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Constelação familiar: os perigos da aplicação de métodos pseudocientíficos no judiciário brasileiro
Letícia Catarina Leal Soares
Estagiária do Tribunal de Justiça de Pernambuco
Estudante de Direito da Universidade Federal de Pernambuco
RESUMO
A constelação familiar, prática pseudocientífica idealizada pelo escritor Bert Hellinger, que já preocupa o Conselho Federal de Psicologia (CFO), vem adentrando cada vez mais no judiciário brasileiro, como método utilizado principalmente dentro dos processos de família. Apesar de ganhar espaço como uma prática que traria benefícios, questiona-se além da ausência de embasamento científico, a perpetuação de paradigmas patriarcais, heteronormativos e sexistas. Nessa esteira, o presente artigo visa discutir a problemática de sua aplicação dentro do sistema judiciário.
Palavras chaves: constelação familiar, constelação sistêmica, pseudociência, judiciário, vara de família.
ABSTRACT
The family constellation, a pseudoscientific practice idealized by the writer Bert Hellinger, which already concerns the Federal Council of Psychology (CFO), has been increasingly entering the Brazilian judiciary, as a method used mainly within family processes. Despite gaining space as a practice that would bring benefits, it is questioned beyond the absence of scientific basis, the perpetuation of patriarchal, heteronormative and sexist paradigms. In this sense, this article aims to discuss the problem of its application within the judicial system.
Keywords: family constellation, systemic constellation, pseudoscience, judiciary, family court.
INTRODUÇÃO
A Constelação familiar, também chamada de constelação sistêmica, surgiu em 1970, idealizada por Bert Hellinger, trata-se de uma pseudociência que através de elementos místicos tenta explicar a origem dos conflitos humanos, relacionando-os com a vivência de antepassados, propagando a ideia de um emaranhado sistêmico, no qual as ações de antepassados influenciam em problemas presentes.
Bert Hellinger foi um escritor alemão que se autointitulou como psicoterapeuta, após abandonar o ordenamento católico, apesar de não possuir qualquer formação em psicologia, quando aderiu ao misticismo e escreveu livros que abordam a sua ideia, como “A Simetria Oculta do Amor”.
[...] na família e no grupo familiar existe uma necessidade de vínculo e de compensação, partilhada por todos, que não tolera a exclusão de nenhum membro. Quando ela acontece, o destino dos excluídos é inconscientemente assumido e continuado por membros subsequentes da família. […] Quando, porém, os membros remanescentes reconhecem os excluídos como pertencentes à família, o amor e o respeito compensam a injustiça que foi cometida contra eles, seus destinos não precisam ser repetidos. É isso que chamamos aqui de solução. (Hellinger, 2010)
No Brasil, a Constelação Familiar começou a se perpetuar no ano 1999, e ainda que a prática seja vedada pelo Código de Ética de Psicologia, não é difícil encontrar relatos das sessões, que atualmente abrangem sessões psicoterápicas e até mesmo audiências de mediação e conciliação no judiciário brasileiro:
Art. 2º – Ao psicólogo é vedado:
b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais;
f) Prestar serviços ou vincular o título de psicólogo a serviços de atendimento psicológico cujos procedimentos, técnicas e meios não estejam regulamentados ou reconhecidos pela profissão; (CFP, 2005)
Objetiva-se, portanto, compreender os problemas enfrentados na utilização desse método dentro das audiências de conciliação e mediação, considerando especialmente o contexto das varas especializadas de família.
A PSEUDOCIÊNCIA
Conforme anteriormente afirmado, a Constelação Familiar cuida-se de uma pseudociência, na qual o autor se utiliza de matérias científicas, como a física quântica, de modo distorcido e impreciso para validar sua ideia, não havendo a utilização da metodologia científica para verificações relacionadas ao conjunto de crenças de Hellinger dentro do que chamou de Constelação Familiar, são explicações para conflitos que não passam de ideias sem qualquer comprovação, estando caracterizadas mais precisamente no mundo espiritual e místico.
É comum entre propagadores de pseudociências a utilização da física quântica para validação, o chamado “charlatanismo quântico”. No entanto, o físico Lucas Mascarenhas de Miranda explica:
Planck propôs que a energia presente na luz não poderia ser emitida ou absorvida de maneira contínua, mas sim na forma de ‘pacotes’ com quantidade fixa. Esse pacotinho, que concentra a menor porção de energia possível para uma determinada radiação, pode ser chamado de quantum de luz ou fóton. E, por meio de uma equação muito simples, denominada ‘relação de Planck-Einstein’, demonstrou-se que a energia contida em cada um desses pacotinhos dependia exclusivamente da frequência (ou seja, da cor) da luz. A tese de que a energia é quantizada (ou seja, existe em quantidades fixas e específicas) foi tão revolucionária, afrontava tantos conceitos científicos bem estabelecidos e desafiava tanto nossa intuição e senso comum, que muitas das maiores mentes daquela época se opuseram a essa nova física, a física quântica. Mas os infindáveis experimentos que se seguiram e as inúmeras tecnologias que surgiram baseadas nessa nova física não deixaram dúvidas: o que acontece em escala subatômica (ou seja, entre partículas menores que o próprio átomo) é absolutamente diferente do que nós observamos no mundo macroscópico.
Nesse sentido, conclui-se que a física quântica trata da mecânica em escala subatômica, havendo a física clássica para explicar as questões do mundo macroscópico, não possuindo qualquer ligação com a espiritualidade e estando fora do contexto das idealizações desenvolvidas por Hellinger.
Posto isso, a pseudociência se torna perigosa, pois vem “fantasiada” de ciência para que seja validada, afetando as pessoas mais vulneráveis, tal qual a medicina alternativa, a astrologia e o terraplanismo.
APLICAÇÃO NO JUDICIÁRIO
No Brasil, a Constelação Familiar adentrou no ano de 1999, tendo sua utilização no âmbito do sistema judiciário acontecido a partir de 2012. Atualmente, é possível encontrá-la dentro de tribunais brasileiros, aplicada no Distrito Federal e mais de 16 estados da federação, especialmente presentes nas audiências de conciliação e mediação das varas especializadas de família.
Importa salientar que as sessões de mediação e conciliação encontram-se previstas no art. 334 do Código de Processo Civil e possuem uma imensa funcionalidade dentro da máquina judiciária, singularmente na solução consensual dos litígios dentro das matérias de família. No entanto, a utilização de práticas ligadas à Constelação Familiar dentro das sessões tem comprometido sua aplicabilidade.
Percebe-se, que sua utilização nessas sessões já devem ser questionadas a partir do momento que se tratam de práticas pseudocientíficas, já vedadas nas áreas de saúde, sem qualquer embasamento científico a respeito de sua eficácia. Contudo, um problema ainda maior que permeia sua aplicação dentro do judiciário está vinculado aos ideais sexistas e heteronormativos que acompanham a Constelação Familiar. Hellinger, nessa conjuntura, traz que: “A mulher deve seguir o homem (em sua família, em seu nome, em seu lugar de trabalho, em seu país…), e o homem deve servir o feminino [ao proteger a esposa]”, contribuindo com a perpetuação da estrutura patriarcal e, consequentemente, com a desigualdade de gênero.
Bert Hellinger promove, por exemplo, que quando um pai abusa de sua própria filha, a explicação está dentro de um conflito familiar com a mãe da criança, que não estaria dando a devida atenção ao seu marido, e a forma mais fácil de compensar essa falta seria levar a própria filha ao marido, com a justificativa de que:
Quando a lei é descumprida, há na família a necessidade de compensação dessa exclusão; assim, uma futura geração assumirá, de forma inconsciente, sintomas que expressarão o emaranhamento produzido pela exclusão do membro do sistema. (Hellinger, 2010)
Posto isso, a prática atua subjugando mulheres, crianças e adolescentes, violando seus direitos, na esteira contrária aos direitos e garantias previstos na Constituição Federal de 1988. Nessas sessões, as mulheres se tornam ainda mais vulneráveis e se dispõem a aceitar acordos que não aceitariam em circunstâncias normais, por estarem colocadas dentro de situações que as culpabilizam.
É portanto, imprescindível a regulamentação dessas práticas dentro do sistema judiciário, para que a igualdade de gênero, protegida constitucionalmente, não seja violada, especialmente tratando-se de locais nos quais os cidadãos buscam o acesso à justiça para terem os seus direitos assegurados. É preciso, nesse sentido, que grupos minoritários sejam acolhidos e não, mais uma vez, desrespeitados dentro do judiciário brasileiro.
REFERÊNCIAS
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