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Proteção do Direito de Família nas Políticas de Reconhecimento 'Prima Facie' para Refugiados no Brasil
Patrícia Gorisch
Pós Doutora em Direitos Humanos pela Universidad de Salamanca, Espanha. Pós Doutora em Direito da Saúde pela Università Degli Studi di Messina, Itália. Doutora e Mestre em Direito Internacional. Presidente da Comissão Nacional de Direito dos Refugiados do IBDFAM. Professora do PPG Mestrado e Doutorado da Unisanta.
Resumo
Este artigo examina o impacto das políticas públicas brasileiras de reconhecimento "prima facie" para refugiados na proteção do direito de família, com um foco especial nas necessidades de mulheres e meninas que fogem de práticas culturais prejudiciais, como a corte/mutilação genital feminina (C/MGF). Baseado em dados do relatório "Refúgio em Números" de 2023, o estudo analisa como essas políticas facilitam a reunificação familiar e garantem a integridade e o bem-estar dos refugiados.A legislação brasileira, incluindo a Lei nº 9.474, de 1997, e a Lei nº 13.445, de 2017, estabelece mecanismos para a proteção dos refugiados e a reunião familiar. A análise revela que a maioria dos solicitantes de refúgio no Brasil é proveniente da Venezuela, com um aumento significativo de solicitações em 2023. As políticas de reconhecimento "prima facie" têm permitido uma resposta rápida e eficaz às crises de refugiados, assegurando que as famílias possam permanecer unidas.Entretanto, desafios persistem, especialmente no acesso a serviços de saúde especializados para mulheres e meninas que sofreram C/MGF. A reunião familiar e o acesso a cuidados de saúde abrangentes são cruciais para a proteção e integração dessas populações vulneráveis. O artigo conclui que, embora as políticas de reconhecimento "prima facie" representem um avanço significativo, é necessário continuar aprimorando essas políticas para enfrentar os desafios específicos que essas mulheres e meninas enfrentam, promovendo um ambiente de respeito e proteção aos direitos humanos para todos.
Palavras-chave: Reconhecimento "prima facie"; Refugiados;Direito de família; Reunião familiar; Corte/mutilação genital feminina (C/MGF).
Introdução
O Brasil tem se destacado na implementação de políticas públicas de reconhecimento "prima facie" para refugiados, especialmente após o reconhecimento da grave situação de direitos humanos na Venezuela em 2019. Essas políticas têm facilitado o processo de refúgio para milhares de pessoas que buscam proteção no país. No entanto, é fundamental analisar como essas políticas impactam a proteção do direito de família dos refugiados, garantindo a reunificação e a segurança de todos os membros da família. Este artigo examina o impacto dessas políticas na proteção do direito de família, com foco especial nas necessidades de mulheres e meninas que fogem de práticas culturais prejudiciais, como a corte/mutilação genital feminina (C/MGF).
O direito de família é um componente essencial dos direitos humanos, assegurado por várias convenções internacionais e pela legislação brasileira. A Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e o Protocolo de 1967 são instrumentos fundamentais que orientam a proteção dos refugiados globalmente. No Brasil, a Lei nº 9.474, de 1997, estabelece mecanismos para o reconhecimento e a proteção dos refugiados, enquanto a Lei nº 13.445, de 2017, também conhecida como Lei de Migração, fornece diretrizes adicionais para a proteção dos direitos dos migrantes e refugiados, incluindo a reunião familiar.
O conceito de reconhecimento "prima facie" é uma prática adotada em situações de emergência ou de fluxos massivos de refugiados, onde há uma presunção coletiva de risco ou perseguição, dispensando a necessidade de uma análise detalhada de cada caso individual. Esta abordagem tem sido essencial para lidar com a crise de refugiados venezuelanos, permitindo uma resposta rápida e eficaz do governo brasileiro.
Este artigo baseia-se na análise de dados do relatório "Refúgio em Números" (2023), que fornece informações detalhadas sobre as solicitações de refúgio no Brasil. Utiliza-se uma abordagem qualitativa para avaliar como as políticas de reconhecimento "prima facie" impactam o direito de família, especialmente no contexto de práticas culturais prejudiciais como a corte/mutilação genital feminina (C/MGF). A análise envolve a revisão de literatura relevante, a interpretação dos dados estatísticos e a avaliação de políticas públicas relacionadas ao refúgio e à migração.
Refúgio em Números de 2024
Os dados de 2023, no Relatório do CONARE de 2024 mostram que o Brasil recebeu 58.628 solicitações de refúgio, com um aumento significativo em relação aos anos anteriores. A maioria dos solicitantes é proveniente da Venezuela, seguida por Cuba e Angola. Um aspecto importante das políticas brasileiras é a possibilidade de extensão do status de refúgio aos membros da família do refugiado, assegurando a unidade familiar.
A legislação brasileira permite que os refugiados solicitem a reunião familiar, proporcionando visto temporário para cônjuges, filhos, pais e outros dependentes. Esta política é crucial para manter a integridade e o bem-estar das famílias refugiadas, especialmente para mulheres e meninas que enfrentam riscos específicos como a C/MGF.
O relatório de 2024 do Comitê Nacional dos Refugiados (CONARE), destaca que 72% das solicitações de refúgio foram registradas na Região Norte do Brasil, com estados como Roraima, Amazonas e Acre recebendo a maior parte dos pedidos. Essa distribuição geográfica reflete a proximidade desses estados com a fronteira venezuelana, facilitando o ingresso de refugiados venezuelanos no país. Além disso, a presença de comunidades estabelecidas de refugiados nesses estados cria um ambiente mais acolhedor para novos solicitantes.
A análise dos dados também revela que 58,5% dos solicitantes de refúgio são homens, enquanto 41,5% são mulheres. No entanto, entre os solicitantes provenientes de países com alta prevalência de C/MGF, como a Nigéria e a Guiné, há uma maior proporção de mulheres e meninas. Este grupo específico enfrenta desafios adicionais relacionados à saúde e à proteção, necessitando de políticas públicas que respondam adequadamente às suas necessidades.
As políticas de reconhecimento "prima facie" têm um impacto positivo na proteção do direito de família dos refugiados. A possibilidade de reunião familiar assegura que os refugiados não sejam separados de seus entes queridos, o que é essencial para sua estabilidade emocional e integração social.
A legislação brasileira, ao permitir a reunião familiar, promove a unidade familiar e garante que os refugiados possam reconstruir suas vidas em um ambiente seguro e estável. A Lei nº 13.445, de 2017, estabelece que os refugiados têm direito a solicitar visto temporário para seus familiares, o que facilita o processo de reunificação. Além disso, o Decreto nº 9.199, de 2017, que regulamenta a Lei de Migração, especifica que a reunião familiar é um direito fundamental dos refugiados, assegurando a proteção de todos os membros da família.
Entretanto, a implementação dessas políticas enfrenta desafios práticos, como a burocracia e a falta de recursos para apoiar adequadamente os refugiados e suas famílias. A colaboração entre agências governamentais, organizações não-governamentais e comunidades de refugiados é fundamental para superar esses desafios e garantir que as políticas sejam efetivamente implementadas.
Para mulheres e meninas que fogem de práticas como a C/MGF, a reunião familiar e o acesso a cuidados de saúde especializados são cruciais. A C/MGF pode causar complicações de saúde a longo prazo, incluindo infecções, problemas de parto e trauma psicológico. Portanto, é essencial que as políticas públicas de refúgio incluam provisões para cuidados de saúde abrangentes e sensíveis às necessidades de gênero.
Os serviços de saúde devem ser preparados para lidar com as consequências físicas e psicológicas da C/MGF, oferecendo tratamento médico adequado e apoio psicológico. Além disso, a integração social e a proteção das mulheres e meninas refugiadas devem ser prioritárias, garantindo que elas tenham acesso a educação, emprego e outros serviços essenciais.
Considerações Finais
As políticas de reconhecimento "prima facie" no Brasil têm se mostrado eficazes em atender às necessidades imediatas de proteção dos refugiados, especialmente aqueles que fogem de crises humanitárias graves, como a da Venezuela. No entanto, ao avaliar essas políticas através da lente do direito de família, é evidente que sua eficácia vai além da simples concessão de refúgio. A garantia da reunificação familiar emerge como um componente crucial para a estabilidade emocional, a integração social e o bem-estar geral dos refugiados.
A legislação brasileira, ao permitir a extensão do status de refúgio aos membros da família, promove não apenas a unidade familiar, mas também a segurança e o desenvolvimento de uma vida digna para todos os seus integrantes. Isso é particularmente importante para mulheres e meninas que enfrentam riscos específicos, como a corte/mutilação genital feminina (C/MGF), uma prática que pode ter consequências devastadoras para a saúde física e mental.
No entanto, apesar dos avanços, desafios significativos permanecem. A burocracia, a falta de recursos adequados e a necessidade de serviços de saúde especializados continuam sendo obstáculos importantes. Para que o direito de família dos refugiados seja plenamente protegido, é necessário um compromisso contínuo do governo brasileiro em aprimorar essas políticas, facilitar o acesso aos serviços essenciais e promover uma integração inclusiva e respeitosa dos refugiados na sociedade brasileira.
Garantir o direito de família não é apenas uma questão de legalidade, mas de humanidade e justiça social. A proteção da unidade familiar deve ser central em todas as políticas de refúgio, reconhecendo que a família é a base da coesão social e da resiliência individual. Ao fortalecer essas políticas, o Brasil não apenas cumpre suas obrigações internacionais, mas também constrói uma sociedade mais justa, acolhedora e inclusiva para todos.
Referências
- Brasil. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997.
- Brasil. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017.
- Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra). (2024). Refúgio em Números, 9ª edição. Ministério da Justiça e Segurança Pública.
- Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951.
- Protocolo de 1967 sobre o Estatuto dos Refugiados.
- Decreto nº 9.199, de 2017, que regulamenta a Lei de Migração.
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