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Até onde o Estado pode ser alheio à família: doação de sangue, religião e autonomia familiar
Autora: Shirleyne Mary Beltrão Chagas
Advogada, Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Escola Brasileira de Direito, membro da comissão de Família da OAB/Pernambuco e Conciliadora e Mediadora Extrajudicial.
Muitas são as perguntas sobre o quão livre de fato somos e quanta autonomia é realmente dada à família, como base de toda a sociedade. Segundo a própria Constituição Federal de 1988, a família é livre para constituir-se e realizar planejamentos como bem entender, possuindo, cada qual, sua própria lista de regramentos, ensinando seus ideais e crenças, levando a determinada igreja, rituais familiares em datas comemorativas, como, se e quando terão filhos, e demais decisões que cabem ao núcleo familiar decidir.
Constituição Federal de 1988, Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
O constituinte, ao dispor sobre a família, deu a ela plena liberdade de decidir como aconteceria o planejamento familiar que ocorreria naquele meio, mas também dispôs regras e limites, como o princípio da dignidade humana, a paternidade responsável e a própria assistência aos membros da família, cada qual individualmente para evitar exageros de qualquer um destes contra os outros.
Ocorre que, o Brasil segue sendo um país laico, mas totalmente influenciado pela religião, fato que tem inflado conflitos políticos e sociais nos últimos anos. Dentre as religiões que predominam no país, está a Testemunhas de Jeová que, dentre seus dogmas, há a proibição à transfusão sanguínea com a ideia de que cada qual deve dar conta de seu sangue[1].
Em adultos, essa escolha própria não causaria qualquer problema, visto que o médico não possui qualquer lei que o obrigue a realizar a transfusão – possui tão somente o próprio Código de Ética que o obriga a colocar a vida em primeiro lugar, contudo, já foi decidido anos atrás que essa escolha pessoa era válida e deveria ser respeitada –, contudo, com crianças e adolescentes é diferente.
Nesse sentido, o STJ decidiu que o médico pode atuar de modo a salvar a vida de menor ainda que a transfusão seja contraria à vontade de familiares e responsáveis[2], porém, para que tal decisão existir um adolescente faleceu.
O caso em apreço – HC 268.459/SP – ocorreu devido a uma anemia falciforme e exigia uma transfusão com urgência para salvar a vida do menor, mas diante da recusa dos pais, o adolescente faleceu e toda uma ação foi movida contra os pais, pelo Ministério Público, até que a demanda chegou ao STJ.
Na decisão pela 6ª turma do STJ, o médico deveria ter realizado a transfusão ainda que diante da recusa, pois segundo o Código de Ética Médica, em caso de risco iminente à vida deve se sobressair a quaisquer ideais religiosos que possam obstar o tratamento necessário. Na decisão a relatora informou que os profissionais médicos poderiam ter realizado o procedimento e, portanto, foi emitida ordem para extinguir a ação penal.
Destarte, então, que a Constituição dá total liberdade para que as pessoas vivam segundo sua religião e suas escolhas, porém, essa escolha não pode colocar em risco a vida de menor que não fez e nem possuía consciência e maturidade para fazer tal escolha. A liberdade existe desde que sua escolha não afete a vida do outro, principalmente se essa escolha levar à morte de menor, como no caso analisado.
Com o precedente estabelecido pelo STJ, foi assegurada a garantia observada no artigo 226 da CF/88, “§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”, onde, apesar da autonomia familiar, também assegura a proteção aos membros da família.
Para alguns isso poderia significar que tiveram sua religião violada, contudo de modo algum a liberdade de crença foi atingida, visto que a um adulto é garantido o respeito às suas escolhas particulares, como pessoa adulta, capaz e lúcida, conforme a dignidade da pessoa humana. Assim, se tal escolha fosse feita por um adulto sobre situação sobre si, especialmente se resguardado com DAV – Diretivas Antecipadas de Vontade, sobre suas escolhas em momentos críticos, como já ocorreu em 2010[3], essa escolha seria completamente legal. Entretanto, uma escolha pessoal, principalmente desta magnitude não pode se espelhar em um ser inocente e é neste momento que o Estado deve e irá intervir.
O direito individual de forma alguma prevalecerá ao coletivo, e o interesse do coletivo deve ser em preservar o maior bem do ser humano, a vida, razão pela qual o Estado estará presente.
Destaque-se que há, inclusive, a possibilidade de aplicação do princípio do melhor ao menor em casos em que o pai ou mãe devoto dessa ou outra fé demonstrar risco à vida da criança ou adolescente em razão dessa escolha, podendo, se for o caso, existir uma inversão da guarda ou a imposição da guarda unilateral, assim como as demais medidas que se mostrarem necessárias, a depender da situação, ressaltando-se ainda que tal coisa deve ser levada ao judiciário e não imposta por qualquer dos envolvidos ao outro de forma arbitrária.
As crianças e os adolescentes representam, hoje, o futuro da nação e espera-se que sejam melhores do que somos e fomos. É preciso respeitar o passado, mas proteger o futuro.
BIBLIOGRAFIA
- BRASIL, Constituição Federal do. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF.
- SÁ, Fabiana Costa Lima de. “A LIBERDADE RELIGIOSA E A TRANSFUSÃO DE SANGUE NAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ”. Themis, Fortaleza, v.3, n.1, p.323 – 338, 2000. Acesso em 27 de maio de 2024, às 11h. < https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/18833/%27%27A_Liberdade_Religiosa_e_a_Transfus%C3%A3o.pdf>.
- TENORIO, Evilasio. Pais que negam transfusão de sangue de seus filhos com base em convicção religiosa podem ser punidos criminalmente?. Site Migalhas. Publicado em 02 de maio de 2024. Acesso em 27 de maio de 2024, às 11h e 21min. < https://www.migalhas.com.br/depeso/406546/pais-que-negam-transfusao-de-sangue-de-seus-filhos-podem-ser-punidos >.
- XAVIER, Renan. Testemunha de Jeová tem direito de não se submeter a transfusão. Site Consultor Jurídico. Publicado em 10 de junho de 2023. Acesso em 27 de maio de 2024, às 12h. <https://www.conjur.com.br/2023-jun-10/testemunha-jeova-direito-nao-submeter-transfusao/
[1] SÁ, Fabiana Costa Lima de. “A LIBERDADE RELIGIOSA E A TRANSFUSÃO DE SANGUE NAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ”. Themis, Fortaleza, v.3, n.1, p.323 – 338, 2000. Acesso em 27 de maio de 2024, às 11h. < https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/18833/%27%27A_Liberdade_Religiosa_e_a_Transfus%C3%A3o.pdf>.
[2] TENORIO, Evilasio. Pais que negam transfusão de sangue de seus filhos com base em convicção religiosa podem ser punidos criminalmente?. Site Migalhas. Publicado em 02 de maio de 2024. Acesso em 27 de maio de 2024, às 11h e 21min. < https://www.migalhas.com.br/depeso/406546/pais-que-negam-transfusao-de-sangue-de-seus-filhos-podem-ser-punidos >.
[3] XAVIER, Renan. Testemunha de Jeová tem direito de não se submeter a transfusão. Site Consultor Jurídico. Publicado em 10 de junho de 2023. Acesso em 27 de maio de 2024, às 12h. <https://www.conjur.com.br/2023-jun-10/testemunha-jeova-direito-nao-submeter-transfusao/
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