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Coitada da mulher se ela não tiver herança?
Por Daniel Bijos e Joana Braga*
Como se não bastasse mexer no imposto de herança com a Reforma Tributária, o legislador também está colocando a mão na massa e pensando em alterar a ordem hereditária, melhor dizendo, mudando o Código Civil brasileiro para modificar quem fica com a herança do/a falecido/a o que, claro, tem causado muita controvérsia.
Uma das bandeiras levantadas é a de que a nova proposta “inviabiliza o trabalho doméstico”. Você pode se perguntar: mas como assim? Não entendi. Pois é. Vamos começar do começo. O texto da Reforma prevê que o cônjuge será excluído da linha de sucessão e deixa de ser obrigatoriamente herdeiro. Ai você nos pergunta: e como isso poderia estar ligado ao trabalho doméstico?
Pois bem. Algumas vozes têm entendido que essa proposta prejudicará a mulher, já que ela normalmente é quem cuida da casa e dos filhos e o patrimônio estaria no nome do marido. Portanto, ao deixar de ser herdeira necessária ela perderia o direito à metade do patrimônio caso o marido ou companheiro falecesse. E esse pessoal vem advogando contra a mudança.
Os problemas dessa postura (machista talvez?) são vários.
O primeiro é o de que herança não tem nada a ver com regime de bens. Direitos sobre os bens adquiridos em conjunto dependem do regime de bens escolhido. Donde a presunção de que as pessoas escolherão a separação para prejudicar um ao outro lá no falecimento? Afinal, se a má-fé existir, ela já traz efeitos em caso de divórcio.
Outra coisa: quem disse que o primeiro herdeiro é quem tem menos patrimônio? Não poderia o cônjuge sobrevivente ser mais abastado? Imagine – se a legislação brasileira fosse aplicada e ele tivesse filha – uma filha do Elon Musk casando com um colega de faculdade de origem simples. Se ele morrer primeiro, ela precisaria da herança? Nem sempre a esposa é hipossuficiente.
Ademais, não custa lembrar que uma das partes do casal pode ser herdeira por vontade da outra, podendo deixar isso formalizado em testamento, por exemplo. O contrário já não é possível. Hoje, não se pode retirar o direito do cônjuge, mesmo que ele anua, declare ter patrimônio suficiente ou mesmo realmente tenha patrimônio suficiente para se manter quando do falecimento do outro.
E quem quer impedir a mudança para proteger esposas que trabalham em casa simplesmente se omitem em relação a formas mais modernas de famílias. Num casamento homoafetivo (entre homens ou mulheres) quem é a “esposa” prejudicada? Ou então, casamentos de pessoas mais velhas em que o marido e a mulher já têm patrimônio e filhos próprios – não pode cada um querer que o que construiu ao longo da vida toda (e não só durante o casamento na terceira idade) vá só para os próprios filhos e não, indiretamente, para enteados já crescidos?
Óbvio que existem casamentos nos quais as mulheres seriam prejudicadas pelo falecimento do marido sem meação e, óbvio, abandono material subsequente dos filhos. Mas quem disse que são maioria? Rejeitar a proposta com base em estereótipos ultrapassados certamente é absurdo.
Por fim, a herança ao cônjuge é causa de prejuízo financeiro para a família em alguns casos – principalmente daquelas que desconhecem planejamento sucessório. Isto porque parte do patrimônio paga imposto para ir ao cônjuge e, depois, novo imposto para ir aos filhos comuns.
Será que a leitura aqui não está descambando para as iras da loucura? Não nos parece. O texto da Reforma exclui o cônjuge como herdeiro necessário, mas não difere entre homem ou mulher. A mulher está cada vez mais independente, preparada e consciente dos seus direitos e mesmo sem apelar para o discurso feminista, a proposta não diz que mulheres deixam de ser herdeiras. Ela diz que pessoas casadas ou em união estável somente herdam se os companheiros/companheiras, marido ou esposa assim o desejarem (grife-se que a sugestão do novo texto não diz que os cônjuges estão proibidos de herdarem!).
Muito justo. Mesmo porque atualmente homens e mulheres têm capacidade de decidir quem desejam que sejam seus herdeiros. Casais podem livremente decidir o que e quem herdará e se for da vontade que os cônjuges herdem, podem dispor em testamento ou fazer um bom planejamento patrimonial e sucessório e transferir os bens ainda em vida.
Entendemos que essa mudança só dá mais autonomia ao/à autor/a da herança, homem ou mulher, para dispor de seus bens como queira. E vamos mais longe: será mesmo que deveria haver uma ordem de sucessão ou a legítima? Não poderia o cidadão escolher para quem vai deixar todo o patrimônio, sem qualquer obrigação de deixar para filhos, pais ou cônjuge e mais: não deveria poder o autor da herança dispor de 100% de tudo que conquistou e não só da metade?
Se a simples ideia de extinguir a posição do cônjuge como herdeiro necessário foi entendida como declaração de fim do trabalho doméstico e um despautério que pretere a mulher, imagina dizer que alguém pode fazer o que quiser com o que tem. Muito moderno isso. Não estamos preparados para tamanha evolução. Que o Estado decida por nós!
E, na prática, é o que ocorre para todos que não fazem planejamento. Hoje, um planejamento bem feito pode garantir a vontade dos cônjuges de modo diferente do que aquele previsto em lei. No futuro, fazer o planejamento será quase uma necessidade para a decisão sobre o que se quer.
*Daniel Bijos Faidiga é advogado especializado em planejamento patrimonial, nova economia, assuntos digitais e sócio da LBZ Advocacia. Especialista em Processo Civil pela PUC/SP e Mestre em Direito Constitucional, possui MBA em Gestão Tributária pela FIPECAFI, extensão em Direito Internacional em Genebra, em Direito Falimentar pela FGV, em Estratégias de Mentoria Empresarial e Liderança por Harvard. Cursou LL.M. em Direito Societário e Direito do Mercado Financeiro e de Capitais. É acadêmico de economia e entusiasta de Blockchain e criptoativos.
*Joana Bethonico Braga é advogada e graduada em jornalismo, com pós-graduação em Direito Civil e especialização em Direito Empresarial. Trabalha com planejamento patrimonial e sucessório na LBZ Advocacia.
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