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O Uso do Certificado Digital e a Violência Patrimonial Contra as Mulheres: Desafios e Estratégias de Enfrentamento e Proteção às Vulnerabilidades
*Fabiano Rabaneda dos Santos é advogado,
especialista em Direito Eletrônico e Tecnologia da Informação
e em Direito de Família e Sucessões.
O avanço tecnológico trouxe uma gama de benefícios e comodidades para várias esferas da vida cotidiana, entre esses o uso dos certificados digitais, representando um avanço significativo na segurança e na confiabilidade das comunicações digitais, permitindo que indivíduos e organizações realizem transações eletrônicas de forma segura e autenticada. A infraestrutura de chave pública (PKI - Public Key Infrastructure) é a tecnologia fundamental por trás dos certificados digitais, desenvolvida por pesquisadores renomados como Whitfield Diffie, Martin Hellman, Ronald Rivest, Adi Shamir e Leonard Adleman na década de 1970. A PKI estabelece um conjunto de práticas e padrões para criar, armazenar, distribuir e revogar certificados digitais, oferecendo uma base confiável para autenticação e criptografia em ambientes digitais.
No Brasil, a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) foi instituída pela Medida Provisória nº 2.200-2/01. Seu propósito é assegurar a autenticidade, integridade e validade jurídica de documentos eletrônicos, assim como das aplicações e transações que dependem de certificados digitais. Essa iniciativa visa promover a segurança e confiabilidade das transações eletrônicas, garantindo um ambiente propício para atividades seguras e confiáveis online.
Por meio das Autoridades Certificadoras (ACs) da cadeia de certificação, são emitidos certificados para as entidades credenciadas, que por sua vez são responsáveis por emitir certificados digitais aos usuários finais. Esses certificados vinculam pares de chaves criptográficas aos respectivos titulares, garantindo a autenticidade e a integridade das transações eletrônicas. As ACs têm a competência de emitir, expedir, distribuir, revogar e gerenciar os certificados, além de disponibilizar aos usuários listas de certificados revogados e outras informações pertinentes, mantendo registros de suas operações.
No entanto, apesar dos avanços proporcionados pela tecnologia dos certificados digitais, é constatado potenciais usos indevidos ou abusivos dessa ferramenta, especialmente em contextos de relacionamentos desiguais ou abusivos. A facilidade de assinatura proporcionada pelo certificado digital, que é distribuído por meio de tokens – dispositivo de certificação digital –, pode ser explorada para perpetrar formas de violência patrimonial contra mulheres, por exemplo, onde o certificado é utilizado para assinar documentos sem o consentimento pleno do seu titular.
A violência patrimonial, reconhecida como uma das modalidades de violência contra a mulher pela Lei Maria da Penha – Lei nº 11.340/2006 –, refere-se à prática de atos que visam controlar, restringir ou subtrair o acesso da mulher aos seus recursos econômicos, sejam eles financeiros, materiais ou patrimoniais, passando desde a proibição de trabalhar até a administração coercitiva dos bens compartilhados do casal, como a prática de assinaturas em documentos sem o consentimento ou pleno entendimento da mulher.
Antigamente, a violência patrimonial era uma realidade em que o detentor do poder econômico, frequentemente o homem, obrigava a mulher – muitas vezes sem instrução ou compreensão da complexidade dos negócios – a assinar documentos para a movimentação de bens e recursos. Essa prática abusiva era alimentada pela desigualdade de gênero e pela falta de proteção legal adequada para as mulheres, deixando-as vulneráveis à manipulação e ao controle financeiro por parte de seus parceiros.
Com o avanço na conscientização sobre os direitos das mulheres e a implementação de medidas de proteção, as mulheres passaram a ter mais cuidado e discernimento em relação aos documentos que assinam, especialmente devido ao acesso crescente à educação promovido pelos movimentos de igualdade de gênero. Essa maior instrução e conscientização capacitam as mulheres a entenderem melhor os aspectos legais e financeiros das transações, tornando-as menos suscetíveis à manipulação e ao controle financeiro abusivo por parte de parceiros ou cônjuges.
Entretanto, com o avanço da tecnologia e a introdução dos certificados digitais, novas formas de violência patrimonial surgiram, aproveitando-se da facilidade de assinatura proporcionada por essa ferramenta. Em relacionamentos abusivos, a posse exclusiva do dispositivo de certificação digital pelo parceiro dominante pode resultar em situações em que a mulher sequer saiba que documentos eletrônicos são assinados sem seu consentimento.
Essa situação é preocupante, pois coloca as mulheres em uma posição de extrema vulnerabilidade, onde são privadas não apenas do controle sobre seus próprios recursos financeiros, mas também da autonomia sobre suas decisões legais e contratuais. A posse exclusiva do dispositivo de certificação digital pelo parceiro dominante representa uma forma de controle coercitivo, onde a mulher é efetivamente impedida de exercer seus direitos e tomar decisões que afetam sua própria vida.
O uso indevido do certificado digital para assinar documentos sem o consentimento pleno da mulher tem sérias consequências, uma vez que ela se vê envolvida em transações fraudulentas ou comprometedoras ao seu patrimônio sem seu conhecimento.
No julgamento da Apelação Cível nº 08007157120208120010, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul pela lavra da Desembargadora Jaceguara Dantas da Silva, em 19/05/2023, reconheceu a irregularidade havida em alteração contratual da sociedade empresarial constituída pelos envolvidos, que utilizando-se de assinatura digital do administrador da empresa, formalizou alteração contratual da sociedade que tinham, mediante cessão de cotas sociais. Sem a comprovação da regularidade da cessão, “mormente porque as partes estavam separadas de fato, mantinham convivência conturbada no período imediatamente anterior à transação – inclusive com imputações de ameaça, lesão corporal e perturbação no contexto de violência doméstica –, não sendo crível que tenham chegado ao consenso na referida transferência”, houve reconhecimento da simulação do negócio como vício invalidante do negócio jurídico.
É preciso dizer que o uso da assinatura digital de outra pessoa sem sua autorização constitui crime de falsidade ideológica, previsto no Código Penal em seu artigo 299. A falsidade ideológica ocorre quando alguém, de forma intencional, insere ou faz inserir declaração falsa em documento público ou particular, com o objetivo de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.
Nos termos do artigo 22 da Lei Maria da Penha – Lei nº 11.340/2006 –, o uso da assinatura digital da mulher sem sua autorização configura violência doméstica patrimonial, já que essa prática visa controlar, restringir ou subtrair o acesso da mulher aos seus recursos econômicos, materiais ou patrimoniais, o que é expressamente vedado pela legislação, podendo, no caso, acarretar medidas protetivas à vítima, além das sanções penais previstas.
Infelizmente, a natureza digital do certificado dificulta a detecção de abusos, uma vez que as transações são realizadas online e podem passar despercebidas pela vítima. Muitas vezes, ela só descobre o uso indevido de sua assinatura digital quando os danos já são irreversíveis, tornando ainda mais desafiador identificar e combater efetivamente casos de violência patrimonial perpetrados por meio dessa tecnologia.
De acordo com a Certisign, uma das Autoridades Certificadoras (AC) da cadeia de certificação, ao tomar conhecimento do uso não autorizado de um certificado digital vinculado ao seu nome, a vítima deve solicitar imediatamente a revogação por meio do site “www.certisign.com.br/revogue”. O certificado revogado será automaticamente incluído na Lista de Certificados Revogados (LCR), impedindo o uso não autorizado.
Além disso, como medida preventiva contra o uso não autorizado, é preciso conscientizar as mulheres sobre os riscos associados ao uso do certificado digital e a sua entrega deliberada ao parceiro, especialmente em relacionamentos abusivos, reforçando que tanto o dispositivo de certificação digital quanto a senha são estritamente pessoais e intransferíveis.
Outra abordagem eficaz para mitigar esses riscos é promover a educação digital e financeira das mulheres, capacitando-as a reconhecer e resistir à manipulação e ao controle abusivo de seus recursos patrimoniais, se tornando essencial que as instituições responsáveis pela emissão e validação do certificado digital estejam atentas aos potenciais usos indevidos da tecnologia e adotem medidas para prevenir e combater a violência patrimonial contra as mulheres.
Em última análise, o uso do certificado digital representa uma faceta da interseção entre tecnologia e relações de poder, destacando a importância de abordagens multidisciplinares na promoção da igualdade de gênero e na prevenção da violência contra a mulher por meio de uma combinação de conscientização, capacitação e regulamentação adequada, fortalecendo os direitos e a autonomia das mulheres, em vez de servir como mais um mecanismo de controle e opressão.
Fontes consultadas.
Brasil. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero [recurso eletrônico]. Brasília: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2021. 132 páginas. Formato: PDF. Disponível em: http://www.cnj.jus.br. Acesso em: 28 mar. 2024, eISBN 978-65-88022-06-1.
Medida Provisória (MP) 2.200-2. Cria a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, revoga a Lei no 9.983, de 14 de julho de 2000, e dá outras providências. Publicada em 24 de agosto de 2001. Institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, e dá outras providências.
Schneier, B. (1996). Applied Cryptography, Second Edition: Protocols, Algorithms, and Source Code in C (cloth). John Wiley & Sons, Inc.
Stallings, W. (1999). Cryptography and network security: principles and practice (2nd ed.). Upper Saddle River, NJ: Prentice Hall.
Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Acórdão no processo de Apelação Cível nº 08007157120208120010, da Comarca de Fátima do Sul. Relatora Desembargadora Jaceguara Dantas da Silva. Data de Julgamento: 19 de maio de 2023. 5ª Câmara Cível. Data de Publicação: 23 de maio de 2023.
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