Artigos
Afeto: encontros e desencontros
Desde a psicologia tradicional, no conceito elaborado por Wundt (1832/1920), "Todo afeto" segue um processo representativo acompanhado por um sentimento correspondente.
Sigmund Freud, por sua vez, no inicio da psicanálise, afirmou na "Comunicação preliminar a Breuer (1892) que "O apagamento de uma lembrança, ou a perda de afeto que esta sofre, depende de vários fatores. (...)". E ao falar da reação energética observou que "os reflexos voluntário e involuntários, graças aos quais, há descarga de afetos, desde as lágrimas até os atos de vingança, disse que se esta reação se efetua em grau suficiente, grande parte do afeto desaparece: chamamos a este fato observável no dia-a-dia de ‘desabafar pelo choro’, ‘descarregar sua cólera’. Quando esta reação se vê entravada, o afeto permanece preso à lembrança. Não nos lembramos da mesma maneira de uma ofensa vingada - ainda que por meio de palavras - e de uma ofensa que nos vimos obrigados a aceitar".
Só por essa constatação nos primórdios da teoria freudiana, podemos perceber que a mediação de conhecimentos entre direito e psicanálise é profícua, não somente como visão teórica, mas, como prática judiciária. Mesmo que ainda seja difícil aos operadores do direito no Brasil pensar a possibilidade de uma efetiva pratica sustentada em ‘perícia psicológica com leitura psicanalítica’, constamos que essa experiência já é implementada no judiciário francês, como decorrência de processo cultural.
Então vejamos. No estudo das "psiconeuroses de defesa" Freud investigou de que modo o afeto se separa da representação simbólica. Numa perspectiva ‘econômica’ do aparelho psíquico, comparada a postulação dos físicos alusiva a existência de uma corrente de fluido elétrico, Freud afirmou que afeto é: "alguma coisa que é passível de aumento, de diminuição, de deslocamento e de descarga, e que se espalha sobre os traços mnêmicos das representações de certo modo como uma carga elétrica por sobre a superfície do corpo".
No texto "O inconsciente" (1915), Freud define o afeto da seguinte forma: "Os afetos e os sentimentos correspondem a processos de descarga, cujas manifestações finais são percebidas como sensações".
A originalidade de Freud está em deslocar a concepção de afeto do registro neurológico para o registro psicológico, graças à elaboração do conceito de pulsão.
A pulsão, termo freudiano, é algo análogo ao instinto nos animais e, constitui o núcleo do inconsciente. Tanto a pulsão nos seres humanos quanto os instintos nos animais se manifestam no corpo vivo, biológico, com a diferença de que a pulsão, a excitação, a força constante que estimula o aparelho psíquico humano, prende-se à letra, ou seja, à linguagem, formando uma síntese por intermédio de seus representantes simbólicos.
Sabemos, hoje, que as energias psíquicas das pulsões se transmutam em um quantum de afeto, e muito particularmente, em angústia. E que o afeto reprimido fica impedido à consciência.
Os afetos são, então, modalidades de expressão das pulsões, manifestando estados internos da vida psíquica a partir de duas polaridades primitivas de prazer e de desprazer, e que têm função essencial no conjunto do funcionamento mental e em particular na organização defensiva do (moi) EU.
A noção freudiana de afeto desenvolveu-se da observação clinica do sintoma histérico, o qual decorre de uma quantidade de energia psíquica que não pôde se descarregar e, desse fato, resta apagada à lembrança. A psico-análise faz-se desde então, pela recuperação da lembrança que restou recalcada.
Freud constatando que a pulsão sexual se manifesta por um afeto, a angústia, escreve (1894) sobre os três mecanismos de neuroses:
1º) a conversão do afeto (histeria de conversão vivenciada sem angústia, mas, como uma afecção orgânica, ex.: paralisia, vertigens);
2º) o deslocamento do afeto sobre um outro objeto (obsessões, ex.: temor obsessivo da morte de uma pessoa amada);
3º) a transformação do afeto em uma reação corporal imediata e catastrófica (fobias, crise da angústia, pesadelos, melancolia).
Esta visão do afeto em termos de cargas que podem causar histeria de conversão, neurose de angústia e, manifestar-se por descargas internas que produzem modificações no corpo do indivíduo, vai ser substancialmente modificada quando Freud (1926d [1925]) elabora sua segunda teoria da angústia.
O Eu (Moi) torna-se, então, a sede dos afetos e, particularmente, da angústia.
A angustia automática aparece quando o Eu (Moi) do recém-nascido se sente desbordado por uma grande excitação pulsional que não consegue descarregar. Com a experiência, o recém-nascido apreende que a mãe lhe permite dissipar suas experiências perigosas. O Eu (Moi) viverá, então, a perda da mãe como um sinal de alarme da chegada desses perigos (angustia-sinal).
Neste mesmo trabalho, Freud descreve, também, outros afetos como a dor psíquica e a tristeza. Incontestavelmente, a partir dos escritos da Metapsicologia, ele sublinha a importância dos sentimentos inconscientes de culpabilidade que fazem parte dos afetos cuja sede é o Eu (Moi).
Trata-se de afetos complexos que se manifestam por fantasmas - como aqueles que foram citados no que tange à perda materna, ou seja, a perda do objeto primordial de completude e garantia contra todos os perigos - nos quais ‘representantes-representações’ simbólicas, e afetos são estreitamente misturados.
Observamos então, que afeto na visão psicanalítica, refere-se a um dos estados emocionais, cujo conjunto constitui a gama de todos os sentimentos humanos, do mais agradável ao mais insuportável, que se manifesta por uma descarga emocional violenta, física ou psíquica, imediata ou adiada.
Desde o caso de Ana O., paciente de Freud que pediu a ele que tirasse a mão de sua cabeça e a escutasse, durante uma técnica de hipnose; o tratamento psicanalítico é realizado pela palavra (a "talking cure"), e pela via do retorno do recalcado, que consiste em trazer novamente, para o consciente, os traços mnêmicos, as lembranças e os afetos demasiado violentos ou condenáveis, objetivando obter o levantamento do sintoma clínico.
Hoje se sabe que a linguagem considerada como equivalente do ato subjetivo do analisante, através da técnica de intervenção no discurso a nível inconsciente, permite a ab-reação e a descarga do afeto. Pode conduzir, conforme o caso, a uma outra articulação discursiva subjetiva, mais coerente com a postura.
Lacan ao explicitar a questão da constituição do desejo de um sujeito, afirmou: "o afeto que nos solicita consiste sempre em fazer surgir o que o desejo de um sujeito comporta, como conseqüência universal, isto é, a angustia". (Lição de 24 de novembro de 1962)
Para Lacan o afeto é uma manifestação pulsional, mas, isto não implica que ele seja o ser dado em sua imediatez, nem que tampouco, seja o sujeito de uma forma bruta.
O afeto está sempre a deriva, deslocado, invertido, metabolizado, ou até mesmo, enlouquecido. Nem o afeto, nem a pulsão são o recalcado. O que do afeto é recalcado, segundo Lacan, são os "significantes que o tomaram".
Para Lacan o afeto está sempre ligado àquilo que nos constitui como sujeito desejante, em nossa relação: com o nosso semelhante; com o grande Outro como tesouro dos significantes (representações); e com o objeto causa de nosso desejo, o objeto a.
A mãe, objeto primordial, nas suas presenças e ausências, faz nascer no filho todos os afetos, da satisfação à angústia. Está no âmago da relação de necessidade, demanda e desejo.
Portanto, somos, no que nos afeta, enquanto sujeito, sempre totalmente dependentes desse desejo que nos liga ao Outro, e que nos obriga a não-ser senão esse ser sempre desconhecido e faltante.
O afeto recalcado nos afeta por toda a vida, segundo a "lógica do significante da Lei-do-nome-pai". Os significantes de mãe, pai, mulher, homem, vida, morte, sexo, gerações, etc. que tomaram o afeto na fase infantil, se reafirmam ou não na mesma lógica na fase da adolescência, determinando o modo como nos relacionamos com os objetos e sujeitos no devir. Lei de estrutura no aparelho psíquico, que apesar de trans-histórica, sofre no tempo e no transcurso das gerações, influência das leis jurídicas, estas por sua vez, oriundas das flutuações históricas de cada sociedade concreta.
Observemos que, é na interseção entre o publico e o privado que se estabelece um "ponto de negatividade" ao gozo indiscriminado, ilimitado, pela inscrição de um traço comum e universal de ‘interdição do incesto’, que nos distingue da coletividade dos animais. Que é no liame entre o coletivo e o individual que se estabelecem constrições à energia libidinal livre, gerando possibilidades de se construir subjetividade e laços familiares e sociais.
Pelo fato da norma jurídica no seu aspecto fundamental fazer parte do inconsciente humano, podemos afirmar que a ciência do direito deve ser pensada como um instrumento contratual, não somente organizador e repressor, mas, também, como um pacto educativo do homem, da sociedade e preservador da natureza onde vivemos.
Ainda que difícil seja a articulação transdisciplinar, visto que, nossas graduações universitárias seguem a lógica científica clássica, a complexidade da pós-modernidade nos exige coragem e esforço de adentrarmos no campo desconhecido que separa disciplinas. Exige que intuamos mais os diferentes níveis de realidade e de percepção, como nos ensina Basarab Nicolescu, físico quântico no "Manifesto da transdisciplinaridade" (1994).
Verifiquemos que a ciência segue o paradigma de fundamentação - Inter-subjetivo, individual e consciente. Orienta-se pelo princípio da razão suficiente, da determinação e da universalidade. Exige para demonstração de seus postulados a descrição, mais do que a prescrição. Interpreta a partir de uma hermenêutica geral - racional. Tem no Discurso a instância ultima de racionalidade.
A Psicanálise, ao contrário, pelo seu viés, segue o paradigma de fundamentação - Intra-subjetivo, Transindividual, inconsciente. Raciocina a partir de uma lógica a-científica sustentada na física quântica. Orienta-se pelo princípio da indeterminação, da contingência, da singularidade. Na demonstração de seus postulados segue a coerência no entrelaçamento contextual de seus conceitos a partir da experiência clínica de cada caso e, sustenta o postulado da "identificação primária". Interpreta a partir de uma hermenêutica privada - intuitiva.
Investiga processos que ligam pensamento e afeto, e que são inferidos a partir dos efeitos.
Segundo a Psicanálise a maior parte da consciência é inconsciente. E Lacan afirma: "O inconsciente é o social" o qual se enlaça pelo discurso.
Em breves palavras, a psicanálise nos ensina que a subjetividade é um desenvolvimento que no transcurso da humanidade enlaçou, Instinto - (letra x Afeto), resultando em Pulsões Parciais Inconsciente, fundação de desejo e reconhecimento de Personalidade.
Isto significa que o afeto agregado à letra funda o inconsciente e constrói a cadeia significante. O chamado campo da palavra.
A nova visada epistemológica a partir da Psicanálise introduz uma abordagem que revoluciona o conceito de homem. Desperta nossa percepção para o sensível, para o "nonsense" que permeia os discursos, as relações do homem com o outro e consigo, as relações com a natureza. Destaca que a natureza é para o homem toda entremeada pelo campo simbólico. Explicita que o sujeito emerge como efeito do significante, e que, o sujeito é causado pelo Outro numa dialética inconsciente. Informa que uma boa resolução do Complexo de Édipo consente nas interdições parentais, culturais e institucionais.
Notemos que este saber não é incompatível com a filosofia jurídica, pois, desde Kant, sabemos que o sujeito crítico está submetido a aspectos heterônimos, da ordem simbólica. Sabemos que a vontade humana está sujeita a impulsos passionais, afetivos e a determinações que escapam a ‘consciência moral livre e autônoma’.
Podemos afirmar hoje, que o sujeito da ciência é o sujeito do inconsciente, proposto por Freud nos estudos da neurose, e por Lacan na Teoria dos quatro discursos.
Portanto, pensar os conflitos jurídicos considerando as principais premissas que embasam o conceito de "Personalidade" no campo da psicanálise, e o modo como os afetos se articulam com os significantes no nível inconsciente, certamente, levará a uma nova ordem científica jurídica.
Possibilitará o desenvolvimento de uma teoria da personalidade jurídica que se refira ao psiquismo humano e, não somente, normatizações de direitos constitucionais decorrentes da personalidade, tais como vem se desenvolvendo nas atuais legislações jurídicas.
Remarquemos, rapidamente, que a personalidade sadia resulta do predomínio do ‘princípio de realidade’ sobre o ‘princípio de prazer’, com firmeza e flexibilidade. Que o sujeito resulta da escolha de ‘posição identificatória’ masculina ou feminina na linguagem.
Como bem sintetiza Nasio (2005) em recente obra:
"O Édipo (...) è uma legenda que explica a origem de nossa identidade sexual de homem e de mulher e, para além, a origem de nossos sofrimentos neuróticos. Esta legenda concerne a todas as crianças, que vivem em uma família clássica, mono-parental, recomposta, ou ainda, que cresçam no seio de um casal homossexual, mesmo que sejam crianças abandonadas, órfãs e adotadas pela sociedade. Nenhuma criança escapa ao Édipo! Por quê? Porque nenhuma criança de quatro anos, menina ou menino, escapa à torrente de pulsões eróticas que afluem nela, e porque nenhum adulto de seu redor imediato pode evitar ser o alvo de suas pulsões e de ter de impedi-las".
Em seu estatuto, o Édipo é, portanto, o relato superposto e explicativo de nossas imagens, acompanhado da tradução das falas inconscientes dos personagens.
Caso a criança seja privada de todas as relações objetais amorosas, no primeiro no de vida, por um período que dure mais de cinco meses, ela apresentará sintomas de progressiva deterioração, que segundo Spitz (1998), parecem ser irreversíveis, tanto física como psiquicamente.
Como dissemos no início, o eu produz o afeto, a angustia, como sinal de perigo, e como a angustia resulta em recalcamento inconsciente, subseqüentemente, todas as situações de perigo são reminiscências de uma situação traumática anterior que consistiu de um estado de excitação elevada sentido como um desprazer que não pode ser eliminado. Podemos citar como exemplo de situações típicas de perigo: a perda da mãe, do amor, a castração, e a censura do superego; posteriormente re-atualizadas, por ocasião de separação conjugal, divórcio, término de união estável, guarda e visitas, partilha de bens, dificuldade nas relações profissionais etc.
A angustia surge de energias psíquicas que não encontraram referenciais amorosos para se acomodar. Daí a necessidade da função co-mediador, exercida com profissionais de ambas as áreas jus-psicanalítica, com conhecimentos específicos e complementares das áreas articuladas, para desenvolvimento de uma prática que apreenda holisticamente o ser humano na sua complexidade, levando em conta sua dor psíquica, transformando, assim, pelas intervenções de cada mediador, a experiência decorrente da economia psíquica familiar.
Mediações que façam emergir o "encontro" entre parentais, comumente "foracluído" nas atuais famílias, para o resgate do peso da palavra e do inter-dito proibidor. Intervenções nos conflitos relacionais a partir do lugar transferencial que cada um ocupa, e do modo singular de gozo, visando fundar lugares subjetivos singulares. Isto implica deslocar a questão para a responsabilidade com o outro, tomando em consideração a incompletude.
O Direito de família articulado com a Psicanálise passa de um instrumento meramente de gestão de indenizações pecuniárias, a um instrumento de re-direcionamento civilizatório, educativo e disciplinador, criando modos mais virtuosos de voto moral e reparação de danos afetivos.
Freud nas "Novas Conferências Introdutórias" (1933), Conferência XXXI, manifesta que a intenção da psicanálise é reforçar o ego, torná-lo mais independente do superego, aumentar seu campo de percepção e ampliar sua organização, de forma que possa apropriar-se de novas porções do id. "Onde estava o id deverá estar o ego".
Por isto acreditamos na contribuição da Psicanálise como visão de mundo e como técnica de "retificação pulsional", buscando-se dar um destino diferente ao sentimento de desamparo, com a possibilidade de construção de relações mais duradouras e respeitáveis, ou conforme o caso, com a re-articulação das relações com os objetos da vida.
Em especial, o direito de família numa visão transdisciplinar é um direito que comporta em sua teoria e prática a angustia surgida nos sujeitos de desejo quando dos conflitos afetivos, abrindo espaços jurídicos de escuta por profissionais habilitados, para descarga de afetos não vingados e alívio das tensões, e busca de novas soluções aos desencontros familiares decorrentes das mutações sócio-culturais, criando novos caminhos no tempo processual e pós-processual jurídico, que possibilitem novos encontros a sujeitos dignos.
Lacan afirmou que "amar é dar aquilo que não se tem". É estabelecer um laço com o outro, fundado no reconhecimento que somos seres incompletos, que buscam, mendigam, por vezes, ficando até na posição de objeto.
Por isso, é preciso resgatar a luz das palavras da Lei-do-Nome-do-pai, metáfora que desde os tempos bíblicos, nos vem em escritos celebres, de Henóc a Moises, calculando e inventando novos caminhos para a humanidade e preservando a subjetivação. Não há sociedade justa na injustiça, pois, somos estreitados nos afetos.
Se pretendemos evitar a "des-especiação" da espécie humana e, corrigir os descaminhos gerados pelos encontros e desencontros nos laços familiares e sociais, devemos refletir sobre o amor e a sublimação, criando nova ordem significante científica, sustentada na escuta do ser e na manutenção da força da palavra que ilumina as boas obras.
No Banquete de Platão, Sócrates falando sobre a origem do amor traz um mito: o amor nasceu do encontro, nos jardins dos deuses, durante um banquete celebrando o nascimento de Afrodite. Ela nasceu, segundo a mitologia, do casamento do filho de Invenção, chamado Expediente, com a Pobreza.
O amor é, então, simbolizado por Afrodite, aquilo que seu pai, Expediente, calcula e inventa; mesclado com aquilo que sua mãe, Pobreza, busca e mendiga. O amor é incerto, mas, sempre cheio de esperança. É a conjugação da ética e da estética no nível do espírito. Amar é a beleza em si.
Silvane Maria Maarchesini é advogada, psicóloga, pós-graduanda e mestra em Psicanálise. É membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-Graduação da UFPR |
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM