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O ritual do divórcio e da dissolução da união estável
Rodrigo da Cunha Pereira
é presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)
Todas as sociedades humanas, implícita ou explicitamente, para reafirmarem sua estrutura e organização política, social e jurídica, passam por seus “processos rituais”. Para se fazer uma lei, da mais simples à mais importante — a Constituição —, é preciso passar por um processo.
Processo é um caminho percorrido, ou a percorrer. Mas não são só as proposições políticas e sociais que têm processos e ritos. As pessoas, individualmente e para se tornarem sujeitos, estão em permanente processo de crescimento e amadurecimento. Primeiro o nascimento, um processo, muitas vezes acompanhado de dor. Depois, o separar-se da mãe e o eterno tornar-se adulto.
Toda nossa vida está entremeada de rituais — aniversários, formaturas, velórios, etc. Na religião cristã, o batismo, a crisma, o matrimônio, entre outros sacramentos, é que introduzem o sujeito-cristão em uma outra fase de sua vida. Como na linguagem e simbolismo dos mitos, os rituais nos ajudam a representar o indizível.
Os rituais ajudam-nos a suportar melhor a passagem de um estado de ser para outro, introduzindo-nos em uma nova fase, posição social, lugar, idade etc. Para se passar do estado civil de solteiro ao de casado, é necessário o ato do casamento, portanto um ritual de passagem. O casamento requer toda uma preparação ritualística, tanto o civil como o religioso: certidões, proclamas, celebração e, muitas vezes, os festejos.
Os rituais de passagem são transposições de uma borda à outra, ou seja, de uma posição para outra. E significa também um momento da decisão. Decidir pressupõe responsabilidade e também ter que deixar algo para trás. Por isso, muitas vezes esses rituais, essas decisões vêm acompanhadas de sofrimento. Por um lado, significa perder, por outro ganhar.
Na linguagem jurídica, os ritos se traduzem como processo. Podemos dizer, então, que o processo judicial é um ritual, sob o comando do juiz, que ocupa a importante função de representante da lei e simbolicamente também de “um pai”, que vem, principalmente, fazer um corte, pôr fim (sentença) a uma demanda, amigável ou litigiosa, instalando uma nova fase na vida das pessoas. Muitas vezes vêm também, no litígio conjugal, barrar o desejo desenfreado, o excesso, colocando fim a uma relação doentia, e sustentada principalmente pelo ódio.
Separação conjugal
Um dos mais sofridos e traumáticos ritos de passagem em nossa vida é o da separação conjugal. Alguns não conseguem transpor este ritual e viver o luto necessário. Se o casamento adoeceu é necessário fazer alguma coisa por ele, e pelos sujeitos ali envolvidos. Muitos não conseguem fazer um “passe” e percorrer o, às vezes, necessário, ritual da separação, e se entregam a uma eterna lamentação e sofrimento.
Freud, em sua obra “Luto e Melancolia” (1917), ao fazer uma importante diferenciação entre luto e melancolia, nos ajuda a compreender melhor o luto como um estado transitório. Segundo ele, os traços da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a diminuição dos sentimentos de auto-estima e o empobrecimento de seu ego, que pode se apresentar também em forma de mania.
O luto, genericamente, é a reação à perda de um ente querido; é o mundo que se torna vazio. O luto pode ser visto também como um ritual ou processo de passagem necessário à compreensão da perda. Por isso é importante enterrar nossos mortos e fazer os rituais necessários (velório, cremação, cultos religiosos etc.).
O processo judicial de inventário, por exemplo, tem também essa função simbólica: ajudar na elaboração da morte e na passagem pelo luto. Algumas pessoas não conseguem dar andamento ou terminar esses processos, tamanha a dificuldade de lidar com esse luto. Têm sempre uma desculpa: não tem tempo, custa caro, falta documento etc., mas, inconscientemente, isto significa mesmo é a dificuldade da elaboração da perda.
Cumprir rituais, sair de uma posição de sofrimento, elaborar o luto, significa tomar as rédeas do próprio destino. É uma decisão entre ser sujeito ou permitir-se ser objeto do desejo do outro. Por isso os rituais exigem preparação, discernimento e coragem. Mas ao final, além de fazer uma passagem, uma transposição, eles podem também servir de elevação da alma, apesar da dor que, muitas vezes, os acompanha. (cf. meu livro Direito das Famílias. Ed. Forense 5ª edição, pág. 233)
O ritual do divórcio/dissolução da união estável, que fará a passagem de um estado civil para outro, apesar do sofrimento traz consigo o mesmo sentido do casamento, ou seja, as pessoas se casam para serem felizes e separam, também, à procura da felicidade.
Publicação: https://www.conjur.com.br/2024-mai-21/o-ritual-do-divorcio-e-da-dissolucao-da-uniao-estavel/
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