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O Impacto da Enchente no Rio Grande do Sul no Direito de Família: Desafios e Soluções
Fabiano Rabaneda dos Santos é advogado especialista
em direito de família e sucessões.
No segundo trimestre do ano de 2024, o estado do Rio Grande do Sul foi atingido por uma enchente de proporções sem precedentes em sua história. As intensas chuvas que assolaram a região resultaram em um aumento significativo dos níveis dos rios, transbordamentos generalizados e inundações devastadoras em diversas cidades e municípios.
A magnitude dessa enchente foi avassaladora, afetando milhares de famílias em toda a região. Casas foram inundadas, propriedades foram destruídas, e comunidades inteiras foram forçadas a evacuar suas residências em busca de segurança. Estradas foram bloqueadas, pontes foram danificadas e o acesso a serviços básicos, como água potável e eletricidade, foi severamente comprometido.
Os impactos sociais e econômicos dessa catástrofe foram profundos. Muitas famílias perderam tudo o que tinham, enfrentando desabrigamento, perda de bens pessoais e incertezas quanto ao futuro. Além disso, a enchente exacerbou as desigualdades existentes, atingindo com maior gravidade as comunidades mais vulneráveis e economicamente desfavorecidas.
Diante dessa situação desafiadora, as famílias da região se viram confrontadas com uma série de questões legais e sociais, incluindo preocupações relacionadas à segurança, saúde, educação, emprego e, claro, questões específicas do direito de família.
No cenário legislativo, o Plenário do Senado aprovou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 236/2024, reconhecendo o estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul em resposta à ocorrência. Diferentemente do que foi observado durante a pandemia, não foram implementadas regras específicas no âmbito do direito civil e processual civil para esse período excepcional, tal como foi visto anteriormente com a edição do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) durante a pandemia de Covid-19, conforme estabelecido pela Lei nº 14.010/2020.
De uma hora para a outra, as famílias afetadas enfrentam uma série de desafios legais e emocionais, desde questões relacionadas ao convívio com filhos, pensão alimentícia, divisão de bens e a proteção contra a violência doméstica.
Em meio à emergência causada pela ocorrência da calamidade pública, diante do cenário de absoluta restrição, surgem diversos assuntos relacionados à guarda/convivência de crianças e adolescentes com seus genitores, demandando uma abordagem sensível e ágil por parte das autoridades e instituições envolvidas.
Na pandemia, as questões relacionadas à guarda/convivência também foram impactadas e podem servir como paradigma neste momento, uma vez que naquele período de isolamento social, diante das restrições de mobilidade impostas pelas autoridades, restou explicitado as dificuldades para garantir que os filhos mantivessem contato regular com ambos os pais, especialmente quando um deles vivia em uma área de alto risco ou estava em quarentena.
No caso da calamidade rio-grandense, muitas famílias foram obrigadas a evacuar suas residências às pressas e com as estradas interrompidas pelos deslizamentos, a população enfrenta condições adversas e incertezas quanto ao futuro, aumentando as tensões familiares e acentuando conflitos adicionais.
Nesse contexto, a colaboração e a comunicação entre os pais se tornam essenciais para assegurar o bem-estar e a estabilidade das crianças durante o período de calamidade, onde destacamos a importância de encontrar soluções inovadoras para manter o contato e garantir que as necessidades emocionais e físicas dos filhos sejam atendidas, quando especial atenção deve ser dada à criação de um ambiente seguro e protegido, com atendimento das necessidades básicas das crianças e adolescentes, como alimentação, abrigo e cuidados médicos.
No entanto, a dificuldade de convívio se acentua quando genitores residem em locais distintos e diante da interrupção do sinal de internet causada pela queda das operadoras, sendo a comunicação digital uma das principais formas de manter contato durante a calamidade, a falta de acesso à internet dificulta ainda mais a capacidade dos filhos se comunicarem com seus genitores, impedindo até mesmo que os pais se coordenem nas necessidades dos filhos, exacerbando os desafios enfrentados pelas famílias afetadas pela enchente.
Como meio de viabilizar a reunião familiar e minimizar os danos causados nas crianças e adolescentes, durante uma evacuação de emergência é importante priorizar o agrupamento das famílias, garantindo que pais e filhos estejam juntos em um local seguro. As autoridades devem facilitar o reencontro rápido e seguro das famílias separadas pela calamidade, minimizando o impacto emocional causado pela tragédia.
Em casos em que as famílias são temporariamente deslocadas ou separadas devido à enchente, deve ser estabelecidos acordos de guarda provisória para garantir a segurança e o bem-estar das crianças, sempre se atentando que esses acordos devem ser flexíveis e adaptáveis às circunstâncias em constante mudança.
Outro fator a ser considerado é a perda de empregos ou fontes de renda devido à calamidade, que se apresenta como desafios significativos para os pais em relação ao pagamento da pensão alimentícia: como vítimas da enchente, mesmo aqueles que não foram afetados diretamente pelas águas, é preciso considerar a perda repentina de empregos devido ao fechamento de empresas afetadas pela calamidade, danos a infraestruturas comerciais ou interrupção das atividades econômicas que levam aos genitores a enfrentarem dificuldades financeiras para arcar com as despesas diárias, incluindo a pensão alimentícia.
Diante das necessidades imediatas de abrigo, alimentação e cuidados médicos após a enchente, os genitores podem ser forçados a priorizar essas despesas sobre o pagamento da pensão alimentícia, resultando em atrasos ou impossibilidade de cumprir com suas obrigações financeiras para com os filhos.
Em resposta às dificuldades financeiras enfrentadas pelos pais durante a calamidade, pedidos de ajustes temporários ou revisões permanentes das obrigações de pensão alimentícias devem ter prioridade na tramitação, buscando refletir as mudanças na situação financeira dos pais devido à calamidade, sem com isso desprestigiar a necessidade de prioridade absoluta dos filhos em se alimentar.
A inclusão em programas sociais é uma medida importante para mitigar os impactos da enchente no Rio Grande do Sul, especialmente para famílias que enfrentam dificuldades para alimentar seus filhos, fornecendo assistência financeira direta às famílias afetadas pela calamidade, ajudando a aliviar o fardo das despesas diárias, como alimentação, moradia e cuidados médicos.
Evidentemente que os genitores que enfrentam dificuldades financeiras devido à crise devem ser incentivados a avaliar todos os recursos disponíveis para cumprir com suas obrigações de pensão alimentícia, se valendo inclusive da ajuda de familiares ou amigos, uma vez que é dever da sociedade mitigar os riscos que venham a atingir crianças e adolescentes.
A prisão por falta de pagamento de pensão alimentícia é uma medida legal estabelecida para garantir que os filhos recebam o apoio financeiro necessário de ambos os pais, no entanto, em situação de calamidade como a que se apresenta no Rio Grande do Sul, a aplicação dessa medida é desafiadora diante do impacto da calamidade, quando nestas situações, a prisão pode não resolver o problema subjacente e pode até mesmo agravar as dificuldades financeiras enfrentadas pelo devedor, cabendo uma análise mais apurada pelo Poder Judiciário na hora de julgar os casos envolvendo tais questões.
Considerar abordagens alternativas para garantir o pagamento dos alimentos pelo devedor, como a negociação de acordos de pagamento temporários ou a revisão das obrigações de pensão alimentícia com base na situação financeira atual do alimentante, por ser uma abordagem sensível e equilibrada para o momento, é uma forma para garantir o cumprimento das obrigações de alimentos de forma justa e equitativa.
A destruição provocada pela calamidade pública no Rio Grande do Sul também gera repercussões significativas na questão patrimonial, quando ativos familiares, como propriedades, veículos, móveis e pertences pessoais, podem ter sido danificados ou perdidos devido à inundação, podendo ensejar revisão cuidadosa dos acordos prévios ou das determinações judiciais anteriores.
Como a divisão de bens é determinada com base em uma avaliação dos ativos e passivos do casal no momento da separação, na ocorrência de uma enchente que altere drasticamente essa equação, cabe a necessidade de reavaliar o valor dos ativos afetados. Por exemplo, uma propriedade que foi inundada e sofreu danos estruturais significativos pode ter perdido consideravelmente seu valor de mercado. Da mesma forma, veículos, móveis e outros bens pessoais podem ter sido danificados a ponto de não terem mais valor ou de serem irreparáveis.
Se os bens não estavam cobertos por seguro ou se o valor da indenização do seguro é insuficiente para cobrir as perdas, os cônjuges podem precisar renegociar os termos da divisão de bens para refletir a nova realidade financeira resultante da calamidade.
É de se perceber um aumento potencial dos casos de violência doméstica, já que o estresse, a incerteza e as tensões exacerbadas pela calamidade podem intensificar os conflitos familiares e levar a um aumento na incidência de violência doméstica. Além disso, as restrições de mobilidade e isolamento social impostas pela enchente dificultam para as vítimas buscar ajuda ou escapar de situações abusivas.
É preciso que nas áreas afetadas pela enchente, abrigos de emergência estão disponíveis para oferecer refúgio seguro e proteção às vítimas de violência doméstica e suas famílias, estando aptos para fornecer um ambiente seguro onde as vítimas podem receber apoio, orientação e assistência para reconstruir suas vidas.
Mesmo em situações de desastre natural como observado no Rio Grande do Sul, é importante que as vítimas saibam que não estão sozinhas e que existem recursos legais e serviços de apoio disponíveis para ajudá-las a buscar assistência e proteção, onde destacamos a importância da atuação da sociedade em garantir proteção adequada e no fornecimento de acesso a recursos e serviços de apoio.
Expostos pelas condições extremas, feridos ou separados de seus donos, os animais domésticos sofrem com a enchente, pois são seres sencientes que experimentam medo, dor e angústia diante da adversidade. Durante esses momentos de crise, é essencial que medidas sejam tomadas para garantir sua segurança e bem-estar, assim como para facilitar seu reencontro com suas famílias.
Observamos a mobilização de recursos e esforços para resgatar e abrigar animais em situação de perigo durante a enchente, incluindo a criação de abrigos temporários para animais, onde eles possam receber cuidados veterinários, alimentação e abrigo adequados até que possam ser reunidos com seus donos.
Faço uma ressalva ao fato de ser importante estabelecer sistemas eficazes de identificação e registro de animais perdidos para ajudar na identificação e no reencontro dos amigos com as suas famílias.
Como forma de garantir o acesso à justiça e proteção às famílias afetadas pela catástrofe climática no Rio Grande do Sul, numa ação conjunta entre o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) ficou demonstrado o comprometimento das instituições em garantir o acesso à justiça mesmo em meio a situações adversas. O desenvolvimento de uma unidade em regime de exceção no sistema Eproc para atender as demandas de plantão do TJRS, é um exemplo concreto de como o sistema jurídico pode se adaptar para garantir que as famílias afetadas tenham acesso aos serviços judiciais essenciais.
A utilização de tecnologias de comunicação remotas, como videoconferências e telefones, pode permitir que as famílias afetadas acessem assistência jurídica sem precisar comparecer a escritórios de advocacia ou tribunais, ajudando a população superar as limitações de transporte e comunicação causadas pela enchente.
É fundamental reconhecer a importância da advocacia durante situações de crise, pois é por meio do compromisso privado do advogado que se assegura que as famílias tenham acesso à justiça e à assistência jurídica essencial para enfrentar os desafios legais decorrentes da calamidade. Ao desempenhar seu papel, os advogados garantem a proteção dos direitos das famílias afetadas e contribuem para facilitar a recuperação e reconstrução das comunidades atingidas pela enchente, devendo ter acesso aos recursos adequados e ser incentivado para que possam continuar seu trabalho vital em prol da justiça e dos direitos humanos, mesmo sendo – da mesma forma – afetados pela calamidade.
Por isso, preciso abordar a importância do apoio psicológico e dos recursos disponíveis para lidar com o trauma emocional causado pela calamidade: o trauma emocional resultante de perder suas casas, pertences e até mesmo entes queridos é avassalador e nesses momentos difíceis, é fundamental abordar a importância do apoio psicológico e dos recursos disponíveis para ajudar as pessoas a lidar com o impacto emocional da calamidade.
É de elogio o trabalho voluntário desenvolvido pela Associação Brasil Pela Cura, que está desempenhando um papel fundamental na ajuda às vítimas do desastre das enchentes no Rio Grande do Sul, fornecendo apoio psicológico por meio de um grupo de psicólogos voluntários. É louvável sua iniciativa em oferecer atendimento psicológico online gratuito no apoio às pessoas afetadas, especialmente aquelas que foram deslocadas de suas casas ou que enfrentam dificuldades para lidar com o trauma emocional da inundação.
Como o apoio psicológico desempenha um papel importante na recuperação emocional das famílias afetadas pelo desastre, o suporte emocional, orientação e técnicas de enfrentamento ajudam as pessoas a lidar com o estresse, a ansiedade, a tristeza e outros sentimentos intensos que surgem após um desastre natural. Os profissionais podem fornecer estratégias para lidar com sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e outras condições de saúde mental relacionadas ao trauma.
Abordar o impacto na saúde mental das famílias afetadas pela enchente é fundamental para promover a recuperação e o bem-estar emocional após esse desastre natural, ajudando às pessoas a enfrentar o trauma emocional e a reconstruir suas vidas com resiliência e esperança.
A enchente que assolou o Rio Grande do Sul terá repercussões profundas no âmbito do Direito de Família, apresentando desafios multifacetados que vão desde questões relacionadas à guarda e convivência dos filhos até a revisão de acordos de pensão alimentícia e divisão de bens. A ausência de medidas legislativas específicas para esse período de calamidade exige uma abordagem sensível e ágil por parte das autoridades e instituições envolvidas.
A colaboração e comunicação entre os genitores tornam-se fundamentais para garantir o bem-estar e a estabilidade das crianças e adolescentes e soluções inovadoras, como o uso de tecnologias de comunicação remota, auxiliam nas adversidades impostas pela calamidade.
Além das questões jurídicas, é imprescindível considerar o impacto psicológico da enchente nas famílias afetadas. O apoio emocional e o acesso a recursos psicológicos são fundamentais para ajudar as pessoas a enfrentar o trauma emocional e reconstruir suas vidas com resiliência e esperança.
Assim, através da cooperação entre diferentes setores da sociedade que podemos enfrentar os desafios impostos por desastres naturais como a enchente no Rio Grande do Sul, buscando promover a justiça, proteger os direitos humanos e garantir a recuperação e reconstrução das comunidades afetadas com proteção às famílias em suas formas de constituição.
Fontes de consulta.
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CRUZ, Elisa Costa. Prisão Civil por Dívida Alimentar na Pandemia: Uma Análise das Decisões do Superior Tribunal de Justiça Perante o Princípio do Melhor Interesse da Criança e os Direitos da Mulher. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDC, v. 4, n. 2, p. 45-63, abr. 2022. DOI: 10.33242/rbdc.2022.04.011. Disponível em: https://orcid.org/0000-0002- 4589-2343. Acesso em: 08 maio 2024.
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TJSC. [Tribunal de Justiça de Santa Catarina]. TJSC cria unidade de plantão no eproc para socorrer TJRS durante tragédia climática. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/-tjsc-cria-unidade-de-plantao-no-eproc-para-socorrer-tjrs-durante-tragedia-climatica?redirect=%2Fweb%2Fimprensa%2Fnoticias. Acesso em: 08 maio 2024.
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