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A reforma do Código Civil e as mudanças quanto ao regime de bens. Parte 1
Flávio Tartuce[1]
No último dia 17 de abril de 2024 foi entregue, em cerimônia oficial no plenário do Senado Federal e ao seu Presidente, Rodrigo Pacheco, o Anteprojeto de Atualização e Reforma do Código Civil Brasileiro. Após 180 dias de intenso trabalho, a Comissão de Juristas, presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão, encerrou a sua digna missão, com um relatório de 311 páginas, disponível em vários canais da internet (ver em: https://www6g.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9586171&).
A partir dessa entrega, portanto, passamos a ter um “projeto” de Reforma, sendo certo não se tratar de um “Novo Código Civil”, uma vez que os princípios e diretrizes fundamentais da atual codificação privada são integralmente mantidos e ampliados. Muitos artigos fundamentais não sofreram qualquer alteração, caso dos arts. 113 e 187, considerados “artigos-chave”. Além disso, foi modificada menos da metade do texto vigente, sendo muitas das propostas de mero aperfeiçoamento da redação, com o fim de deixar mais clara a compreensão dos dispositivos na nossa realidade.
Perguntado recentemente sobre qual foi o momento mais difícil desse processo, apontei o enfrentamento das notícias falsas, das fake news, uma das maiores pestes da atualidade, tema aliás que o Anteprojeto regula, no livro de Direito Civil Digital. Como fica claro da leitura do texto final, o Anteprojeto não trata do aborto – mas, muito ao contrário, reconhece a dignidade humana do nascituro, desde a concepção (art. 1.511-A, §1º) –, não trata da chamada família multiespécie – casamento ou união estável entre pessoas e animais – e não regula no âmbito do Direito de Família a união poliafetiva ou o trisal, como se percebe da leitura do caput do novo art. 1.564-D, ao prever que “a relação não eventual entre pessoas impedidas de casar não constitui família”.
Com o fim de seguir no esclarecimento do seu teor – como já tenho feito neste canal –, abordarei continuamente aspectos do Anteprojeto de Reforma, iniciando com uma série de artigos relativos ao tema do regime de bens entre os cônjuges e conviventes, com a proposta do seu tratamento unificado. A esse propósito, fica a advertência de que a proposta legislativa é no sentido de usar a última expressão destacada para as pessoas que vivem em união estável, seguindo a proposição da nossa Relatora Geral, a Professora Rosa Maria de Andrade Nery.
Iniciando-se com o art. 1.639 do Código Civil, que inaugura o tema do regime patrimonial de bens na codificação privada, pela proposição, o seu caput passaria a prever que “é lícita aos cônjuges ou conviventes, antes ou depois de celebrado o casamento ou constituída a união estável, a livre estipulação quanto aos seus bens e interesses patrimoniais”. Como se pode perceber, além da menção à união estável, há a possibilidade de mudança do regime, mesmo que de forma extrajudicial, após a celebração do casamento ou a constituição da convivência.
Em todos os casos, como já ocorre no sistema atual, o regime de bens entre os cônjuges ou conviventes começa a vigorar desde a data do casamento ou da constituição da união estável (§ 1º do art. 1.639). Não se admite, em qualquer hipótese, que o regime de bens tenha eficácia retroativa ou ex tunc, não tendo sido adotada proposta que surgiu nesse sentido na Comissão de Juristas. Como é notório, a jurisprudência superior consolidada não admite que a escritura pública de união estável tenha eficácia retroativa, posição que foi espelhada na proposta do texto legal.
Dos acórdãos superiores, destaco o seguinte, entre os mais recentes e relatados pelo vice-presidente da Comissão de Juristas, o Ministro Marco Aurélio Bellizze: “em razão da interpretação do art. 1.725 do CC/2002, decorre a conclusão de que não é possível a celebração de escritura pública modificativa do regime de bens da união estável com eficácia retroativa, especialmente porque a ausência de contrato escrito convivencial não pode ser equiparada à ausência de regime de bens na união estável não formalizada, inexistindo lacuna normativa suscetível de ulterior declaração com eficácia retroativa. (...) Em suma, às uniões estáveis não contratualizadas ou contratualizadas sem dispor sobre o regime de bens, aplica-se o regime legal da comunhão parcial de bens do art. 1.725 do CC/2002, não se admitindo que uma escritura pública de reconhecimento de união estável e declaração de incomunicabilidade de patrimônio seja considerada mera declaração de fato pré-existente, a saber, que a incomunicabilidade era algo existente desde o princípio da união estável, porque se trata, em verdade, de inadmissível alteração de regime de bens com eficácia ex tunc” (STJ, REsp n. 1.845.416/MS, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, relatora para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/8/2021, DJe de 24/8/2021).
Seguindo exatamente essa linha, e com o intuito de afastar as corriqueiras fraudes praticadas com a celebração de pactos com eficácia ex tunc, sobretudo em detrimento dos direitos das mulheres, o novo art. 1.653-A, parágrafo único, passará a prever que “não se admitirá eficácia retroativa ao pacto conjugal ou convivencial que sobrevier ao casamento ou à constituição da união estável”.
Sobre a modificação do regime de bens, seguindo a linha da Reforma de reduzir burocracias, de desjudicializar e de destravar a vida das pessoas – expressão que tenho constantemente utilizado –, o § 2º do art. 1.639 traz proposta segundo a qual, “depois da celebração do casamento ou do estabelecimento da união estável, o regime de bens pode ser modificado por escritura pública e só produz efeitos a partir do ato de alteração, ressalvados os direitos de terceiros”.
Atende-se, assim, ao antigo pleito doutrinário no sentido de que a alteração do regime de bens, especialmente no casamento, pode ser feita por escritura pública, perante o Tabelionato de Notas, sem a necessidade de ser judicializada a questão, como é na realidade atual, com um entrave desnecessário e injustificável para os dias de hoje. Ora, se o casamento é celebrado e dissolvido extrajudicialmente, não há razão plausível para que a mudança do regime de bens seja feita apenas no plano judicial.
Além de uma alteração substancial desse comando da codificação material, a Comissão de Juristas propõe a revogação expressa do art. 734 do Código de Processo Civil, que trata do procedimento para a modificação do regime de bens do casamento. Na sua dicção atual, “a alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justificam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros”. A norma instrumental também prevê que, “ao receber a petição inicial, o juiz determinará a intimação do Ministério Público e a publicação de edital que divulgue a pretendida alteração de bens, somente podendo decidir depois de decorrido o prazo de 30 (trinta) dias da publicação do edital” (§ 1º). Com o devido respeito, não há razão para se impor aos cônjuges a justificação para a mudança do regime de bens, não havendo também qualquer razão para se exigir a atuação do MP, por se tratar de questão estritamente patrimonial.
A esse propósito, mitigando a última imposição, na III Jornada de Direito Processual Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em 2023, aprovou-se o Enunciado n. 177, estabelecendo que, “no procedimento de alteração de regime de bens, a intimação do Ministério Público prevista no art. 734, § 1º, do CPC somente se dará nos casos dos arts. 178 e 721 do CPC”. Como foi ali justificado, “o art. 734, § 1º, trata de matéria patrimonial e, em tese, disponível, de modo que não se justifica tratar o dispositivo como exceção ao art. 721, do CPC, que forma um regime único interventivo para o Ministério Público nos procedimentos especiais de jurisdição voluntária”. Por esses aspectos e também por outros, entendemos que a norma processual é hoje totalmente desnecessária, devendo ser revogada.
A verdade é que, além da modificação do regime de bens por escritura pública, também será possível a sua alteração por cláusula prévia estabelecida no contrato entre cônjuges ou companheiros, por pacto antenupcial ou convivencial celebrado sempre por escritura pública, sob pena de nulidade absoluta (art. 1.653-A). Como está no projetado art. 1.653-B, “admite-se convencionar no pacto antenupcial ou convivencial a alteração automática de regime de bens após o transcurso de um período de tempo prefixado, sem efeitos retroativos, ressalvados os direitos de terceiros”.
Trata-se da chamada “sunset clause” ou cláusula de caducidade – literalmente, “cláusula do pôr do sol” –, com origem no sistema da Common Law, tendo sido destacada pelo Professor Pablo Stolze Gagliano em vários momentos dos encontros da Comissão de Juristas. Como constou do Relatório da Subcomissão de Direito de Família, da qual ele fez parte, sempre foi a sua intenção tratar da “regra inovadora (sunset clause), no sentido de permitir ao casal optar, após um lapso de tempo, pela alteração automática do regime de bens (‘é admitido pactuar a alteração automática de regime de bens após o transcurso de um período de tempo prefixado’)”.
Assim, a título de exemplo, os cônjuges e companheiros poderão convencionar que nos cinco anos iniciais do relacionamento o regime patrimonial será o da separação convencional de bens, convertendo-se em comunhão parcial depois desse período de experiência. A previsão, mais uma vez, é essencialmente patrimonial, não havendo qualquer lesão a normas cogentes ou de ordem pública, o que foi uma preocupação constante da Reforma. Mais uma vez, segue-se a linha de redução de burocracias, de desjudicialização, de destravar a vida das pessoas, como tenho destacado de forma constante.
No próximo texto seguirei com a análise de questões importantes sobre o regime de bens, tratando da possibilidade de criação do regime misto e das alterações relativas ao tema da outorga conjugal e convivencial, entre outros assuntos.
[1] Pós-Doutor e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Relator do Projeto de Reforma do Código Civil. Primeiro Presidente e Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente da Comissão de Direito das Sucessões do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Conselheiro seccional da OABSP e Diretor da ESAOABSP. Advogado em São Paulo, parecerista, árbitro e consultor jurídico.
Disponível: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/406125/a-reforma-do-codigo-civil-e-as-mudancas-quanto-ao-regime-de-bens
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