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Como a coerência biográfica influi na análise da capacidade testamentária?
Ana Carolina Schmidt de Oliveira, Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC/Campinas) e UNIR, Espanha. Especialista em Dependência Química pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Especialista e Mestre em Psicologia Legal e Forense pela Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), Espanha. Mestranda em Psicologia Sanitária pela Universidad a Distancia de Madrid (UDIMA), Espanha.
Elise Karam Trindade, Psicóloga inscrita no CRP/RS sob nº 07/15.329. Graduada em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Especializada em Técnicas Psicoterápicas Psicanalíticas com crianças e adolescentes pela Universidade de Coimbra (NUSIAF), Portugal. Diplomada em Estudos Avançados pela Universidade da Extremadura (DEA), Espanha. Doutoranda na área de Intervenção Psicológica, Saúde e Educação no Instituto Superior Miguel Torga, Portugal. Especialista em Psicologia Forense pelo Instituto de Medicina, Estudos e Desenvolvimento (IMED). Neuropsicóloga pelo Hospital Albert Einstein, São Paulo. Membro Fundadora da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica (SBPJ).
Hewdy Lobo Ribeiro, Psiquiatra Forense e Psicoterapeuta com titulações pela Associação Brasileira de Psiquiatria e regularmente inscrito no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP 114.681, RQEs 300.311 e 300.313), Membro da Comissão de Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria, Ex-Médico Colaborador do ProMulher no Instituto de Psiquiatria da USP, Ex-Conselheiro no Conselho Penitenciário de São Paulo, Ex-Perito Psiquiatra no Tribunal de Justiça de São Paulo e Perito Convidado no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
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Em perícias e assistência técnica em psiquiatria forense e psicologia jurídica, em casos de dúvidas sobre a capacidade de um indivíduo já falecido para realizar um testamento quando em vida, a parte extra diagnóstico é o estudo da coerência biográfica.
Este método avalia o quanto foi lógico um ato jurídico, do passado, de uma pessoa falecida, em relação ao seu comportamento estudado ao longo da vida em longos períodos.
Em relação a investigação da capacidade de discernimento, para realização de testamento, existem duas perspectivas que devem ser analisadas conjuntamente (Abdalla-Filho e Taborda, 2016, p. 314):
- a objetiva, correspondente à capacidade cognitiva e de entendimento do idoso, se este conhecia em nível aceitável, qual era seu patrimônio, quem seriam seus herdeiros, quem queria beneficiar, e quais eram as consequências econômicas para os beneficiados e para os excluídos. Ou seja, se o sujeito estava em condições plenas de compreender os efeitos de sua ação testamentaria e defender sua vontade, de quem realmente queria beneficiar.
- a subjetiva, que se trata da coerência biográfica em si, relacionada a história de vida do indivíduo. O profissional deve compreender as motivações, seus valores pessoais, as qualidades de suas relações familiares, sua escala de valores nas relações estabelecidas ao longo da vida com seus herdeiros e donatários, os afetos e as gratidões gerados.
Em relação à avaliação de capacidade testamentária post mortem, os profissionais da psiquiatria forense e da psicologia jurídica devem conhecer a história de vida do indivíduo nas seguintes etapas:
- Período pré-testamento – inclui o exame de vida do testador até a declaração de vontade, buscando identificar dois aspectos fundamentais: existência e evolução de possíveis doenças mentais e sua relação com herdeiros legais e donatários.
- Período peri-testamento – no qual se busca estabelecer, da melhor maneira possível, o estado mental do testador à época do ato. Esse período é o mais importante de ser investigado, uma vez que interessa à Justiça o estado mental do periciando no período em que elaborou e firmou o testamento.
- Período pós-testamento – evolução de vida até o óbito, com ênfase na história de morbidade mental, uma vez que algumas moléstias poderiam já estar se manifestando de forma insidiosa no período peri-testamentário (Abdalla-Filho e Taborda, 2016, p.315).
Na prática, peritos e assistentes técnicos devem avaliar documentos da época, como relatório médico, além de entrevistas com familiares, fotos e vídeos, para além de demonstrar a saúde mental do avaliado na data da assinatura do testamento, verificar a coerência biográfica das disposições, do mesmo.
Os relatos dos entrevistados podem mostrar, por exemplo, que o examinado histórica e longitudinalmente ao longo da vida teve excelente relacionamento com seus beneficiários no período pré-testamento, que havia a preferência conhecida e notável por algum familiar, conflitos com algum filho específico, falta de confiança nos filhos, o desejo manifesto de deixar seus bens alguém específico, ausência de contato com certos familiares, vínculos prejudicados com distanciamento emocional, que a gestão de bens ou papel de cuidador era feito por uma filha em especial, entre outras situações comuns.
Muitas vezes, processos envolvendo capacidade de testamento se dão pela presença de sintomas mais ou menos graves de sua doença com deterioração cognitiva. Desse modo, caberá aos profissionais peritos e assistentes técnicos esclarecerem a gravidade do adoecimento e a extensão de seu impacto em sua capacidade de discernimento no momento da assinatura do testamento.
Isso se dá principalmente através de documentos de profissionais de saúde assistentes, não devendo de nenhuma forma se limitar a estes. Aqui também deve ser analisada a coerência biográfica do avaliado, seus vínculos naquele período, entre outras situações relacionais já citadas.
No pós-testamento, pode ser evidente a evolução ou não de transtornos mentais, neurocognitivos ou neurológicos que pudessem ter impactado a capacidade para testar. Assim como, é importante apreciar possíveis mudanças nos cuidados e qualidade de vida e dos vínculos da pessoa examinada, que pudessem indicar algum tipo de manipulação, influência ou sugestionabilidade. Nesta etapa também cabe analisar a causa do falecimento do avaliado, se teve qualquer relação com seu declínio cognitivo.
Em resumo, sob uma perspectiva psiquiátrica forense e psicológica jurídica, três capacidades psicológicas são necessárias para a competência de testar (Taborda, Abdala-Filho, Moraes e Mecler, 2012):
Quadro 1: Capacidades psicológicas para testamento
Capacidade |
Conhece a natureza e extensão dos seus bens (posses). |
Tem consciência de que está fazendo um testamento. |
Sabe quem são seus beneficiários naturais, ou seja, cônjuge, filhos e outros parentes. |
Fonte: Elaborado pela Equipe Vida Mental Perícias.
Esta análise reforçará se a tomada de decisão do examinado de beneficiar determinadas pessoas ocorreu de forma capaz, coerente com sua história e como expressão sua vontade coerente, reconhecendo aqueles, que o respeitaram e cuidaram de acordo com suas crenças, em especial nos últimos anos de sua vida.
Referências bibliográficas:
Taborda JGV, Abdala-Filho E. Avaliação de Capacidades Civis Específicas. Elias Abdalla-Filho, Miguel Chalub, Lisieux E. de Borba Telles. Psiquiatria forense de Taborda. 3. ed. – Porto Alegre : Artmed, 2016.
Taborda JGV, Abdala-Filho E, Moraes TM, Mecler K. Avaliação da capacidade civil. In: Taborda JGV, Chalub M, Abdala-Filho E. Psiquiatria forense. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 205-19.
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