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A família
Lourival Serejo
Ao terminar a leitura do romance A família, da escritora espanhola Sara Mesa, recentemente lançado no Brasil, deparei-me com várias portas abertas para o interior de uma família e analisá-la com diversos temas desafiadores.
A autora põe-nos diante de uma família tradicional, patriarcal no sentido mais forte do termo, na qual a mulher e os filhos são controlados nos mínimos detalhes por um Pai autoritário que impõe suas ideias extravagantes, sem admitir qualquer manifestação de individualidade. Com alguns gestos de afeto ele explora os sentimentos dos outros membros da família.
Com uma técnica perfeita, a autora vai desfiando aos poucos a engrenagem daquela família, desfazendo os laços de opressão e demonstrando com fatos o fracasso da rigidez imposta pelo patriarca, sempre tratado por Pai, com o P maiúsculo.
O Pai (que em nenhum momento é chamado pelo nome) impõe seus dogmas indiscutíveis à família: sem televisão, sem presentes nos dias de Natal e nos aniversários (não se troca afeto por coisas materiais), sem amigos, sem gulodices e sem intimidades individuais. Em seu império familiar só regras, regras, regras.
O casal tem quatro filhos, sendo uma filha adotada no começo da adolescência.
Aos poucos, no desenrolar do enredo, vão se apresentando as reações de comportamento dos filhos ao chegarem na juventude, sendo mais radicais as afirmações das duas filhas.
O romance é permeado de cenas que revelam a quintessência de uma família antidemocrática e autoritária: a filha Rosa é obrigado a destruir seu diário fechado com uma delicada chave, sob pretexto de que naquela família não havia segredos; a filha Martina é obrigada a trocar o presente que recebera do tio por um livro, o filho é obrigado a deixar de falar com uma amiga da vizinhança. Outra cenas abrem espaços para diversas análises. Os dois meninos, trancados no guarda-roupa, assistem perplexos ao Pai sentar-se na cama e começar a chorar como uma criança. Tempos depois, ao voltarem do enterro da Mãe, ao passarem por uma sorveteria, o Pai exclama: “o tanto que ela gostava de sorvete, minha pobre Laura, e eu não a deixava comê-los.”
No fim, a sólida família dissolve-se no ar, mostrando que a sua solidez era falsa. Então, constatamos que a opressão das regras fracassou. O despontar das individualidades foi como uma planta ao nascer de uma semente, que, à proporção que vai brotando, vai afastando a terra até afirmar seu espaço. E o Pai tornou-se uma sombra no seu próprio império.
Esse quadro familiar, retratado no romance A família, de Sara Mesa, é o exemplo das famílias que o Ibdfam combate, ao pugnar pela constituição de famílias democráticas, autênticas, em que as individualidades dos seus membros sejam respeitadas e cultivadas, em que os pais sejam amados e não temidos.
O estilo e a arquitetura do romance merecem aplausos. O enredo vai se desenvolvendo de forma gradual, as informações saem de forma natural. Só ao fim ficamos sabendo o nome daquela que no começo era referida como Mãe. Do Pai, por sua vez, não é revelado seu nome. Sua autoridade era só o que importava.
Leitura recomendada a quem se importa com as famílias e seus desafios, sempre surpreendentes.
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