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Direito das Famílias e a Socioafetividade: Um Diálogo Importante
Direito das Famílias e a Socioafetividade: Um Diálogo Importante
Kelly Moura Oliveira Lisita 1
A socioafetividade é um tema que tem o condão de despertar emoções e diálogos importantes.
A filiação socioafetiva é tão importante quanto a biológica e contribui significativamente para a formação da personalidade, da segurança emocional do filho (a) socioafetivo (a) e merece receber toda proteção legal, ainda que o Código Civil não trate de forma clara, temos provimentos, decisões e no mesmo código.
O Direito Familiarista reconhece a existência das várias espécies de famílias e objetiva tratá-las com atenção, sem fazer distinções.
Atualmente podemos mencionar as famílias pluriparentais, as multiespécies, as monoparentais, as homoafetivas, as adotivas, as anaparentais e também as socioafetivas, conhecidas como famílias multiparentais.
As monoparentais ou uniparentais são formadas por um genitor e filho (s), já as pluriparentais, por genitores e filho (s), sendo as homoafetivas formadas por pessoas que tem a mesma orientação sexual, as anaparentais por parentes que criam sobrinhos, netos, as adotivas por pessoas que judicialmente pleitearam a adoção e tornaram-se pais de filhos sem qualquer laço sanguíneo e por fim as socioafetivas, que são confundidas com as adotivas por terem como protagonistas os filhos intitulados ou gerados pelo coração e não advindos dos laços consanguíneos.
A convivência habitual sempre foi grande colaboradora para o nascimento de relações muito próximas e consequentemente também na maioria das vezes é a grande responsável pelo afeto que se é criado. O amor é construído no decorrer da convivência, onde acontece a chamada internalização do carinho, do respeito, da afeição
Ressalte-se que existem diferenças entre a adoção e a socioafetividade, mas um fator é preponderante na caracterização da formação dessas famílias: o amor existente e capaz de criar relações extremamente próximas e vinculadas pela atenção e participação, sem que haja sequer qualquer laço consanguíneo. A adoção tem o poder de desvincular o adotado em relação à sua família consanguínea e a socioafetividade tem por objetivo somar e não desvincular. Destaque-se que a adoção tem que seguir os ditames da lei.
A verdadeira sociafetividade não é comprovada com palavras, mas com gestos, com simples atitudes que colaboram para o nascimento de um elo entre pessoas que sequer possuem o sangue como indicador de parentalidade.
A socioafetividade pode ser paterna ou materna, mas é verificada com ênfase na relação envolvendo o padrasto e o (a) enteado (a).
Importante mencionar que Socioafetividade significa vínculo afetivo estabelecido entre as partes, remetendo-nos ao fato de questões sociais e afetivas pertinentes às relações amparadas pela força do sentimento e não do sangue como fator preponderante para a caracterização de parentesco.
Juridicamente os pais em relação a seus filhos possuem como parentesco a ascendência em 1ºgrau, consequentemente os pupilos são seus descendentes, logo durante muitos anos consideravam-se pai e mãe, aqueles que conceberam, que possuíam o sangue como o elo, sendo essa até então a única prova da filiação.
Com o passar dos anos, da modernização de conceitos e formação de novas famílias, obviamente que inúmeras modificações foram surgindo e muitas indagações nasceram e corroboraram para que uma situação que já existia fosse reconhecida e que recebesse seu justo reconhecimento.
Por que não aceitar que um homem que cria uma pessoa como sendo seu filho ou filha não poderia ser intitulado perante toda a sociedade como pai, haja vista a atenção, o carinho e a presença advirem também de sua parte e não somente do pai biológico? Pai e mãe são pessoas que criam, que depreendem atenção, amor e carinho.
Excluiu-se então do conceito de família aquela ideia de que apenas pai, mãe e filho (a) biológico (a) é que formavam núcleo familiar.
Podemos indicar que essa foi uma das inovações trazidas pelo Código Civil de 2002 em seu artigo 1593, que não tratou o assunto de forma objetiva, mas permitiu sua extensividade a outras famílias, tal qual a socioafetiva:
Art.1593 - “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.
A noção de família vai muito além de pessoas que tenham vínculos apenas sanguíneos e é mister ressaltar que existe diferença entre parente e família, sendo que na primeira o fator biológico comanda tal definição, já na segunda a afeição e o amor podem gerar união entre pessoas sem fator biológico indicativo ou ainda em relação àquelas que possuem esses requisitos mais o fator biológico. A legislação civilista de 1916 no âmbito familiar não teve como alicerce a afetividade, tratava da família patriarcal, advinda do matrimônio e para ser filho era necessário observar dois critérios: ter o sangue e ter nascido no seio do casamento.
A nossa Magna Carta de 1988 ainda estabeleceu igualdade entre todos os filhos em seu artigo 227, parágrafo 6º ao manifestar-se acerca dos filhos e a vedação de qualquer discriminação:
Art.?227-?“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”
Ainda em seu parágrafo 6º:
? ? §?6º?“Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”
Salutar mencionar que em relação aos filhos havidos ou não do casamento, cite-se os que vieram de relações anteriores ao matrimônio, os que foram concebidos em relações extraconjugais, os nascidos de incestos. Todos merecem tratamento digno e igualitário.
É fato que há notórias diferenças entre ser genitor e ser pai e mãe. Ser genitor é contribuir ainda que por meios naturais com material genético e ser pai é criar, educar, amparar, independentemente de ter contribuído com material genético, ainda que por meios naturais.
Com imensa sabedoria discorreram, PABLO STOLZE GAGLIANO E RODOLFO PAMPLONA FILHO, (2017, p.1363),” ser genitor é o mesmo que ser pai ou mãe? Haja vista a referida condição materna ou paterna ir muito além do que a simples situação de gerador biológico, com um significado espiritual profundo”.
Infelizmente depreendemos que muitas pessoas não entendem o poder da concepção que é amplo, gerando desde então direitos, deveres e responsabilidades para toda a vida, quando incessantemente há o denominado abandono afetivo e porque também não citar o abandono material, envolvendo pais e filhos.
O abandono afetivo é a não participação na vida do filho, em datas comemorativas como aniversário, festas de fim de ano, reuniões escolares, enfim há o desprezo de forma a prejudicar o estado emocional do filho, que sente-se desamparado, rejeitado, podendo inclusive levá-lo a problemas de ordem psicológica e desenvolvimento de doenças psicossomáticas. Já o abandono material é caracterizado pelo fato do genitor não realizar o pagamento de pensão alimentícia judicialmente fixado ou acordado, conforme preleciona o artigo 244 do Código penal Brasileiro.
É válido, todavia ressaltar que a socioafetividade não gera a “desbiologização” na relação entre genitores e filhos (as), sendo possível o reconhecimento da socioafetividade e a preservação do reconhecimento biológico. Para melhor compreensão: uma pessoa pode manter o sobrenome de seu pai ou mãe biológicos e acrescer o sobrenome de seu padrasto ou madrasta. E se isso fosse a regra, teríamos menos pessoas sofrendo com o abandono afetivo.
A socioafetividade nem sempre decorre do abandono afetivo, mas infelizmente na maioria dos casos é perceptível que a falta de atenção de pais divorciados para com seus filhos ocorre com muita frequência e quando um dos pais se casa novamente as chances de seu novo (a) cônjuge gerar laços afetivos com a prole é altamente considerável.
A adoção segue procedimentos diferenciados da formalização da socioafetividade e exclui todo o vínculo do adotado com a família biológica, incluindo sucessão, questões alimentares, prenome, nome e sobrenome, alteração em registro identificando a filiação.
Deve ser pleiteada judicialmente, tem caráter de irrevogabilidade ocasionando parentesco de natureza civilista, não gerando diferenças entre filhos biológicos e adotivos na sucessão e em questões alimentares. Exemplificando: se eu adoto uma criança, a mesma passa a ser minha filha, não constando assim em seu registro, qualquer menção a seus pais biológicos, tornando-se ainda minha sucessora e não de seus pais biológicos e em contrapartida eu passo a ter responsabilidades com a filha em questão, com sua criação, educação, assistência médica, odontológica, psicológica e tudo que lhe disser respeito.
Já a socioafetividade é amparada pelo Provimento número 63/2017, do Conselho Nacional de Justiça e não exclui quaisquer vínculos com a família biológica. É o reconhecimento dos laços de amor estabelecidos entre por exemplo, o padrasto e seu enteado.
À luz do entendimento de PABLO STOLZE GAGLIANO E RODOLFO PAMPLONA FILHO (2017, p.1367) “o outro lado da moeda da socioafetividade é a “figura da posse do estado de filho, em que se exteriorizando a convivência familiar e a afetividade, admite-se o reconhecimento da filiação, sendo o famoso filho de criação, cuja adoção não foi formalizada, mas o comportamento na família, integra-o como se filho biológico fosse”
A filiação socioafetiva tem-se tornado cada vez mais comum nas famílias brasileiras, haja vista o número considerável de genitores que praticam o abandono afetivo em desfavor de seus pupilos em processo de pós divórcio, conforme já explicitado em linhas anteriores. O pagamento de pensão alimentícia sem a devida atenção e participação habitual na vida dos filhos não caracteriza o verdadeiro exercício da paternidade ou da maternidade.
Observando ainda fatos tão rotineiros não há como excluir uma outra situação: pessoas que foram criadas por seus padrastos e madrastas sem que tivessem em seus registros a filiação biológica, optam por procurarem a verdade biológica, ou seja, manifestam interesse em conhecer o pai ou a mãe, porém, tendem a oficializar a verdade real: pleiteiam o reconhecimento do padrasto ou da madrasta como pais socioafetivos.
Inclusive existem expressões populares que melhor reconhecem esse laço da socioafetividade, como “bomdrasto ao invés de padrasto e boadrasta ao invés de madrasta”, como ainda “mãe ou pai postiços”, sem excluirmos que a palavra enteado (a) foi substituída por filho (a) do “coração, ou postiço (a) ou simplesmente por filho (a).”
O Provimento número 63, de 14 de novembro de 2017 reconhece o parentesco advindo de outra origem e também o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva perante o oficial do registro civil das pessoas naturais em observação ao princípio da igualdade jurídica e da filiação.
Destaca-se ainda que o Provimento 83,de 14 de agosto de 2019 fez alterações na Seção II do Provimento 63 em questão acerca do reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva de pessoas acima de 12 anos ,que pode ser feita extrajudicialmente perante os oficiais do registro civil das pessoas naturais(Artigo 10) e que a referida filiação deve ser comprovada através de sua exteriorização e estabilidade, devendo o oficial do registro apurar a existência do vínculo observando os elementos concretos (Artigo 10-A) e ainda se o filho tiver menos de 18 anos, deverá manifestar seu consentimento para o tal reconhecimento.(Artigo10-A,III,§4º).
A parte requerente por sua vez deverá não apenas demonstrar, mas concomitantemente comprovar a afetividade, apresentando documentos como inscrição do pretenso filho em plano de saúde, órgão da previdência, apontamento escolar como responsável ou representante do aluno (a) ao oficial do registro.
O Oficial do Registro fará o reconhecimento após o parecer favorável do Ministério Público. Havendo divergências a parte requerente poderá buscar a solução no Poder Judiciário, haja vista, sendo desfavorável o parecer, o Oficial não procederá o reconhecimento
Dúvida pertinente diz respeito à possibilidade de socioafetividade bilateral, ou seja, de pai e mãe socioafetivos. Por ser de maior relevância o Poder Judiciário tem a legitimidade para decidir sobre esse pedido.
Reconhecer que o parentesco pode ser civil ou natural foi indubitavelmente grande inovação civilista, se analisarmos que o Direito sofre mutações e vai se adequando e adequa a sociedade a situações que desmistificam que nem sempre os laços do sangue geram o amor, que família é quem convive habitualmente, que se preocupa, se importa com os
Estabelecer vínculos e reconhecê-los oficialmente é amparar o coração de alguém muitas vezes machucado pela rejeição ou abandono, seja afetivo e ou material.
Assumir ser pai ou mãe socioafetivo é uma atribuição vitalícia, devendo ter em mente que se ocorrer o divórcio ou a dissolução da união estável, ainda sim permanecerão os vínculos emocionais formalizados pelo reconhecimento acima já mencionado. Por ser considerado laço duradouro e estável compreende-se que fincou raízes, que o filho (a) socioafetiva calcou sua personalidade e criação nos ensinamentos e cuidados do pai ou da mãe socioafetivos.
Seria duplamente sofrido, digamos assim, se um filho fosse desamparado emocionalmente por seu pai biológico e posteriormente pelo socioafetivo. Essa espécie de filiação não tem prazo de duração ou de validade, logo devem todas as partes serem cônscias de tal fato.
Consideração a ser feita recai sobre as obrigações que devem ser mantidas em relação ao pai ou mãe socioafetivos: dever de criar, educar, cuidar, acompanhar e orientar, de pagar pensão alimentícia se houver ruptura do casamento ou da união estável e como direitos: visitas caso haja dissolução de casamento ou da união, de ter o filho em sua companhia e de seus familiares, de participar da vida escolar, de todas as questões referentes à criação do filho, de exercer a guarda compartilhada.
A socioafetividade permite o acréscimo do sobrenome do pai ou da mãe socioafetivos ao nome dos filhos, sem excluir o sobrenome dos pais biológicos, ampara ainda direitos pertinentes à sucessão e alimentos.
Questão carecedora de atenção é o fato do filho que tem sobrenome do pai biológico e do socioafetivo e o pagamento de pensão alimentícia! Segundo os já citados PABLO STOLZE GAGLIANO E RODOLFO PAMPLONA FILHO, levando-se em conta os princípios da proporcionalidade e o binômio necessidade e capacidade, o credor nesse caso poderá ter dois legitimados passivos, logo poderá demandar os dois pais em ação de pensão alimentícia. E mesmo que não tenha construído com o genitor biológico vínculo algum de afetividade, terá o direito de fazer constar o nome dele em seu registro, ainda que seja para fins meramente econômicos, a exemplo de fazer jus à sua herança.
Obviamente que todo o critério já informado para fins de pagamento de pensão alimentícia deve ser analisado conforme cada caso. Exemplo a ser dado é o do filho que tem sobrenome do pai biológico, mas por ausência praticada pelo pai não construiu com ele relação sólida de amor e afeto, ainda sim fará jus ao direito alimentar e sucessório, por força do grau de parentesco, mesmo que tenha o pai socioafetivo.
A socioafetividade não isenta o pai biológico de suas responsabilidades, incluindo direitos e deveres e é alicerçada no amor, no amparo e no cuidado. Ser pai ou mãe socioafetivos requer sentimento de nobreza, de compreender que o amor é um sentimento construído com a convivência.
Acrescer sobrenome, intitular a criança como filho (a) apenas durante o relacionamento conjugal ou na união estável não é agir com sinceridade. A socioafetividade não é vinculada ao casal durante o relacionamento, mas a alguém que acreditava haver com uma outra pessoa um elo baseado na fortaleza do amor.
Divórcio ou dissolução de união estável não rompem a verdadeira socioafetividade! Ninguém é obrigado (a) a permanecer junto com ninguém, mas o respeito ao sentimento de um filho (a) socioafetivo (a) devem ser priorizados.
Os danos advindos do abandono de pais socioafetivos podem ocasionar sequelas emocionais consideráveis, levando o filho na maioria das vezes a buscar ajuda psicológica e em casos mais severos, auxílio psiquiátrico.
Toda pessoa antes de assumir a socioafetividade precisa refletir sobre esse assunto que exige muita seriedade e que pode ocasionar reflexos não somente no âmbito jurídico, mas também no campo psíquico-emocional de alguém, contribuindo assim para o desenvolvimento de depressão, complexo de rejeição, insegurança, baixa estima, gastrite de origem nervosa, dentre outras, provenientes do descaso de pais socioafetivos que menoscabam os filhos
Referências Bibliográficas
BRASIL, Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10/01/2002
Disponível em http://www.planalto.gov.br
______, Código Penal Brasileiro, Decreto-Lei nº 2.848, de 07/12/1940
Disponível em http://www.planalto.gov.br
_______, Constituição da República Federativa do Brasil, do ano de 1988
Disponível em http://www.senado.leg.br
Conselho Nacional de Justiça, Provimento 63/2017
Disponível em http://www.cnj.jus.br
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Manual de Direito Civil,1º Editora Saraiva, 2017.p,1363-1367.
Vade Mecum, Editora Saraiva,2024
Kelly Moura Oliveira Lisita.Advogada. Membro da Comissão de Direito das Famílias da OAB GO.. Docente Universitária. Articulista.<span class="EOP SCXW145045906 BCX0" data-ccp-props="{" 134233117":false,"134233118":false,"201341983":0,"335551550":1,"335551620":1,"335559738":240,"335559739":159,"335559740":360}"="" style="-webkit-user-drag: none; -webkit-tap-highlight-color: transparent; margin: 0px; padding: 0px; user-select: text; font-size: 8pt; line-height: 16.5px; font-family: " times="" new="" roman",="" "times="" roman_embeddedfont",="" roman_msfontservice",="" serif;="" color:="" rgb(13,="" 13,="" 13);"="">
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