Artigos
A exceção como regra
“A cultura é como a atmosfera, não se vê, não se apalpa e, contudo, é impossível viver fora dela e continuar pertencendo à humanidade.” (José Saramago).
Diz-se que o advogado é o primeiro juiz da causa.
Enquanto receptor da queixa do indivíduo, são seus olhos os primeiros a repousarem sobre os fatos que a ele são levados. Um olhar inaugural, portanto.
A partir daí nasce um dever legal, uma missão jurada, uma inequívoca função social pacificadora à procura do “justo-possível”, e na Constituição Federal assim consagrada, em seu artigo 133: “O advogado é indispensável à administração da justiça...”. Entende-se por administrar, a participação e a atuação advocatícia na invocação, na gestão, na distribuição e na possível entrega de Justiça, sempre por meio do Direito.
Por sua vez, inserido na cultura de seu tempo, o advogado obedece à certas premissas fáticas e a determinados preceitos legais, a lhe conduzirem a atuação profissional, estando, ainda, sujeito a determinadas lógicas que operam sobre a sociedade e sobre o próprio sistema jurídico em si. Atuam tais forças, ainda e logicamente, sobre o juiz, o promotor, o defensor público, e também, sobre o indivíduo destinatário da lei que busca o advogado e a Justiça.
Pois bem. Há certo consenso de que as forças operantes sobre o sistema jurídico são frutos de uma cultura de conflito e de oposição, fundamentalmente. O fomento e o combustível disto, a propósito, vem também da própria lei, a impor uma ideia de haver, sempre, o culpado e o inocente. Um sistema binário – preto ou branco -, com pouco espaço para as demais tonalidades existentes na vida vivida.
O momento é de crise e as situações de conflito estão mais do que presentes. A tentação de apelo ao Judiciário, por igual, cresce, tornando-se, para muitos, quase irresistível. Está posto, então, mais um desafio para a nossa sociedade já tão inflamada e judicializada.
Diante desse quadro, vale a seguinte pergunta: qualquer que seja a crise, pode ela trazer algo de novo, ou mesmo trazer à tona conhecimentos já antes adquiridos pela sociedade, mas, que andavam adormecidos por motivos vários?
A resposta mais adequada parece ser a afirmativa. Sim, da crise pode emergir o essencial, em um sentido de essência, de força vital. O sentido contrário traz a ideia de aniquilamento, de terra arrasada, o que parece distante do espírito construtivo ainda bastante presente no seio da sociedade em sua grande maioria, a despeito de tanta adversidade, injustiça, desigualdade, enfim, de toda sorte de desequilíbrios.
Evocar, assim, justamente o viés e o intento de construir alternativas é o que se faz imperioso, também, ao advogado, profissional situado em tão importante e sensível ponto da sociedade, ou seja, em seu lugar de operador do Direito, enquanto ciência humana que, em apertada síntese, cuida da vida, da liberdade e do patrimônio (materiais e imateriais), em seus vários aspectos e abordagens.
A propósito disto, traz o Código de Ética do Advogado, como dever profissional, em seu artigo 2º: “estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios.” Ainda como exemplo, cuida a lei processual civil vigente dos institutos da conciliação e da mediação, enquanto ferramentas alternativas para resolução de disputas. Veja, desde já, a importância atribuída à prevenção.
As funções conciliadoras e mediadoras do advogado, assim sendo, exprimem melhor a ideia que aqui se coloca, tornando mais fluida a atuação advocatícia, e porque não dizer mais eficaz, dado significarem ambas as funções um certo e determinado “olhar qualificado do profissional” ao caso concreto. Melhor dizendo, um olhar que pode ampliar a visão de todos envolvidos na disputa, atentando e acolhendo a complexidade que invariavelmente se faz presente em toda e qualquer situação de ruptura. São sempre vários os motivos e as razões de cada um, sem se falar dos aspectos mais ou menos conscientes do indivíduo a atuarem em toda a problemática posta.
De fato, a experiência forense comprova e ela mesma está repleta de exemplos a confirmarem que o que cronifica os litígios e os faz repetitivos é o reducionismo com o qual eles (não) são tratados. O conflito, é certo, traz regressão postural, lógica de ataque/defesa e retração de espírito, ferindo de morte, sobretudo, o processo de comunicação das partes, dentro de um contexto que vai de adversidades familiares (conjugais, parentais, entre herdeiros) às disputas societárias, de condôminos e de vizinhos, mesmo as empresariais, já que há sempre pessoas por detrás das empresas. O verbo cala e o diálogo desaparece, nascendo daí o impasse e o transtorno.
No plano do processo judicial, bem se sabe, o que se espera é uma sentença do juiz que ponha fim aos tais conflitos qual um passe de mágica. “Põe na mesa do juiz que ele resolverá.” Será?
Supõe-se que não seja o que se queira de uma sociedade onde o que se busca é o convívio saudável em um ambiente no qual cada indivíduo possa realizar suas aspirações e ampliar sua existência.
Portanto, o que fica aqui proposto é um chamamento social em elevação e apto a nivelar o ser humano por cima, considerando o seu melhor em termos de potencialidades e não o seu pior e apequenado, em termos de limitações. Um balanceamento e um reordenamento entre a Lógica Adversarial e a Lógica da Implicação é o de que se cuida. A primeira, filha da tentação de inocência (“vitimizações”) tão presente nos dias atuais e própria do contexto do litígio, do confronto e da oposição, da ideia de autor e réu, culpado e inocente, tão estéril e cronificante, na medida em que afasta maiores reflexões acerca das reais motivações ali presentes. A segunda, própria da convocação à responsabilização pelas escolhas feitas e, portanto, convidativa ao implicar-se diretamente pelo desenlace do impasse posto, assim, abandonando a busca cega por uma decisão externa ao conflito, vinda da autoridade (paternal) do juiz estatal. “Jurisconstruir”, seja pela conciliação, seja pela mediação, uma solução única e específica para um impasse que diz respeito tão somente a seus envolvidos diretamente e, portanto, assim, legitimar a decisão construída, neste processo que pode vir a ser um verdadeiro tear transformador daquela realidade conflituosa.
Lembrando, por fim, o eminente processualista italiano, mestre de todos, Francesco Carnelutti: “Conciliação é a sentença dada pelas partes, e a sentença é a conciliação imposta pelo juiz.”
Ante o exposto, não só pelas óbvias dificuldades enfrentadas nos dias atuais e que apontam para uma maciça corrida ao Judiciário, sobrecarregando-o ainda mais, deve a sociedade como um todo, distinguindo o joio do trigo, e aquilo que reclama decisões urgentes de fato, se voltar ao uso das ferramentas alternativas de resolução de conflitos previstas em lei – conciliação e mediação – e possibilitar, dessa forma, o restabelecimento da comunicação dos envolvidos para, em momento seguinte, convocá-los a tecerem a mais adequada e possível solução para seus impasses, não fazendo daquilo que é a exceção uma verdadeira regra.
Fábio Botelho Egas Teixeira de Andrade é advogado especialista em Direito de Família e Sucessões, Planejamento Sucessório e atuante em mediações judiciais e extrajudiciais.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM