma, através de um pacto antenupcial, será inválida, uma vez que se trata de uma regra imperativa.
Em todas as situações mencionadas anteriormente, no artigo previsto no Código Civil, uma vez eliminada a causa que impôs o regime de separação de bens, os cônjuges poderão ingressar com uma ação para modificar o regime de bens, escolhendo um que melhor se ajuste à sua realidade. Como por exemplo, ao finalizarem o inventário de um matrimônio, alcançarem a maioridade civil, ou encerrarem a tutela ou curatela, os cônjuges terão a possibilidade de alterar o regime patrimonial vigente entre eles.
No entanto, isso não ocorria com relação ao nubente maior de 70 anos, que, de maneira alguma, poderia escolher ou alterar seu regime.
2.4. Da autonomia e proteção patrimonial ao cônjuge maior de 70 anos
Seguindo uma linha de contexto jurídico, a autonomia e a proteção patrimonial ao cônjuge maior de 70 anos estão intimamente ligadas ao princípio da dignidade da pessoa humana e à proteção do idoso, conforme disposto na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003). O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.641, inciso II, estabelece que, as pessoas com mais de 70 anos devem obrigatoriamente adotar o regime de separação total de bens ao contrair matrimônio. Esse dispositivo visa a proteção patrimonial desse grupo etário, prevenindo eventuais abusos econômicos e assegurando que o patrimônio preexistente ao casamento não seja dilapidado.
Nesse caso, vale mencionar que a norma pode ser vista como preconceituosa, considerando que, ao falar acerca da proteção ao idoso, parece ter o propósito, exclusivamente, de resguardá-lo contra casamentos motivados por interesse. Ou seja, isso significa considerarem os maiores de 70 anos como se fossem incapazes ou, de alguma maneira, sem a capacidade de discernimento necessária para se protegerem em relação aos seus relacionamentos.
Note-se que, ao impedir que uma pessoa com mais de 70 anos escolha o regime de bens que deseja adquirir, o legislador não está protegendo diretamente o nubente, e sim o patrimônio dos potenciais herdeiros. Então, o idoso acima de 70 anos não pode dispor livremente de seus bens, assegurando que o patrimônio acumulado ao longo de sua vida seja destinado aos seus descendentes.
Dessa forma, é possível visualizar que trata-se, totalmente, de uma norma discriminatória, considerando que, apenas pelo fato de a pessoa alcançar uma certa idade, o legislador a considera incapaz de escolher o que fazer com o seu patrimônio, este que, ele próprio quem construiu.
Segundo o pensamento de Como bem observa Mairan Gonçalves Maia Junior:
“A Constituição Federal assegura ao maior de setenta anos a possibilidade de exercer profissão liberal ou atividade comercial ou industrial (...) mas a Lei não lhe permite o direito de escolher o regime de bens do casamento (...)”
Ao examinar essa questão, Maria Berenice Dias (2017) afirma, de forma correta, seguindo a mesma linha de raciocínio anterior, que a imposição aos maiores de 70 anos é uma violação ao Estatuto do Idoso, pois essa regra “(...) trata-se de uma presunção ‘juris et de jure’ de incapacidade mental para um único propósito: casar.”. Dessa forma, o idoso acima de 70 anos pode continuar celebrando qualquer tipo de contrato previsto no ordenamento jurídico, exceto o de casamento, como se apenas para esse ato da vida civil ele não estivesse plenamente capaz de efetuá-lo.
Considerando isso, o STF proferiu uma decisão histórica, na qual prevê a modificação dessa anterior obrigatoriedade, o texto, in verbis:
“O Tribunal, por unanimidade, apreciando o Tema 1.236 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator, Ministro Luís Roberto Barroso (Presidente). Em seguida, foi fixada a seguinte tese: “Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoas maiores de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública”. Plenário, 1.2.24.”
No ARE 1.309.642, o STF definiu que nos casamentos e uniões estáveis envolvendo indivíduos maiores de 70 anos, o regime de separação de bens estabelecido pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, pode ser alterado mediante a clara manifestação de vontade das partes, desde que formalizada por meio de escritura pública. Essa decisão já é um grande passo para o reconhecimento da autonomia e da capacidade das partes idosas para decidirem sobre o regime patrimonial de seus relacionamentos, mesmo que isso contrarie a presunção legal estabelecida para aqueles que possuem a idade mencionada.
Ao permitir que os idosos decidam sobre seu regime de bens, reconhece-se o direito dessas pessoas de tomar decisões necessárias sobre sua vida e patrimônio. Isso lhes concede a liberdade de optar pelo regime de bens que melhor se ajuste às suas necessidades e circunstâncias individuais, conforme enfatiza Maria Berenice Dias (2017) ao discutir a capacidade dos maiores de 70 anos de celebrar contratos e tomar decisões importantes.
Pessoas idosas podem ter experiências de vida variadas e necessidades patrimoniais específicas que não são adequadamente atendidas pelos regimes de bens padronizados na legislação. A flexibilidade para escolher um regime de bens diferente permite que essas necessidades sejam mais bem satisfeitas, garantindo que suas experiências e contextos únicos de vida sejam levados em consideração.
Nesse viés, é válido mencionar que, conforme o artigo 1.640 do Código Civil (2002), na ausência de um pacto antenupcial, o regime adotado será o da comunhão parcial de bens. Contudo, no caso em que está sendo tratado neste artigo, o regime de separação obrigatória de bens pode ser imposto, limitando a autonomia dos cônjuges para escolher livremente o regime de bens, a menos que haja uma manifestação expressa de vontade em optar pelo regime da comunhão parcial.
A decisão (ARE 1.309.642) do Supremo Tribunal Federal (STF), ora mencionada, trata precisamente dessa questão, reforçando a necessidade de uma manifestação clara e inequívoca da vontade dos cônjuges para optar por outro regime de bens, a ser escolhido pelo casal. Isso significa que, na ausência de tal manifestação, os cônjuges estariam sujeitos ao regime da separação total de bens, que é regime obrigatório nessas circunstâncias, como nos casos previstos no artigo 1.641 do Código Civil de 2002, onde a autonomia da vontade é restrita por motivos legais específicos.
Vale dizer que, Immanuel Kant (2007) via a autonomia como um imperativo moral, essencial para a liberdade de cada indivíduo. Para Kant, a autonomia da vontade é a capacidade de agir de acordo com princípios que a própria razão escolhe, sem ser forçado por influências externas. Aplicando essa visão ao direito matrimonial, a escolha do regime de bens deve ser uma expressão da liberdade e da vontade dos cônjuges, e não uma imposição tácita.
Dessa maneira, a mencionada decisão, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ao exigir uma manifestação clara e inequívoca dos cônjuges para a adoção do regime da comunhão parcial, está em consonância com a teoria da autonomia da vontade. Isso, garante que a escolha do regime de bens seja uma verdadeira expressão da vontade dos cônjuges.
3. CONCLUSÃO
Com a análise realizada ao longo deste trabalho, fica evidente que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), no ARE 1.309.642, trouxe uma significativa evolução no direito matrimonial brasileiro, ao reconhecer a autonomia da vontade dos cônjuges, quando maiores de 70 anos, para escolherem seu regime de bens. Antes dessa decisão, a imposição do regime de separação obrigatória de bens, conforme o artigo 1.641 do Código Civil, que limitava severamente a liberdade dos cônjuges idosos, tratando-os como incapazes de tomar decisões patrimoniais por si próprios.
A decisão do STF restabelece um princípio fundamental do direito: a autonomia da vontade. Permitindo que os cônjuges maiores de 70 anos manifestem claramente sua vontade de optar por outro regime de bens, como o da comunhão parcial, o Supremo Tribunal Federal reconhece que a capacidade decisória desses indivíduos deve ser respeitada. Esta mudança alinha-se com os princípios defendidos por autores clássicos, inclusive Immanuel Kant ou outros, conforme acima mencionados, que destacam a importância da liberdade e da autonomia individual nas relações jurídicas.
Este reconhecimento da autonomia da vontade proporciona uma série de benefícios práticos e, também, simbólicos. Do ponto de vista prático, os cônjuges idosos agora podem estruturar suas relações patrimoniais de acordo com suas necessidades e circunstâncias específicas, permitindo uma gestão mais eficaz e justa, de acordo com seus pensamentos e ideais, de seus bens. Simbolicamente, essa decisão reafirma o respeito pela dignidade dos idosos, reconhecendo-os como plenamente capazes de tomar decisões sobre suas vidas e patrimônios.
A decisão do STF também corrige um viés discriminatório presente na legislação anterior. Ao tratar todos os maiores de 70 anos como incapazes de gerir seu patrimônio matrimonial, a legislação não considerava as variáveis individuais e as diferentes capacidades dos indivíduos nessa faixa etária. Com essa nova e mencionada interpretação, a lei passa a refletir uma abordagem mais justa e equitativa, reconhecendo que a idade, por si só, não deve ser um impedimento para a autonomia patrimonial.
Em suma, a decisão do STF no ARE 1.309.642 representa um marco importante para o direito de família no Brasil. Ela harmoniza a legislação com os princípios fundamentais do direito privado e da dignidade humana, ao mesmo tempo que promove uma visão mais inclusiva e respeitosa dos direitos dos idosos. Sendo assim, entende-se que a autonomia da vontade dos cônjuges, agora reconhecida e protegida, traz consigo um enriquecimento ao ordenamento jurídico, garantindo que todas as decisões patrimoniais sejam verdadeiras expressões da vontade e liberdade dos indivíduos envolvidos.
4. REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família, 12ª edição. Saraiva, 10/2014.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 13. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020.
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Tradução de José A. Castanheira Neves. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
MAIA JUNIOR, Mairan Gonçalves. A Família e a Questão Patrimonial: planejamento patrimonial, regime de bens, pacto antenupcial, contrato patrimonial na união estável. – 1. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
NERY, Rosa Maria de Andrade. Manual de direito civil: família. 1. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. – 12 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
STF. ARE 1.309.642. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6096433. Acesso em: 01 jul. 2024.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
[1] Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim (FDCI), matriculada no 9° período. E-mail: sara.tsantoss78@gmail.com
[2] Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho, especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil. Professor titular na Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim (FDCI). E-mail: erikcoser@gmail.com
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